luneler Lunéler Elias

Uma criança luta para sobreviver a um bombardeio em Aleppo, na Síria. Para salvar seu irmão mais novo, é obrigado a se esconder e enfrentar o horror da guerra.


Histoire courte Déconseillé aux moins de 13 ans.

#siria #alepo #guerra #artilharia #bombardeio
Histoire courte
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Poeira e Sangue

Samir tinha apenas dez anos, mas já tinha visto muito mais horror que um adulto. Aleppo estava sendo devastada pelos bombardeiros do Exército Sírio e ele, seu irmão e sua mãe eram sobreviventes do conflito, forçados a permanecerem na cidade para não deixar o pai, que havia se juntado às Forças de Oposição ao governo de Bashar Al-Assad. Porém, o pai não havia retornado do último combate no oeste da cidade. A esperança de que ele voltasse os mantinha em estado de miséria.

O menino estava esfregando as roupas em uma bacia, com os pés descalços no chão de terra batida. O sol de meio dia castigando e trazendo o ar abafado. Crianças mais novas nos arredores abandonavam suas infâncias para também trabalharem na lavanderia. Quando se perde tudo do dia pra noite, o ser humano regride a escala zero, aos primórdios mais básicos de existência. Aos poucos se esquece de seu “eu” original e aceita a condição da pobreza.

Seu irmão mais novo, Zayn, de apenas cinco anos, se esforçava para carregar um balde pesado de roupas molhadas que a mãe acabara de lhe entregar. Era quase como uma premonição. Talvez houvesse um sexto sentido que anunciasse o terror na mente do pobre Samir. Desde manhã sentia que algo horrível sucederia naquele dia. E o cenário não precisava estar propício ao horror. Foi ali mesmo, em plena luz do dia, nas vielas que concentravam muitos refugiados, que uma dúzia de granadas 105 milímetros caíram sobre eles.

Samir conseguiu ouvir o assovio lá encima antes que tocassem o solo e explodissem. Uma bateria de artilharia do Exército Sírio de doze canhões acabara de despejar a primeira rajada no bairro.

Em segundos, vieram abaixo muitas casas de alvenaria. Algumas pessoas foram mutiladas pelo sopro de ar e lançadas metros acima do solo. Ele conhecia os efeitos das granadas de artilharia de médio calibre. Seu pai, um veterano de guerra, lhe ensinou muito sobre armas, pois sabia que o futuro de Samir seria aquele.

Não apenas lhe ensinou sobre os tipos de granadas, morteiros, aeronaves e blindados, mas também o deixou praticar tiro com um fuzil Ak-47 e diversos tipos de pistola. E mais que isso, lhe ensinou os conceitos básicos sobre estratégia de bombardeios, a realidade mais próximo que eles travaram na guerra. Era por isso que Samir sabia que, após a rajada inicial, chamada de "rajada de arrebentamento”, sempre seria disparada uma rajada com granadas incendiárias, para fins de saturação de área.

Devido a seu conhecimento, sabia que a única chance de escapar, seria abrigando-se em uma construção de alvenaria que ainda estivesse de pé, contrariando o movimento de toda massa que abandonava as casas. O fósforo branco das granadas, assim que entrassem em contato com o ar, inflamaria e tomaria como combustível as estruturas de madeiras. Uma estrutura de alvenaria poderia suportar mais ao efeito incendiário.

Pegou seu irmão no colo e correu por entre a massa de pessoas, que fugiam, em meio ao caos. Todos estavam desesperados, muitas com graves ferimentos. Samir viu de relance uma senhora com o rosto ensanguentado, outra com o rosto queimado. O tumulto fez com que ele caísse no chão com seu irmão, sendo pisoteado por centenas de pessoas. Ele se arrastou, mantendo seu pequeno irmão abaixo dele e se recolheu para a frente de um prédio, onde pode respirar e ver o tremendo caos instaurado. Quando deu conta de si, seu irmão estava agarrado a ele, chorando, e eles estavam sentados sobre três ou quatro cadáveres amontoados no canto. Viu o corpo de uma criança no chão, com os braços e pernas arrancados pelo sopro de ar das granadas.

Samir sabia que quando uma rajada de artilharia explode próximo de seus ouvidos, ocorre um zumbido persistente, caso seus tímpanos ainda estejam íntegros. E também sabia que era normal que o corpo entrasse em estado de choque ou anestesia generalizada; o sistema nervoso demora a processar a dor. Por isso, ali mesmo, enquanto sua audição retornava, checou o corpo para ver se tinha sido perfurado ou mutilado. Felizmente parecia ileso, exceto pelo pisoteio das pessoas, que lhe provocaram horríveis hematomas.

Quando se deu por si, viu que a parede em que estava recostado era de uma casa de dois andares, de alvenaria, ainda de pé. E que havia uma janela aberta. Sem pensar, jogou seu irmão para dentro com toda força e entrou em seguida. Muita poeira suspensa tornava quase impossível enxergar as coisas a sua volta, teve dificuldade para encontrar seu irmão no chão. Só o achou por causa do choro. Com desespero, arrastou o irmão para um beco da casa, provavelmente a cozinha e ficou embaixo da bancada de mármore da pia.

Eles se encolheram como sardinhas enlatadas e Samir tampou os ouvidos de Zayn. Em voz baixa, ofegante, disse para si mesmo:

⸺ De cinco a sete minutos, concentração incendiária. Dezesseis minutos de queima, nova rajada de arrebentamento suspenso. - Seu pai lhe ensinara os intervalos de tiro da artilharia síria e a sequência tática de granadas para ambientes edificados.

Contou alguns segundos em voz alta e contraiu o corpo todo, apertando a cabeça de seu irmão contra o peito. Deram-se alguns segundos e houve um novo estrondo. Os dois sentiram os órgãos internos tremerem. Samir reconheceu o som semelhante a óleo de frigideira se espalhar por todo ambiente. Um facho forte de luz branca adentrou a casa, refletindo a poeira. Era o fósforo branco queimando.

A voz de muitas pessoas começou a ecoar pelas ruelas. O desespero era gritante e fazia os nervos irem à flor da pele. Minutos depois, um homem desesperado entrou pela mesma janela que eles haviam entrado e começou a se debater no chão aos gritos. Samir viu o rosto dele incandescente por causa de uma fagulha impregnada de fósforo branco. A pele do rosto estava derretendo e grudando ao chão. Suas roupas e braços estavam em chamas. Zayn o apertou com força, horrorizado. O homem se debateu até morrer.

Foram dezenas de disparos. O fósforo branco era extremamente letal contra pessoas desabrigadas. O efeito inflamável da substância também atacava o sistema respiratório. Intervalos de quatro minutos a cada conjunto de explosões. Uma sincronia de horror e medo. Depois começaram a intercalar cargas de arrebentamento, para por abaixo os edifícios que ainda estavam de pé. Felizmente, o que eles ocupavam não desabou por completo, apenas teve o andar superior parcialmente tombado. Todos os outros ao redor tinham sido reduzidos a pilhas de escombros.

Samir não soube dizer quantas granadas tinham explodido. Nem quanto tempo de saturação havia decorrido. Mas provavelmente estavam sob ataque de fogos a pouco mais de quarenta minutos. O receio de haver uma nova rajada era grande e por isso ele permaneceu lá por muito tempo, mesmo após os estrondos cessarem. Seu irmão entrou em estando de choque e, depois de muito tremer, desmaiou abraçado a ele.

Eles permanecem lá por horas a fio. Samir adormeceu e, quando acordou, seu irmão já estava lúcido, mais ainda traumatizado, com os olhos perdidos, em silêncio. Já era noite e eles estavam cobertos dos pés a cabeça pela poeira branca dos escombros.

Samir segurou a cabeça de seu irmão para ver se ainda estava vivo. E sentiu um líquido viscoso escorrendo dos ouvidos deles. Os tímpanos de Zayn tinham rompido. Samir sabia que eles estarem vivos poderia ser apenas um misto de sorte e de sua astúcia em seguir a risca os conselhos do pai. Lembrou que sua infância foi trocada por aulas e mais aulas sobre guerra e armas. Agora ele agradecia por isso. Com cuidado, ele saiu debaixo da pia e puxou o irmão. O pequeno ficou de pé. Estava calmo e letárgico, facilmente condutível.

O garoto o levou a passos lentos para fora. O cenário de arraso causou mais asco em Samir do que em Zayn. Corpos carbonizados exalavam cheiro de gordura queimada. Centenas de pessoas estavam amontoadas nas ruelas, algumas ainda com pequenas chamas no corpo. Muita fumaça e poeira tomavam o local.

De imediato, foram procurar a mãe. O lugar estava irreconhecível e eles custaram a encontrar a fachada da casa deles. Deixou o irmão em um canto e foi sozinho, pois sabia o que encontraria. Após vários minutos removendo pedras, reconheceu o rosto da mãe soterrado. Ela estava morta.

Mas a vida o tinha deixado tão endurecido que não lhe restaram lágrimas para chorar. Seu irmão ainda estava vivo, e agora sem uma mãe para cuidar dele. Resgatou o pequeno e começou a percorrer as ruelas e escombros na busca de um lugar para se esconder. Lembrou-se de ver um criança ainda viva, com as pernas esmagadas por uma pilha de tijolos, pedindo ajuda. Zayn quis socorrê-lo, balbuciando, apontando para o garoto, mas Samir o puxou sem olhar para trás. Sabia que a criança morreria, pois metade do corpo estava visivelmente esmagado; teria pouco tempo de vida.

Logo surgiu um estampido oco no céu. De imediato, atirou-se no chão sobre seu irmão. Pareciam fogos de artifício; não ouve impacto. Segundos depois, Samir olhou para o alto e viu que eram granadas iluminativas. Eles usavam esse tipo de bomba para iluminar o campo de batalha. A meio trajeto, o corpo da granada se rompia e liberava um invólucro carregado com uma substância inflamável e incandescente. O recipiente caia lentamente, sustentado por um pequeno paraquedas e liberava uma luz suficiente para iluminar vários metros quadrados. Era nesse instante que os observadores reconheciam o caminho para a infantaria adentrar a cidade a pé.

Samir se levantou e foi até um celeiro que ainda estava intacto. Lá eles encontraram a cuba de água para os animais e beberam para matar a sede de horas sob a fumaça asfixiante. Limparam seus rostos e se sentaram no canto do chiqueiro. Samir fez mímicas para seu irmão, indicando que orassem. Fizeram as habituais reverências religiosas e clamaram por piedade em cochicho.

Algumas horas depois, já na madrugada, ouviram o som dos passos dos soldados e o motor dos blindados, passando com as lagartas de aço por sobre os corpos. De imediato buscaram a saída, mas viram que os soldados estavam muito próximos. Foram para o fundo do celeiro e encontraram uma abertura estreita de ventilação para os animais. Samir ergueu seu irmão para que ele alcançasse e o fez entrar na tubulação. Depois o pequeno lhe estendeu as mãos para ajudá-lo a subir, mas Samir era grande demais para passar na abertura e não conseguiu entrar. Tentaram quatro vezes, até que Samir olhou para trás e viu três soldados entrarem no celeiro. Fez sinal para o irmão ir embora e voltou ao chão. O pequeno começou a chorar, mas se foi, saiu pela abertura do tudo, foi parar em um campo aberto e desértico, onde ainda não havia soldados. Sem pensar, Zayn correu o mais rápido que podia colina abaixo. Já a considerável distância, ouviu os disparos de uma metralhadora perfurarem o corpo de Samir.

Sentindo os últimos espasmos, enquanto a hemorragia interna causada pelos tiros derramava grande volume de sangue, Samir sorriu, pois ao menos pode salvar a vida de seu pequeno irmão.

18 Juin 2019 04:59 0 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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La fin

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