Lembrar dos meus tempos de interior é recordar das amizades cultivadas na rua onde morei. Toda a turma tinha a mesma faixa etária, alguns com dois ou três anos a mais; nada que atrapalhasse as meninices em bando no meio do sol ou chuva. Todos com o mesmo brilho no olhar e a despreocupação flutuando sobre os ombros. Corremos, brincamos e cantamos músicas internacionais mesmo sem termos ideia da letra.
Apenas crianças. Até mesmo os mais velhos entre nós.
Para a gente, assim como para todos, os anos passaram e as traquinagens se tornaram fofocas noturnas ao pé da calçada. A insegurança da adolescência abatia uns, a pressão que exercia o ensino médio abatia outros, alguns até mesmo se meteram com amores não correspondidos. Nada muito incomum para o estilo de vida adolescente contemporâneo.
Daí a vizinha morreu.
Infarto; ela era idosa e avó de Gustavo, o garoto mais velho da nossa turma. Eu não era exatamente próxima a senhora, mas também não éramos desconhecidas. Visitei a casa dela várias vezes quando Guto e eu resolvemos estudar juntos para as provas. Lembro-me das peças de porcelana floridas que decoravam a cozinha, assim como os panos de prato; uns pintados, outros bordados.
— Sai de perto do vaso da vó! – Guto exclamou. – Você é desastrada demais e pode acabar quebrando.
— Isso foi caro? – certa vez perguntei.
— Não. – Guto respondeu sereno enquanto me puxava pelo braço. – É presente de casamento. Nem queira saber o que ela fez quando, sem querer, quebrei uma xícara dessas.
A velha, porém, não era carrancuda como Guto, às vezes, gostava de narrar. Todas as manhãs ela varria a calçada e colocava o lixo para fora, minha avó e ela acenavam uma para outra. Quando a noite caía, minha avó sentava na calçada da avó de Guto e as duas fofocavam – exatamente como fazíamos entre nós, mas sem a presença de cadeiras de balanço. A amizade entre as velhas fortificada pelos anos de convivência.
Todavia, por mais que minha avó fosse amiga da vizinha falecida acabou recusando o convite para ir ao enterro.
— Minha pressão. – ela explicou, mas cochichou baixinho. – E não quero ter que lembrar dela num caixão.
Então a eu de dezesseis anos parou para refletir sobre rotina. A tão enfadonha e mortificante rotina que incontáveis autores insistiram vilanizar e problematizar era a rotina que todas as senhorinhas daquela rua viviam. Varrer a calçada pela manhã e colocar o lixo para fora. Fazer o almoço, lavar a louça, secá-la e estender o pano de prato úmido no varal. Tomar banho, comer e, logo em seguida, tirar um longo cochilo na rede.
Pondo nessas palavras, dias sem novidade alguma podem parecer insuportáveis. Mas, na manhã de segunda-feira, quando saí para ir a escola, flagrei minha avó parada na calçada com a vassoura na mão. Os olhos enrugados miravam a calçada suja da vizinha morta. E se um dia eu entendi o significado da palavra “insuportável” foi no momento em que vi aquela cena de solidão.
Tudo que nasce está fadado à morte. E quando esta chega, não resta nada além do vazio.
Merci pour la lecture!
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