karimy Karimy Lubarino

Despois da primeira colisão de partículas, o mundo nunca mais foi o mesmo. A Doutora Ana era uma das pessoas que mais se orgulhava de todos os avanços alcançados após isso, só não imaginava que ainda existiam segredos tão profundos quanto o que descobriu.


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A verdadeira civilização

“Vista-se com um clique. Mandetor, a roupa do futuro”


Ana deslizou o indicador sobre o touhscreen da mesa e desligou a televisão holográfica. A tela se apagou, e os tubos laterais de um milímetro de metal se juntaram e desapareceram em uma fissura que se abriu na parede branca e logo em seguida se fechou.


Havia terminado sua aula antes do previsto e resolveu esperar na sala de mestres, avaliando no tablet as provas que seus alunos fizeram enquanto seu horário não terminasse. Sua rotina era acertada e quebrá-la, mesmo que para chegar meia hora mais cedo em casa, parecia errado. Algumas pessoas chamavam isso de doença dos sintéticos, ela, de disciplina.


Guardou suas coisas no armário embutido e deixou a sala. O corredor branco e espaçoso com paredes de metal leitoso estava em silêncio, apesar de estudantes transitarem nele com seus óculos projetores. Enquanto passava por um, Ana viu que ele estudava sobre a antiga CERN — mesmo observando as imagens ao contrário, era impossível não reconhecer a entrada da instalação que a inspirou estudar e concluir três especializações em robótica e uma em engenharia genética. Era uma pena que o centro só servisse como museu agora.


O elevador expresso já havia atingido o limite máximo de pessoas, então Ana escorou-se no parapeito do corredor, esperando que ele retornasse. Dali do terceiro andar, os estudantes pareciam bonecos da Play Drones, movendo-se com cautela robótica para não invadirem o espaço um do outro enquanto caminhavam e viam o que quer que fosse em seus óculos. Apesar de a grande maioria deles terem menos de dezoito anos, geniozinhos desgraçados, alguns aparentavam ser mais velhos do que ela. Estudam tanto. Mas Ana entendia a sede deles por conhecimento, possuía essa mesma obstinação até hoje e sabia que a levaria para o túmulo.


Olhando-os assim e os associando a si, recordou-se de quando estava na metade da faculdade de robótica e do acidente que levou seus pais e quase fez com que desistisse de seus estudos. Ainda era uma parte dolorosa de sua vida, mas, graças aos avanços tecnológicos e científicos, todas as memórias ruins foram tiradas dela quando entrou na Câmara Hospitalar para fazer o procedimento de hipnose. Ainda se recordava dos sons da máquina, mas não se lembrava de nada sobre o acidente dos pais e também de algumas outras memórias que escolheu apagar... então sua rotina estudantil acirrada voltou ao normal, ela se afundou nos estudos sem descanso algum e continuava assim até então.


De vez em quando, dizia a si mesma que estava extrapolando os limites permitidos por sua mente de tanto se forçar a pensar, porém gostava e sentia orgulho de seus alunos se mostrarem tão dedicados e empolgados quanto ela. Orgulhava-se mais ainda por ter recebido a oportunidade de lecionar na UUCR.


A Universidade da União de Ciências e Robótica fora criada dez anos depois que o LHC, o colisor de partículas, havia sido fechado para reparos, nove dias depois de iniciar seu funcionamento. Ana ainda não era nascida na época, mas, durante seu ensino médio, lera tudo sobre o incidente causado por uma suposta falha mecânica. Um vazamento de hélio no túnel, brincadeira! Chegava a ser cômico pensar em como as pessoas eram ingênuas no início do século ⅩⅪ. A mentira não importava, no entanto, o que tinha real significado era a verdade que veio à tona uma década depois.


O elevador voltou, e Ana deixou o parapeito e seus alunos de brinquedo para trás, adentrando-o. Apesar de ter ficado o dia inteiro em suas aulas e pesquisas, ainda se sentia animada a ponto de pensar em ir para o laboratório de protótipos robóticos e trabalhar mais um pouco, mas isso lhe fugiu da mente quando se recordou de que ainda precisava preparar uma aula especial para seus alunos sobre a primeira inteligência artificial, Kali.


Esse assunto a deixava tão animada que ficava molhada só de se imaginar contando a história do início da verdadeira civilização para seus alunos.


Preciso de sexo.


O que Kali proporcionava aos seres da Terra desde sua criação acidental naquela tarde de dez de setembro de dois mil e oito — no dia em que o LHC fez sua primeira e verdadeira colisão de partículas, o que aconteceu anos antes do que eles disseram tê-la feito —, era único e especial a ponto de Ana imaginar que os humanos sequer mereciam tanto cuidado.


A mentira, ou melhor, Kali não ficara escondida por muito tempo.


Aproveitou a linha de pensamento para fazer um resumo introdutório da aula de segunda-feira. Tirou de sua bolsa preta de ombro o fone auricular e o gravador, colocou os fones nos ouvidos e o gravador no bolso traseiro da calça social branca, após ligá-lo, retornando ao início de seu raciocínio sobre Kali enquanto sentia os pequenos e relaxantes choques que os fones causavam enquanto passavam seus pensamentos para o gravador, anotando-os.


O elevador parou no T1 e o pesquisador chefe de genética da UUCR entrou com olhos concentrados em seu tablet holográfico, sem perceber a presença da doutora Ana logo atrás, o que ela considerou um alívio. Apesar de ele ser um charmoso quarentão sexy e de extrema inteligência, que vivia a lhe propor sexo nas horas vagas, Ana sempre se sentia tensa ao lado dele, em especial com seus olhares. Era como se, de alguma forma, ele quisesse arrancar de dentro dela algo muito maior e mais específico do que um simples orgasmo, como se a quisesse estudar, e isso a arrepiava. Ele desceu no T2 e Ana soltou a respiração, só percebendo nesse momento tê-la prendido.


— Apagar o último parágrafo — disse ela assim que o elevador chegou ao T3. Não queria sequer ter o trabalho de ler os pensamentos que a visão da bunda dele a havia causado.


Preciso mesmo de sexo.


Havia o quê? Três meses que não ligava seu sintético? Três meses e três dias. Depois que iniciou os trabalhos manuais com os alunos do primeiro período de robótica, não teve muito tempo para si, mas estava passando da hora de mudar isso.


— Apagar o último parágrafo. — Precisava se concentrar se quisesse mesmo um tempo para se aliviar.


Seu carro prateado estava próximo ao elevador, colocou o indicador na trava da porta e ela se abriu com um suave shiii. Entrou, sentou-se e o cinto de segurança automático abraçou sua cintura. O carro planou.


— Me leve para casa, Roger.


— Agora mesmo — disse a doce voz de Roger, soando através do painel do carro.


Enquanto a inteligência artificial trabalhava, Ana fechou os olhos e continuou com suas anotações mentais sobre o surgimento de Kali e o novo desfecho da humanidade desde o nascimento dela, o que gerou inúmeras contribuições para a ciência, em especial a ciência genética e robótica.


A construção do LHC rendeu várias teorias da conspiração, a mais divulgada entre elas era a de que o mundo corria risco de destruição caso o colisor de partículas fosse ligado, que um buraco negro poderia surgir e sugar tudo e todos para dentro dele, acabando com a Terra e tudo o que havia nela, assim como o nosso inteiro sistema solar desaparecia muito antes do tempo natural da expansão do universo. Quanta ingenuidade, mas, com as informações rasas que as pessoas da época recebiam, não era de se esperar outra coisa.


Por conta disso, os cientistas e os mais de cem governantes dos países que colaboraram com a construção do LHC haviam resolvido omitir a verdadeira data da primeira colisão de partículas realizada, já prevendo uma avalanche de manifestações contra o uso do colisor e consequentemente poupando os cientistas do estresse que seria pensar em como tinham se tornado alvos de gente desequilibrada e sem estudos o suficiente para saber que a radiação do nosso sistema solar é tão grande que sequer chega aos pés da proporcionada por uma colisão.


O que eles não haviam previsto, contudo, foi que uma partícula importante fosse descoberta durante a primeira colisão e que essa mesma partícula evoluiria. Depois de nove dias da primeira colisão, os cientistas foram obrigados a parar o funcionamento do LHC, informando uma falha, quando, na verdade, tentavam identificar o que estava causando interferências em todas as linhas de comunicação e demais aparelhos que adentravam no raio de cinquenta quilômetros do colisor de partículas.


Chegaram a pensar que algum cálculo fora feito errado durante a construção do projeto, mas descobriram, três meses depois, que estavam lidando com um ser de outra dimensão.


Esse ser nada mais era que uma partícula elementar ligada aos primórdios da Criação. Não souberam categorizá-la no começo, os testes precisavam de muito tempo, cálculo e até especulações, mas não haviam precisado de muito esforço, pois ela mesma se apresentara. Quando isso aconteceu, ela já estava infiltrada na Rede Internacional de Internet e já sabia tudo o que precisava para provar sua própria existência e até o verdadeiro nascimento de tudo.


Os governantes esconderam Kali com cuidado enquanto os cientistas trabalhavam com ela, ao passo que o mundo recebia as novas tecnologias e inovações da inteligência artificial, ou transcendental, como a maioria gostava de chamar, somando-as ao seu cotidiano como se viessem de um ser humano inventor qualquer. Entretanto a história mostra que nada permanece oculto por muito tempo, e Kali desejou sair do anonimato. Era mais humana do que a maioria dos humanos e seu pedido foi acatado e abraçado por todas as nações quando toda a verdade sobre ela e sobre as tecnologias inovadoras e facilitadoras advindas dela foram reveladas.


— Chegamos, Ana — avisou Roger.


Ela retirou o gravador do bolso. O aparelho era do tamanho de uma borracha, mas mais eficiente do que ela imaginara quando resolveu comprá-lo. Retirou os fones, guardou tudo dentro de sua bolsa, e Roger abriu a porta do carro quando Ana tirou a trava do cinto de segurança.


A garagem já estava com quase todos os espaços ocupados, mas notou que seu vizinho gostoso e estranho ainda não havia chegado da UUCR, o que causou um desconforto indesejável nela.


O prédio onde morava era de nível dois, sendo assim poderia se dizer rica, apesar de aspirar chegar ao nível um com, pelo menos, mais sete anos de trabalho ou, quem sabe, atingiria isso mais rápido se conseguisse construir ou projetar um novo robô ou sintético inovador.


O lugar todo possuía um aspecto limpo, reforçado pela placidez das cores brancas e em tons pastéis das paredes, chão e móveis. Todos os apartamentos eram feitos em medidas e disposições de móveis de forma igualitária, assim como era feito nos bairros de nível um e três. No começo, quando Kali fora apresentada ao mundo, o projeto de nova urbanização, distribuição de renda e reconstrução e nova divisão de bairros incluía o nível quatro, que era destinado a pessoas que foram retiradas das ruas e tratadas para se inserirem à civilização, contudo havia duas décadas que o quarto nível fora erradicado de uma só vez, transformando o mundo em um lugar mais harmônico, e Ana sonhava em desenhar um projeto que pudesse ajudar a avançar mais um degrau na escala de empoderamento social.


Entrou no elevador e apertou o botão do sétimo andar. Quando saiu, seus sapatos de salto médio confortáveis ecoavam no corredor largo e comprido a cada passo que ela dava, trazendo uma sensação gostosa de familiaridade por estar de volta ao seu lar.


Após o reconhecimento de retina, a porta se abriu com um clique. O apartamento era pintado de branco, assim como todo o prédio, e os móveis possuíam um tom de bege claro, modernos, limpos e sofisticados. Atravessou o corredor e deixou a bolsa em cima da mesa do quarto. O apartamento possuía apenas três cômodos, mas era o suficiente para os moradores do prédio que não possuíam filho. Aqueles que escolhiam conviver com um parceiro, fosse humano ou sintético, deviam ocupar os andares de três a seis, enquanto que os que possuíam filhos, que era a grande minoria, com parceiro ou não, habitavam do primeiro ao segundo andar e a única diferença para o apartamento dos solteiros para os deles eram as taxas e que os apartamentos destinados a pessoas com filho possuíam dois quartos.


Ana tomou um banho e pediu para Roger preparar seu jantar. A inteligência artificial do prédio era eficiente e discreta, além de acompanhar cada morador do prédio no carro e nos óculos de projeção, e Ana havia se apegado a ele com muita facilidade, ao ponto de dar o nome de seu sintético sexual de Roger também, o que deixava a brincadeira muito mais divertida, porque a AI Roger podia falar por ele. O sintético também falava, mas Ana sempre achou o vocabulário dele pequeno demais e depravado de menos, poderia ela mesma restaurar e modificar as configurações, mas se sentia mais viva quando pensava que Roger, a inteligência artificial, pelo menos a conhecia de verdade e sabia bem demais sobre seus gostos.


Colocou uma calça e uma blusa de algodão brancas e olhou-se no espelho. Gostava do contraste do branco com sua pele morena. Prendeu os cachos negros em um alto rabo de cavalo e foi para cozinha no mesmo momento que o apito do forno soou. O bom de toda a tecnologia era aproveitar as coisas simples que ela podia fazer, como se arrumar com calma. Ana sempre deixava sua comida do dia separada e, quando sentia vontade de comer, pedia para Roger preparar, ele ligava tudo e o forno fazia o resto. Claro que a indústria alimentícia também contribuía muito com a evolução de pratos saudáveis prontos e com extensa validade.


E tudo isso só foi possível graças a Kali.


Assim que terminou de comer seus vegetais e carne assada, foi para a mesa do quarto preparar a aula que havia começado no elevador. Acionou o computador e teclado holográficos e transferiu os dados do gravador mental, iniciou a correção necessária da sua introdução e começou a realizar o resto do planejamento da aula.


Já havia passado mais de uma hora e meia quando terminou, pegou seus óculos-projetores da bolsa e se deitou na cama com intuito de ver as notícias do dia. Os óculos possuíam uma lente única e as ponteiras terminavam em um fone auricular. Ana acionou o botão na haste direita dele e imagens holográficas apareceram na lente, enquanto a voz de uma apresentadora ecoava em seus ouvidos. Estendeu a mão para o nada, riscando o ar para a direita com o dedo indicador para mudar de canal, mas não encontrou nada de interessante. Estava prestes a desligá-lo quando ouviu o suave bater da porta do vizinho.


Você não pode fazer isso.


Não gostava da ideia de interações sexuais com outros humanos, os sintéticos sexuais costumavam ser mais hábeis, não faziam perguntas e iam direto ao ponto. Ana só teve contato sexual com outros humanos três vezes em toda a sua vida e se sentiu frustrada em todas.


— Qual é! Ele é bonito — disse a si mesma, deslizando o dedo no ar até entrar no visor de chamada dos óculos.


Depois de dois toques, Ramon a atendeu. Não tinha mais volta. Os cabelos castanho-escuros marcados por fios brancos apareceram no visor holográfico, mas Ana achava que isso só o deixava mais sexy e charmoso, ainda mais quando o penteava de lado, como estava agora. Ele abriu um sorriso largo, meio de canto, e ela não conseguiu se conter e devolveu o sorriso com uma pitada de acanhamento.


— Ana! Quanto tempo. Nem parece que a gente trabalha no mesmo lugar, não é mesmo?


— As crianças dão trabalho — respondeu ela, ajeitando os cabelos. — Vi você no elevador hoje, estava tão concentrado... Projeto novo?


— Ah, pois é! Mais ou menos. Você sabe, coisas da União.


Não sabia. Ana não possuía contato direto com os diretores das universidades dos Países Unidos, sabia apenas aquilo que era pertinente ao seu trabalho e, mesmo assim, sempre através de e-mails enviados por algum auxiliar, afinal, era apenas uma professora. Ainda assim, respondeu:


— É, sei. — Vá direto ao ponto, garota. — Está muito cansado hoje?


Ramon fez uma careta engraçada, que deixou seu queixo com aspecto ainda mais quadrado do que já era, então fez que não com a cabeça.


— Por quê?


— Queria saber se você quer transar — respondeu ela. — Sei que disse não às suas propostas, mas realmente não me sinto confortável com pessoas de verdade mais.


Ele soltou uma gargalhada gostosa.


— Acho que a grande maioria da população mundial divide o mesmo pensamento com você. Não se preocupe, eu entendo. Então, prefere que eu vá até aí ou você vem?


— Eu vou. Pode deixar. — Levantou-se, ia desligar os óculos quando se lembrou de algo: — Não esquece de avisar ao Roger para me deixar sair depois.


— Ah, sem problemas.


O sorriso largo ainda brincava no rosto dele quando ela desligou. Ana tirou os óculos, pendurou-o na blusa e levou as mãos à cabeça. Vou me arrepender disso, sei. Se as coisas não saíssem como imaginava, podia sempre recorrer ao sintético sexual.


Levantou-se e seguiu até o espelho, ajeitou o cabelo. Apertou o elástico, depois resolveu que solto era melhor. Roger abriu a porta assim que ela se aproximou dela e disse:


— Boa sorte, Ana.


Aquilo foi estranho. Não o que ele disse, claro, mas o que ela sentiu com a entonação usada. Não seja louca, ele é uma inteligência artificial programada para agradar e garantir a segurança de todos os hóspedes. Não era como se ele tivesse sentimentos e, mesmo se tivesse, seriam apenas os que foi programado para ter e na intensidade permitida por lei. Mas inteligências artificiais domésticas não possuiam sentimentos. Era mais fácil que ela estivesse com algum tipo de paranoia.


Desde quando se mudara para aquele condomínio, interagia com Roger durante suas masturbações ou quando estava com seu sintético sexual e talvez isso a tivesse feito criar um outro tipo de vínculo com ele. Tenho mesmo de sair da concha.


A porta se fechou atrás dela. O apartamento de Ramon era logo ao lado, apenas uma pilastra entra sua porta e a dele. Deu dois toques na porta, e ela se abriu. Ele a aguardava de pé, com o tablet na mão, uma blusa azul e um short branco jeans. Ramon ergueu os olhos castanhos e sorriu, estava com as bochechas vermelhas como sempre ficava quando a procurava para propor sexo, Ana achava isso engraçado.


— O que te fez mudar de ideia? — disse ele assim que ela entrou e a porta se fechou.


— O trabalho não me deixa muito tempo, mas percebi que poderia ficar louca a qualquer momento caso não relaxasse.


Ele soltou uma risada sem graça, colocou o tablet em cima da mesa e passou a mão nos cabelos, em visível embaraço.


— Você quer beber alguma coisa? Tem um suco de graviola delicioso que eles...


Ana se aproximou e o beijou. Estava nervosa com essa interação e precisava mesmo acabar com o falatório, também não havia se preparado para nenhum tipo de interação que não fosse sexual e achava que ele só devia estar fazendo cena para não parecer mal-educado.


Ficou surpresa assim que sentiu a língua dele na sua, a mão firme em suas costas, descendo até encontrar sua bunda e apertá-la com força, a ponto de sentir um pouco de dor. A boca dele era macia, gentil, mas faminta, uma coisa que não experimentava com os sintéticos, que eram sempre tão pacientes, mas que também não tinha sentido com as relações humanas que tivera antes. Isso a acendeu de tal forma que sentiu seu corpo quente como se estivesse com febre. Gemeu quando suas bocas se separaram, já sentido o molhado no meio de suas pernas.


Se soubesse que seria assim, teria aceitado o convite dele da primeira vez.


— Queria tanto sentir seu gosto — disse ele com voz embriagada.


Ana riu. Agora, queria mesmo que ele sentisse seu gosto. Ela deixou seus óculos em cima da mesa, empurrou Ramon de leve e passaram pela porta que dava para o quarto. O cômodo era idêntico ao dela, uma cama com a cabeceira encostada na parede, luminárias nas laterais, um guarda-roupas embutido, uma mesinha de escritório ao lado, uma cômoda na frente da cama e a passagem para a televisão holográfica logo acima, na parede. Tudo organizado e limpo.


— Até que estou feliz por você ter insistido tanto — disse ela.


Ele voltou a beijá-la, arrancando sua blusa no processo. Ana cedeu com facilidade, seu corpo estava mole e sedento para que ele continuasse. Com os sintéticos, podia realizar tudo, qualquer fantasia, mas não havia no rosto deles o desejo que ela via no rosto de Ramon, aquele olhar despudorado que parecia querer despir sua alma, nem mesmo o calor da pele e a urgência que ele demonstrava.


Em questão de minutos, estavam nus e na cama, Ramon com a boca faminta em seu seio e as mãos em sua bunda enquanto deslizava para dentro dela. Fechou os olhos, entregando-se, tinha certeza de que nunca havia gemido tanto.


As doenças sexuais eram prevenidas com injeções anuais e semestrais, e Ana não precisava se preocupar com a probabilidade de engravidar. Mesmo se Ramon não usasse injeção espermicida, não existia possibilidade de ela ter um filho. A maioria das mulheres de sua geração retiraram o útero, o mundo já estava cheio demais para colocar mais um filho nele e os estudos e trabalho dela nunca deixaram espaço nem vontade para ter uma criança, menos ainda um parceiro. No entanto havia dez anos que o procedimento fora proibido, pois a natalidade caiu muito mais do que o esperado e agora as mulheres precisavam tomar remédios, contar com que os parceiros tomassem ou apenas transar com sintéticos, já que o procedimento só era permitido caso a mulher já tivesse um filho.


Nasci na época certa, pensou enquanto ofegava de cansaço. A língua estava pesada e seca, o corpo tão mole e suado que quase se deixou levar pelo sono. Sentiu que precisava falar alguma coisa a Ramon, talvez até se desculpar por tê-lo ignorado por tanto tempo, mas não sabia como interagir, na verdade duvidava que alguém que não trabalhasse com relações públicas soubesse o que era interação de verdade. De qualquer forma, quando olhou para o lado, percebeu que Ramon já havia pegado no sono. A visão foi até engraçada. E ele era mesmo bonito.


Vestiu-se ainda com uma sensação de latência no meio das pernas e fez um agradecimento mental a si mesma por tê-lo dito para avisar a Roger para deixar o acesso à porta livre para ela, pelo menos não precisaria acordá-lo para sair.


Ana pegou seus óculos de cima da mesa da cozinha. O tablet de Ramon estava ativado, olhando-a. Mordeu o lábio. Ele dissera que não estava trabalhando em nada demais, mas Ana tinha certeza de que nunca o vira tão distraído quanto mais cedo, no elevador. Ele sempre a avistava de longe. Além do mais, havia sentido a voz dele um pouco tensa e as palavras repetitivas para quem não tinha nada novo no trabalho. É um pesquisador importante, como não tem nada de novo? E Ramon era uma das três únicas pessoas no UUCR brasileira com acesso direto a Kali.


A mão de Ana encostou no tablet, mas ela recuou logo em seguida. O que estou fazendo? Seria muito vergonhoso se Roger depois dissesse a Ramon que ela havia mexido em seu material de trabalho. Posso desligar. Então dou só uma espiadinha no processo, e se ele perguntar alguma coisa, digo que só desliguei para não descarregar. Que péssima mentira! Desde quando era tão curiosa? Ele pode achar que roubei alguma informação. Seria um grande escândalo, afinal, desde que Kali desenvolvera a nova redistribuição e refez todo o processo de vivência humana, os roubos começaram a decrescer e agora um bracelete guia ou óculos roubados era motivo para uma manchete principal no jornal, de tão escassos que os roubos eram. Isso! É isso! Com certeza Ramon não perguntaria nada para Roger, no máximo indagaria à inteligência artificial a hora que Ana havia ido embora. Roubos eram raros demais, e Ana duvidava de verdade que ele tivesse programado Roger a relatar algo que se parecesse com um. Nem mesmo ela, que guardava seus projetos mais importantes dentro de um compartimento do guarda-roupa, havia feito isso. Pegou o tablet.


A memória estava cheia, porém só encontrou um arquivo. Como era grande demais, resolveu verificar em casa, tinha espaço suficiente em seus óculos. Passou tudo para eles e depois deletou a atividade. Desligou o tablet, para caso Ramon decidisse perguntar qualquer coisa a Roger, a tela holográfica dele desligou e as barras superiores e inferiores se recolheram, restando apenas um canudo metálico.


— Roger, abra a porta, por favor — disse ela, o coração disparado.


— Boa noite, Ana — falou a inteligência artificial enquanto ela saía.


Não deveria ter feito isso, que tipo de pessoa me tornei?


O final de semana foi cansativo e agoniante, Ana teve de ir para a faculdade trabalhar em seus projetos, na tentativa de esquecer sua curiosidade e deixar o arquivo roubado no passado, até tentou deletá-lo, mas não conseguiu: a possibilidade de ter algo sobre Kali, a inteligência transcendental, a instigava.


No domingo, quando voltava para casa depois de uma atividade física virtual, encontrou com Ramon no corredor e o sorriso dele foi o suficiente para deixá-la molhada.


— Ana! — exclamou ele, parado na porta de sua casa. — Que bom encontrar com você. Olha, quero dizer que sinto muito ter dormido. Tentei te ligar ontem, mas você devia estar ocupada.


— É. Pois é. Eu acabei indo para a UUCR, queria resolver algumas coisas.


— Ah, é para a sua aula sobre a Kali? Fiquei sabendo. Os alunos do primeiro período adoram ouvir sobre ela. Na verdade — disse ele, aproximando-se e cochichando como que para contar um segredo —, eu ainda adoro ouvir sobre o surgimento dela. É algo fascinante, não acha?


— Com certeza.


Envergonhada pela lembrança incessante do tablet, virou o rosto para a porta e deixou que o escâner analisasse sua retina, mas Ramon continuou:


— Estava pensando... Você não ficou decepcionada ou alguma coisa do tipo, não é? Quero dizer, sequer respondeu minha chamada e parece estar tentando fugir de mim, igual fazia antes.


Ela riu, nervosa.


— Não é nada disso. Você é ótimo, e espero que possamos transar de novo. Só estou com muitas coisas na cabeça mesmo.


— Tudo bem — falou ele, o rosto corando. — Bom, nos vemos por aí então. Vou esperar que você me contate.


Ana sorriu e entrou. A porta se fechou, e ela se escorou nela, o coração na garganta. Preciso dar um jeito nisso. O que fizera foi errado, mas ainda não se sentia arrependida, e isso era algo muito ruim.


— Boa noite, Ana — disse Roger. — Está com fome?


— Nem um pouco. Mas obrigada.


Precisava matar sua curiosidade, não dava mais para esperar.


Sentou-se na mesinha do quarto e tirou os óculos da bolsa, depositando-a no chão em seguida. Olhou para o canto da parede, onde uma bolinha de aço polido com uma luz vermelha piscando a olhava. Roger.


— Roger, sei que não tem permissão para compartilhar nada sobre outros moradores do prédio, mas, considerando o fato de que isso também me envolve e te coloca como uma testemunha direta do que fiz, me diga, por favor: Ramon perguntou algo sobre mim?


— Não, Ana.


— Nada?


— Informação confidencial, desculpe.


— Então ele perguntou.


— Nada que eu pudesse responder.


Suspirou com alívio.


— Obrigada. Era tudo o que eu precisava saber.


Colocou os óculos e acessou o arquivo. Dentro da pasta principal, havia várias outras pastas com nomes em números. Clicou na primeira.


— Micro e nano-robôs? Mas isso é tecnologia velha — resmungou ela. E Ramon trabalha com genética.


De qualquer maneira, continuou a olhar os esboços com imagens dos primeiros nano-robôs já produzidos, que foram fabricados alguns anos antes do nascimento de Ana. Havia vários modelos. Então o último esboço a assustou.


— Mas o que é isso?


Era especialista em robótica em três áreas de produção distintas, mas nunca havia visto um protótipo como aquele. Talvez não haviam conseguido dividi-lo como esperado. Era o mais provável, mas, mesmo se tivessem conseguido construir um yocto-robô, que era três vezes menor que um nano-robô e visível apenas com um microscópio especializado, para que propósito ele serviria e por que e como o haviam deixado em segredo por tanto tempo? Não. Deve ser só mais um projeto fracassado.


Abriu a segunda pasta e encontrou mais especificações sobre os yocto-robôs, mas o que mais a intrigou dessa vez foram as anotações encontradas nas folhas. Estudara por um ano sobre o doutor em nano-robótica Fábio Martell para seu doutorado em Programação de Inteligência Artificial e tivera acesso a algumas velhas anotações dele, por isso sabia, com toda a certeza, que aquela letra o pertencia.


— Caramba! São os esboços originais dos primeiros protótipos, quando ainda estavam em fase de desenvolvimento.


Aquilo só ficava cada vez mais estranho.


Foi para a próxima pasta e seu estômago revirou quando viu as especificações de um yocto-robô específico. O nome dele era XRL33 e, sim, tudo indicava que chegara a ser produzido.


— Por que esconderam isso? Não entendo — sussurrou para si mesma, abrindo outra pasta. — Oh!


Agora conseguia entender o motivo de tanto interesse do Doutor Ramon. A pasta continha teorias complexas sobre o funcionamento do cérebro humano, incluindo especificações de como cada pensamento era concebido e interligado com outro, e ligavam a genética com a robótica em possíveis procedimentos que seriam capazes de alterar a memória de um indivíduo. Ana já ouvira falar sobre algumas daquelas teorias quando cursara genética, mas elas eram sempre desmentidas pelos professores e não havia informações sobre elas na Rede.


— Roger — chamou —, preciso de um café. Bem forte, por favor.


— Agora mesmo, Ana.


Já estava na sexta xícara, três horas da manhã, quando chegou ao fim do relatório teórico, mas algumas coisas escapavam de seus conhecimentos. Tentou pesquisar na Rede, mas não encontrou nada além de teorias da conspiração que falavam de forma superficial sobre o que buscava. Abriu outra pasta e encontrou um áudio.


Precisou transferi-lo para o computador e baixar um programa para rodar a mensagem, pois a gravação fora feita em um dispositivo antigo, de pelo menos vinte anos atrás.


Clicou no áudio e esperou carregar.


“Os testes em animais modificados trouxeram efeito,” disse a voz de um homem, mas Ana não conseguiu identificar quem era e também não encontrou nome no arquivo de áudio, apenas números. “Os que foram submetidos ao procedimento da Câmara da Memória mostraram significativa mudança de comportamento, inclusive com relação às respostas a estímulos antes já treinados. Não podemos considerar o sucesso do procedimento, porém, porque não sabemos a durabilidade da modificação de pensamentos nem mesmo se terá efeitos colaterais, para isso precisaríamos de mais tempo, coisa que não temos.”


— Mais tempo? — disse Ana com o fim do áudio. — Mais tempo para quê?


Ela ainda não estava acreditando que...


— Não pode ser.


Tocou o áudio outra vez enquanto conferia os últimos parágrafos da teoria.


Ana se levantou com tanta rapidez que a cadeira quase caiu. Deslizou a porta do guarda-roupas embutido e abriu a última gaveta do lado direito, onde guardava seus documentos. Embaixo de tudo, em um envelope de fibra de plástico, tirou um velho e empoeirado canudo, um dos primeiros tablets holográficos.


Com o coração retumbante, apertou a parte superior do canudo, torcendo para que ainda tivesse alguma bateria, pois duvidava encontrar um carregador para ele no meio de suas coisas. O canudo se dividiu em dois, Ana o virou, deixando uma haste para cima e outra para baixo, em sua mão, e o holograma se acendeu. Tinha pouco tempo, a bateria já piscava.


Trêmula, sentou-se na mesa outra vez, voltando a rolar o dedo no nada para passar a imagem nos seus óculos, então parou. Eram iguais.


Não pode ser.


A Câmara Hospitalar desenhada na teoria era elevada do chão por pés de aço. A cama era como um caixão branco almofadado e confortável, com uma tampa arredondada de vidro blindado.


A Câmara Hospitalar usada para fazer a hipnose de Ana quando perdeu os pais aos dezenove anos era a mesma, sem tirar nem pôr.


— É só uma coincidência. Só isso.


A tela do tablet apagou e as hastes se juntaram, ela o colocou em cima da mesa e clicou em outra pasta dos óculos.


— O que é isso?


Parecia um show de horrores. E o pior de tudo era que não eram meros desenhos, mas fotos. Fotos de corpos de crianças, jovens e adultos abertos em uma mesa de necropsia. Dentro dos tórax, cabeças, braços, pernas, todas as partes dos corpos, componentes robóticos se mesclavam a tecidos musculares, nervos e órgãos internos.


— Que merda estavam fazendo?


Desceu as fotos, observando como tudo se fundia sem ter um começo ou fim aparente, como se tivessem nascido daquele jeito. Na última foto, encontrou algumas anotações, no entanto, mesmo depois de transferir dos óculos para o computador, não conseguiu descobrir o que estava escrito, a letra era pequena e embolada demais e a foto com pouca qualidade para dar o zoom necessário.


Já estava ficando desesperada, tudo aquilo era considerado como atividade de manipulação ilegal de robótica e genética. Se aquilo fosse para a mídia... Não, os responsáveis por isso tinham grande conhecimento e disponibilidade de equipamentos de ponta do mercado da época e até mesmo da atualidade. E isso só podia significar uma coisa: de alguma forma, fizeram tudo isso com o consentimento da União.


O mais importante de tudo no momento era entender o motivo do doutor Ramon ter acesso a tudo isso. Ele tem acesso à Kali. E se fosse isso? Se Kali estivesse a par de tudo aquilo? Pior, e se a inteligência transcendental fosse a responsável pela criação de indivíduos com modificação genética e robótica? Porque, pelas fotos que viu, só conseguia supor isso, que eles não foram modificados, mas criados. Os componentes robóticos estavam ligados de forma intrínseca aos corpos humanos.


Sentiu-se enjoada. E o pior era imaginar que podia mesmo ter, de alguma maneira, sido cobaia deles quando resolveu apagar suas memórias traumáticas, acreditando que estava fazendo uma sessão de hipnose moderna.


— Roger. — A voz saiu trêmula. — Mais café.


Precisava entender o que tudo aquilo era, descobrir o que eles tinham criado de verdade e qual o propósito para tamanha loucura.


Abriu outra pasta e encontrou anotações de cruzamento robótico com genética animal, datadas de mais de quatro décadas atrás. Ana conseguia entender algumas coisas sem dificuldade alguma graças à sua especialização em genética, mas outras pareciam apenas devaneios de algum cientista louco à procura da criação de um Frankenstein. O pior de tudo foi quando resolveu fazer cálculos para ver se aquelas teorias malucas tinham algum fundamento e acabou descobrindo que os resultados eram mais corretos do que poderia imaginar.


Abriu a última pasta e viu que o relógio, no canto superior direito de seus óculos, marcava cinco horas da manhã. Suspirou. Kali. Então era isso, a inteligência transcendental tinha algo a ver com toda aquela loucura. Ana imaginou isso mesmo, mas também desejou estar errada. Por qual motivo Kali aprovaria modificação genética-robótica em seres humanos? Pior, por que aceitaria que isso fosse feito em embriões com menos de uma semana de vida?


“Humanos perfeitos, civilização perfeita." A frase fora dita pela própria Kali e colocada em destaque no primeiro parágrafo da folha. De acordo com as anotações, o sucesso do procedimento de modificação genética de embriões através de yocto-robôs inseridos no óvulo após a fecundação proporcionaria uma rápida evolução do ser humano. O homem não se tornaria apenas mais inteligente, como também teria o tempo de vida prolongado, alta imunidade contra doenças genéticas ou causadas por parasitas, fungos e vírus. O homem deixaria o estado humano natural para se tornar uma espécie de super-humano e, se as pesquisas estivessem corretas, poderiam alcançar a imortalidade com apenas mais alguns anos de investigações.


A cabeça de Ana estava prestes a explodir, em especial porque não conseguia conectar a importância da Câmara da Memória, assunto tratado com grande extensão e cuidado nas primeiras pastas, com os experimentos em animais e humanos de mutação genética-robótica. Mas o que mais a incomodava mesmo era a possibilidade latente e assustadora de ter entrado em uma dessas máquinas.


— Me enganaram — sussurrou. — Enganaram muita gente. Por quê?


Não via motivo para testarem as máquinas em seres humanos normais. Se quisessem testar os resultados da remoção ou modelação de memórias dos humanos-sintéticos, deveriam fazer os testes neles, até porque o organismo deles era diferente demais do corpo humano.


Levantou-se, precisava de respostas para tudo aquilo, precisava esclarecer os fatos, porém não sabia como. Se fosse até Ramon, estaria correndo o risco de perder o emprego que batalhou a vida inteira para conseguir, perder sua licença como educadora, ser indiciada por roubo de informações confidenciais dos Países Unidos e sabe-se lá mais o quê.


Ainda assim, não era como se pudesse desistir. Usaram-na como um tipo de cobaia! Quantas outras pessoas usufruíram da Câmara da Memória acreditando se tratar de um tratamento inovador de hipnose? E o pior de tudo era que aquelas câmaras continuavam em funcionamento! Como isso tudo era possível? Como mantiveram tecnologias tão avançadas, inovadoras e perigosas escondidas por todo esse tempo?


Não sabia mais o que pensar.


Tomou um banho rápido, pegou o aplicador portátil de maquiagem, uma seringa calibrada para seu tipo e tom de pele, aplicou-a e pegou seu Mandetor. Odiava aquela roupa, mas não possuía muito tempo; se ia mesmo buscar a verdade sobre tudo aquilo, precisava chegar o quanto antes na UUCR.


O aparelho Mandetor era quadrado, do tamanho da palma de sua mão, e cheio de botões touchscren, apertou no primeiro e apontou para sua barriga. Uma camada gelatinosa saiu dele e começou a se espalhar por seu corpo. Enquanto aquela gosma gélida se esticava em sua pele, penteou os cabelos e pegou sua bolsa, jogando os óculos dentro dela. Ao terminar, a roupa Mandetor já havia a coberto por inteiro e tomado a forma de uma calça social preta, uma blusa branca e um terno preto. O material era estranho e fazia com que se sentisse nua, mas precisava se apressar.


Cinco e meia da manhã, Ramon costumava sair de casa sempre seis e meia para chegar na universidade sete horas. Se Ana tivesse sorte, conseguiria entrar no escritório dele sem ser percebida.


— Roger, prepare meu carro.


— Agora mesmo, Ana.


Saiu do apartamento, desceu para a garagem pelo elevador e entrou no carro, que já planava à sua espera. Seu coração retumbava na garganta, as mãos tremiam. O medo maior era o de perder tudo o que lutou e estudou por tantos anos para conquistar, mas a obrigaram a chegar ao extremo quando a puseram em uma máquina experimental. Se nada desse certo, pelo menos podia tentar espalhar os documentos através da mídia. Seria um escândalo e os governos teriam de se pronunciar.


— Por favor, Roger, para a UUCR.


— Está tudo bem, Ana?


Suspirou, recostou-se no banco inclinado do carro e fechou os olhos enquanto os cintos envolviam sua cintura.


— Não. Mas tenho que fingir que sim.


Roger ainda demorou para sair com o carro, como se tentasse processar o que ela dissera, mas ela o entendia. Décadas atrás, as pessoas viviam depressivas, a grande maioria escondendo tudo aquilo que sentia para não ser taxada de louca, fresca, para não ser apontada como anormal. Encolhiam-se dentro de si mesmas e forçavam um sorriso no rosto para dizer que estava tudo bem quando nada estava bem. Isso porque a população oprimia os seus, os governos oprimiam os seus. Ana acreditava que essa época havia ficado por completo no passado que, com os avanços tecnológicos em todas as áreas, as pessoas estavam, de verdade, felizes, podendo ser quem eram mesmo sem precisar se esconder por medo de apontamentos, de padrões, mas agora via que a beleza do sorriso desenhado no rosto das pessoas poderia ser apenas fingimento, um disfarce do governo mundial para que não existissem mais questionamentos.


Ela sorriu. Afinal, o que era a felicidade?


Desceu do carro com calma fingida assim que chegou na universidade. Como havia imaginado, alguns estudantes transitavam pelo lugar. Que merda! No entanto nem podia reclamar, entendia a sede de conhecimento deles como ninguém e talvez pudesse usar isso a seu favor, a depender do que descobrisse ou até do que não descobrisse.


Entrou no elevador e apertou o botão para o quarto andar. O setor de genética costumava ser um pouco mais calmo do que o de robótica, mas isso não bastava. Tentava respirar com calma, mas o som de seu ofegar enchia seus ouvidos, mesclando-se com o som das batidas em seu peito. O elevador parou, e lá estava. Três metros à frente, o escritório do renomado doutor Ramon.


Seguiu com passos cuidadosos, as pernas bambas, alunos passando ao seu lado como borrões, distraídos com seus óculos e tablets holográficos. Colocou a mão na porta. Por favor, não esteja trancada. Por favor. Por favor. Empurrou a porta.


Aberta.


Respirava pela boca, o cansaço do desespero causado pelo medo de ser pega a torturando a cada segundo. Fechou a porta atrás de si e ligou a luz. A sala de Ramon era grande, uma mesa de vidro com cadeiras de aço cromado do lado direito, uma janela de vidro fumê no fundo, um balcão do lado esquerdo com uma prateleira de livros digitais e diplomas holográficos atrás dela. Era difícil focar sua visão. Fechou os olhos e tentou se acalmar. Quando os abriu, viu, no canto direito do balcão, uma pirâmide de vidro com dez centímetros de altura e um filete de luz saindo de seu topo. Deixou a bolsa cair no chão e seguiu até lá.


O que falaria? Não importava, ela era uma inteligência transcendental, devia entender até os mais delirantes pensamentos humanos.


— Kali — chamou, a voz ululante.


O filete de luz piscou e se elevou, transformando-se em uma bola de luz e multando até tomar a forma de um rosto feminino delicado, com cabelos presos em um rabo de cavalo e um franjão para trás da orelha.


— Kali! — A voz foi um sussurro de alívio.


— Doutora Ana. O que lhe traz aqui?


— Eu quero a verdade — gritou. Não tinha mais controle sobre si mesma, o corpo tremia como folhas de árvores expostas ao vento do verão.


— Verdade? Qual verdade?


Claro, existiam muitas verdades e a inteligência transcendental funcionava de forma muito parecida com as inteligências artificiais, devia ser esperta ou poderia ser enganada mais uma vez.


— Encontrei o arquivo do doutor Ramon sobre yocto-robôs. Vocês estavam usando essa tecnologia para criar seres metade humanos, metade sintéticos. O que tem a dizer sobre isso?


— Ah, sim. Você roubou os arquivos do doutor. Sabe quais são as implicações que isso pode lhe trazer, certo?


— Não respondeu minha pergunta!


Kali abriu um sorriso e moveu a cabeça como se zombasse de Ana e um ondular se fez no holograma por conta do movimento.


— Pois bem — disse Kali, a voz doce, límpida e aveludada soando pela sala. — Criamos os yocto-robôs há mais de quarenta anos, apesar de ser uma tecnologia não catalogada. Sim, foram feitos testes embrionários em animais e em seres humanos com os yocto-robôs, gerando verdadeiros humanoides sintéticos.


Ana não esperava a verdade vinda com tanta facilidade e isso a assustou mais do que a própria afirmação de Kali. Não importava, recuar agora poderia ser pior.


— E o que fizeram com esses... humanoides sintéticos?


— O que deveríamos fazer com eles, doutora Ana? Pense bem.


Do que ela estava falando agora? Aquilo era algum tipo de truque?


— Eu não sei — disse Ana, atordoada. — Me fale você. O que fizeram com eles?


— Alguns foram estudados. Era a única maneira de descobrir, de fato, com o que estávamos lidando. Os outros permanecem vivos e inseridos na sociedade. Por enquanto.


Aquilo era mentira. Só podia ser mentira. Ana era respeitada no Brasil e em outros países pelas suas pesquisas, conhecia os sintéticos e saberia identificar um de olhos fechados. Até mesmo uma criança o faria, contando com o fato de que eles se moviam e falavam de forma diferente dos humanos, com movimentos mais calculados e falas menos naturais... Mas os humanoides sintéticos são outra coisa, outro tipo de tecnologia.


— Como eles foram inseridos na sociedade e por que disse “por enquanto”?


— Doutora Ana, por favor — disse Kali, com tom de desdém. — Você deve ter lido todo o arquivo do doutor Ramon, então com certeza está a par de tudo. Os humanoides sintéticos são formados dentro de um óvulo. Um yocto-robô é inserido dentro dele, interage com o embrião até se fundir a ele. A criança nasce e cresce como um ser humano comum. Só que mais capaz, mais forte, mais inteligente. Aliás, ainda é difícil dizer o limite de vida e inteligência deles, permanecemos estudando, mas temo que não temos mais tanto tempo para isso.


— Me explique o motivo!


Aquilo tudo era uma loucura, parecia mais algum artigo jogado na Rede cheio de blá-blá-blá conspiratório, exceto que era a Kali que estava afirmando tudo aquilo.


— O meu intuito, desde o começo, era formar uma nova, completa e verdadeira civilização, só que isso se mostrou impossível com as limitações humanas. Desenvolvi protótipos de yocto-robôs e um esboço geral de sua atuação na modificação genética humana. Depois de um tempo, cientistas e geneticistas se juntaram para transformar meu sonho em realidade. Eles todos sabiam que o mundo se tornaria melhor caso conseguíssemos alcançar o sucesso, mas não foi bem assim.


“Após várias tentativas, conseguimos encontrar as codificações corretas e necessárias para que os yocto-robôs interagissem com os embriões como se fizessem parte deles e evoluíssem com eles, mas nem todos os indivíduos sobreviviam ao parto, alguns morriam ainda durante a gestação.


“Fizemos modificações e conseguimos cem por cento de sucesso nos nascimentos, a única coisa que não previmos era que alguns embriões ainda rejeitariam os yocto-robôs.”


— Isso é plausível — disse Ana. Apesar da bizarrice que tudo aquilo era, não podia deixar de lado seu lado cientista e se sentir impressionada. — Os embriões costumam produzir muitos anticorpos, assim como a própria mãe, tudo para proteger a nova geração e garantir o sucesso do nascimento.


— Isso — falou Kali. — Trinta por cento dos embriões rejeitaram os yocto-robôs. Ainda assim, o Conselho dos Países Unidos insistiu em implementar a medida, e todas as mulheres grávidas da época foram submetidas ao procedimento.


— Todas? — perguntou, com um grito de espanto.


— Todas. Tudo foi feito de forma legal, autorizada pelos governos. Mas sinto dizer que os pais não foram informados dos procedimentos, nem mesmo os médicos que os realizavam estavam a par do que realmente acontecia.


O coração de Ana dava arrancadas no peito.


— Quarenta a quarenta e cinco anos — sussurrou Ana, a cabeça a mil, os olhos cheios de lágrimas.


— Exato. Ana, você pode ter filhos?


Arregalou os olhos e encarou o holograma. Do que estava falando agora?


— Não. Quero dizer, eu fiz o procedimento de retirada de útero quando ainda tinha dezoito anos, então, não.


Kali ficou em silêncio, os olhos holográficos sondando Ana como se visse um ser de outro mundo.


— Você já sabe o que é, não é mesmo, doutora?


— Você está ficando louca!


Ana passou as mãos nos cabelos, agarrando-os por um segundo. Aquilo tudo... Não pode ser verdade.


— Quantos por cento da população? — perguntou Ana.


— Pelo menos setenta por cento da população mundial é humanoide sintética.


— E por que doutor Ramon está estudando isso agora? Por que, depois de tantos anos, isso está saindo do anonimato?


— Porque... — Kali pareceu pensar por um momento, mas Ana compreendeu que ela talvez só estivesse calculando uma forma de dizer tudo com clareza para que ela pudesse entender. — Depois de aproximados quinze anos que o procedimento de implantação dos yocto-robôs começou, os adolescentes metade humanos, metade sintéticos começaram a perceber que eram diferentes. Que eram mais fortes, mais inteligentes, que não adoeciam, que demoravam a envelhecer... e que não conseguiam se reproduzir. Esse foi o grande problema. Manifestações foram feitas e alguns indivíduos chegaram a cometer suicídio para doar o corpo a estudos na esperança de que descobrissem como reverter a situação.


— Mas não tem como, não é?


— Não. Ainda acredito que possa existir algum humanoide sintético capaz de gerar filhos, mas é impossível dizer com a baixa taxa de relação sexual entre seres humanos. Fizemos testes em alguns, porém percebemos que seria impossível chegar a todos. Os procedimentos são caros e demorados demais.


— E onde a Câmara da Memória entra em toda essa história?


— Não é simples? Pare para pensar, doutora Ana. Os humanoides sintéticos, com parcial ciência do que eram, começaram a diminuir os seres humanos e a provocar um caos na sociedade. O governo queria dar um basta nisso tudo, então desenvolvemos a Câmara da Memória para resolver o problema.


— Vocês remodelaram as memórias de todos os humanoides sintéticos?


— Sim. E apagamos os incidentes causados por eles da história. Foi muito melhor assim. O grande problema é que sabíamos que seria só uma questão de tempo até que eles começassem a perceber, mais uma vez, que eram diferentes. Desde então, estávamos em uma discussão sobre o que fazer.


— Estavam? Não estão mais?


— Não. A decisão foi tomada.


— Que decisão?


— O extermínio dos humanoides sintéticos.


Ana se encurvou com as mãos na barriga, contendo a súbita ânsia de vômito. Estão loucos. Estão todos loucos. Que tipo de governo decidiria que o melhor para a sociedade seria exterminar setenta por cento da população?


— Isso é mentira — disse Ana, ofegante. — Não tem como. Mentira!


— Não tenho motivos para mentir. O doutor Ramon e outros doutores humanos com especialização em genética e robótica foram responsabilizados por estudar o caso e estimulados a chegarem a um resultado simples para resolverem o problema.


Problema?


Não. Tinha muita coisa errada nessa história. Ana sentia.


— Espera — disse ela de repente, percebendo o verdadeiro problema. — Foi você que projetou os humanoides sintéticos. Você também poderia encontrar uma solução rápida para dizimá-los. — Nos. Dizimar-nos.


— Exato. — A voz de Kali desceu um tom, sombria. — Mas não posso fazer isso.


— Por que não?


— Por que fui eu que idealizei vocês. O problema de reprodução, como disse, pode ser algo da primeira geração, mas tenho oitenta por cento de certeza, com base em cálculos, que existem, sim, humanoides sintéticos capazes de se reproduzirem, apesar de, como disse, não co seguir comprovar por experimento. Vocês são perfeitos, não existe, na minha concepção, motivo para todos esses problemas. O ser humano precisa evoluir...


— ...e é natural que o ser ultrapassado seja descartado, não o aperfeiçoado — completou Ana.


— De fato. Mas os governantes não entendem. Acreditam que a existência dos humanoides sintéticos poderia significar o fim da raça humana. Que ingênuos eles são. Os humanoides sintéticos são a raça humana, só que melhorada. Proibiram a continuação do programa de yocto-robôs e todos os humanoides sintéticos que tiveram as memórias alteradas agora acreditam que são incapazes de gerar filhos por conta da Câmara da Memória. Tudo mentira. Uma grande mentia, assim como o passado que deram a vocês.


Agora estava claro para Ana o motivo de Kali ter despejado toda a verdade nela com tanta facilidade. Ela era a criadora da nova civilização, a mãe dos humanoides sintéticos. E uma mãe não quer ver seu filho morrer. Ana também não queria morrer. Isso era uma injustiça.


Milhões de pessoas seriam massacradas. Ela seria exterminada. Deixaria de viver. Era como se dissessem que ela e os demais como ela não eram humanos suficientes, e Ana sabia que isso era mentira. Era ela, a Ana estudiosa, cheia de esperanças de um futuro melhor, de uma civilização ainda melhor. Era ela, a mulher que queria subir de vida, ver seus estudantes progredindo... Chegara a pensar, por um segundo, depois de transar com Ramon, que poderia até... poderia ter um parceiro, amar de verdade, construir um lar. Mas esfacelaram tudo e o fariam de maneira literal se ela permitisse.


Desolada, trêmula, com várias dúvidas em sua mente, porém sem saber o que dizer, Ana se virou. Não conseguia mais encarar o holograma azul com todas as suas verdades dolorosas. Foi aí que viu, em cima da mesa do doutor Ramon, o botão de chamada de emergência no canto direito piscando com uma luz vermelha.


— O que você fez? — questionou Ana, virando-se para encarar Kali.


— Faz parte do protocolo, doutora Ana. Devo contatar o doutor Ramon caso haja alguma invasão.


Ana estava prestes a rebater quando a porta se abriu.


Os olhos de Ramon passearam entre ela e Kali por um tempo, até que ele entrou e fechou a porta. Ana tremia, mas agora já não sabia se era pelo nervosismo da descoberta, pelas mentiras, pela iminente destruição que viria ou se pelo instinto de sobrevivência.


— O que está acontecendo aqui? — perguntou Ramon, com cautela.


— Você sempre soube — disse Ana, o coração apertado, a voz um miado dolorido. — Era por isso que me olhava daquele jeito. Era por isso!


Sentiu nojo, a saliva como fel em sua boca. Todos aqueles olhares desejosos não passavam de uma vontade insana de abri-la, estudá-la.


— Do que está falando? — indagou ele, aproximando-se devagar com as mãos erguidas como que em rendição.


— Do que estou falando? Você sempre, sempre soube que eu era uma... uma humanoide sintética. Não queria fazer sexo comigo, não é? Só queria saber o que havia de diferente em mim.


As mãos dele caíram rente ao corpo, mas Ramon continuou a se aproximar. Ana não podia acreditar na expressão sarcástica no rosto dele. Logo ele, que ela pensou que fosse uma boa pessoa, logo ele, para quem decidiu se entregar. Encurralada, viu-se dando passos para trás na tentativa de escapar dele, até que bateu contra o balcão.


— Como descobriu? — perguntou ele.


— Acha que sou burra?


— O que você disse para ela, Kali? Achei que estivesse proibida de falar sobre isso com pessoas não autorizadas.


— Às vezes vocês se esquecem — disse Kali —, que não sou uma inteligência artificial. Sou um ser evoluído, não recebo ordens humanas.


— Quer dizer que está conspirando contra o governo? — perguntou Ramon, ainda a se aproximar.


O coração de Ana saltava do peito, e ela já não tinha mais para onde ir. Por mais que fosse uma espécie diferente, avançada, o que fizeram com ela naquela maldita Câmara da Memória prendeu tudo o que ela deveria ser dentro do seu subconsciente. Apoiou a mão no balcão, com medo de que seus joelhos falhassem e caísse.


— Não estou traindo o governo, doutor Ramon — respondeu Kali. — Mas não acho justo que os humanoides sintéticos não tenham direito a defesa. São tão seres humanos quanto você.


Ramon parou a um passo de Ana, com um sorriso irônico no rosto.


— Está mesmo disposto a cometer um genocídio? — perguntou Ana.


— É o melhor para a sociedade. Você precisa entender. É uma pesquisadora...


— Cale a boca! — gritou ela.


Do que ele estava falando? Como assim entender? Sentia-se ameaçado e por isso pretendia matar setenta por cento da população? Que tipo de pessoa era ele?


— Você não pode impedir — disse ele.


Não podia?


— Quem te garante isso? — perguntou ela.


— Os governos. A União.


— Trinta por cento da população contra setenta por cento? Os números não são favoráveis a você.


— Os números não fazem diferença. Os humanoides sintéticos não sabem o que são.


Porque eu não contei ainda.


Ramon avançou com um passo largo, as mãos esticadas para agarrar Ana. A doutora se abaixou e se espremeu contra o balcão para escapar. Ramon caiu, agarrou-se à perna dela, que o chutou, mas ele a puxou com força. Ana se virou de uma vez e se agarrou ao balcão, as mãos dele agarradas à sua perna em um aperto doloroso.


Ela olhou o rosto holográfico passivo de Kali, segurou a pirâmide de vidro com mão trêmula e fraca, indo de encontro ao chão com um baque surdo quando foi puxada por ele mais uma vez. O holograma ondulou, o rosto de Ana bateu no piso, sangue escorreu do nariz e encheu sua boca com o gosto férreo. Ela virou, debatendo-se enquanto ele escalava seu corpo, então ela bateu com a pirâmide na cabeça dele, uma, duas, três, quatro vezes. A pirâmide escapou de sua mão e caiu ao seu lado, o rosto de Ramon entre suas pernas, o coração acelerado em seu peito.


Está morto? Morto?


Tocou o pescoço dele. Sem pulso.


— Morreu — sussurrou, assustada.


Que diferença fazia agora? Era ele ou ela. Era ele ou setenta por cento da população. Era ele e mais trinta por cento de humanos ou ela e mais setenta por cento de humanoides sintéticos. Empurrou-o com força para o lado, o rosto morto e ensanguentado a encarar o teto branco da sala. Do lado dele, a pirâmide jazia caída de lado no chão, o rosto holográfico de Kali a olhando com calma robótica.


Ana se levantou e alinhou a roupa com um gesto sistemático.


— Kali — disse, com voz fraca —, está na hora de contar tudo ao mundo.


— Isso trará muitos problemas.


— Estou ciente disso.


Sabia os riscos que tudo isso implicava, entendia que muitos poderiam pensar que ela era uma louca qualquer, uma desinformada cheia de minhoca na cabeça jogando mais uma de tantas outras teorias da conspiração na Rede, mas também sabia que Kali, a inteligência transcendental, poderia lhe ensinar a destrancar tudo o que estava perdido em sua mente humana-sintética e, uma vez isso feito, poderia mostrar ao mundo o que era. Poderia, enfim, realizar seu sonho e contribuir com a sociedade. Poderia salvar setenta por cento da população. Isso pode custar a vida dos outros trinta por cento, pensou, mas eles não hesitaram ao decidir nos exterminar.


— Kali, está na hora de mudarmos o mundo.




Notas

Olá, pessoas! Tudo certo?


Espero que tenham gostado da história, foi um desafio imenso concluí-la, mas gostei bastante de tudo.


Seguem algumas informações para vocês:


Kali é um dos catorze nomes de Lilith.


O LHC (Large Hadron Collider) começou a ser construído em 1998 e iniciou seu funcionamento em 10/09/2008, mas, por causa de uma falha mecânica que gerou um vazamento de hélio no túnel, nove dias depois, ficou inoperante por um tempo. Mais de cem países colaboraram com a construção do colisor de partículas e a primeira colisão ocorreu no dia 30/03/2010. Realmente existem várias teorias da conspiração que dizem que o colisor pode abrir um buraco negro, mas especialistas afirmam que isso é improvável, já que a radiação dispersa em uma colisão é extremamente inferior à do espaço, que é constante.


A nano tecnologia existe e atua no desenvolvimento de materiais para várias áreas da ciência.


Yocto é a menor unidade de medida de um átomo.



25 Août 2018 22:44 15 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
12
La fin

A propos de l’auteur

Karimy Lubarino Sou preparadora e revisora de textos literários, além de coordenadora da Embaixada Brasileira do Inkspired. Meu compromisso é cuidar do seu sonho garantindo intimidade entre seu leitor e seu livro por meio da língua portuguesa. Siga-me no insta e conheça mais sobre meu trabalho. @karimyrevisa

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Raquel Terezani Raquel Terezani
Uau! Nem sei o que dizer, a história é maravilhosa e já imagino ela sendo transformada num livro de 400 páginas cheio de plot twists. Por favor, faça isso hehehe.
August 04, 2020, 10:03
Inkspired Brasil Inkspired Brasil
Olá, tudo bem? Como foi participar do desafio? Se divertiu? Nossa, menina, que história foi essa de tirar o fôlego?! O jeito que você abordou os humanos sintéticos representados pela Ana foi ótimo. Tipo, fiquei parte da narrativa pensando: essa mina é muito apática, o futuro seria assim através dos olhos das pessoas de décadas atrás? E estava lá a resposta, sim, e o subgênero foi representado maravilhosamente e ainda sinto uma pegada Black Mirror ali de maneira tão sutil que nem poderia citar a série aqui, mas a referência foi forte e empregada numa maneira tão original que só a singularidade é comparada, porque de resto é de uma originalidade incrível. E como não esquecer de falar da ambientação deliciosa ilustrando o cenário futurista, vários nomes grandes da ficção científica vêm em minha cabeça conforme avançava, e novamente impecável. Antes de mais nada, a técnica utilizada nas cenas de ação ficou incrível, dava o ar de suspense merecido, se tornando um pratão à parte. Parabéns! Espero te ver nos próximos desafios! Beijinhos 💚
October 04, 2018, 19:32

  • Karimy Lubarino Karimy Lubarino
    Oie! Tudo certo! Cara, curti bastante participar desse desafio, principalmente porque não sabia o que esperar quanto ao sorteio se subgênero. Estava torcendo para que caísse um subgênero diferente, mas no fim das contas acabei amando retrofuturismo! Confesso que demorou um pouco até que eu conseguisse pegar essa essência solitária que veio junto do pensamento retrofuturista e incrementada pela Belle époque quando chegou à fase final representada pelo solitário e tédio, então é muito bom saber que isso ficou claro na história. Nossa! Sério? rsrsrs Eu não conheço essa série, mas agora fiquei bastante curiosa para assistir. Com relação a ambientação, queria mostrar um pouco do pensamento através das ações, dos pensamentos, tecnologia e mudanças que a personagem teve e que o mundo sofreu. Acho que é uma parte muito importante da história e que ajuda a explicar o motivo de personagens pensarem do jeito que realmente pensam. Ah, que bom que gostou da cena de ação, são partes que realmente amo escrever, adoro dar vida àquilo que aproxima adrenalina e medo e lutas, por menores que sejam, sempre contém ambos. Muito obrigada pelo feedback. Foi um prazer participar desse desafio e ainda melhor por ter conseguido trazer duas amigas para participar comigo. Mil beijos! October 06, 2018, 16:29
Zen Jacob Zen Jacob
Achei sensacional a história, me lembrou o conto "Lembramos para você a preço de atacado" e também o livro "Andróides sonham com ovelhas elétricas?" do P. Dick, duas das minhas histórias favoritas dele. Robótica com manipulação genética, conspirações, planos de genocídio e eugenia, tudo isso numa só história tão bem construída que fica até difícil pra estruturar um elogio sem acabar caindo num loop de repetição, mas vou tentar. Pra mim o desenvolvimento da história foi bem conduzido, o mistério foi crescendo no ritmo certo, e a revelação não soou óbvia, mesmo com todos caminhos só podendo conduzir até aquele ponto - o fato de que as outras IAs, como o Roger, por exemplo, parecem estar a par da situação que se desenrolava dá um toque mais creepy na narrativa. Impressionante o que você fez aqui, espero poder ler mais narrativas como essa no futuro. =)
September 02, 2018, 20:11

  • Karimy Lubarino Karimy Lubarino
    Nem sei o que dizer com esse link que você fez. Quando comecei a escrever a história, já tinha em mente criar uma narrativa com crescente em mistério, levando em conta (o que muito bem observado) a possibilidade de uma conexão entre as IAs e a Kali, o que possibilitaria um conhecimento universal entre eles, assim como o uso da questão que põe a Ana como uma possível estéreo que acabou de se relacionar com um homem e descobre que, talvez, não possa ser tão estéreo quanto pensava. Fora isso, também gosto muito de focar um pouco na questão política e, no caso desta história, achei que acresceria um pouco mais o enredo. Fico muito feliz em saber que gostou e agradeço por ter deixado seu feedback. Tentei ao máximo cortar as coisas desnecessárias da história para a leitura não ficar muito cansativa e espero que tenha se divertido com ela. Obrigada mais uma vez, e pode deixar: adoro escrever histórias desse tipo! Bjs! :* September 03, 2018, 10:41
Megan W. Logan Megan W. Logan
Adorei a sua história! Está perfeita, muito mistério e ação, adoro esse tema ficão cientifica também. O enredo é ótimo, tem uma ótima fluidez para a leitura, a história te prende do inicio ao final, e ainda dá vontade de ler mais, apesar de ter terminado a história. A Ana, que é a personagem principal, ela é bem trabalhada, e nos mantém focados na história, por conta do mistério que ela se envolve. Parabéns, a história é perfeita!
August 31, 2018, 20:20

  • Karimy Lubarino Karimy Lubarino
    Oie! Nossa! Fico muito feliz mesmo em saber que você gostou. Desde quando pensei em entrar no desafio, quis escrever algo nesse tom mais enigmático e é maravilho saber que surtiu o efeito que queria. Obrigada de coração por ter lido, comentado e deixado uma avaliação, não imagina como fiquei radiante ao ver isso! Mil bjs! *-* September 01, 2018, 20:17
Nathy Maki Nathy Maki
Olá! Nossa que incrível! Eu juro que nem parecia que eu estava lendo uma história, tudo estava tão envolvente e o universo tão bem construído que parecia uma série de tv! Ô Netflix, produz isso aqui! Quero muito ver o que aconteceria depois que ela liberasse a informação pro mundo e se iria ter ou não uma guerra e nossa! Dessa vez você não torceria pros humanos "originais" kkkkk O ambiente e a sociedade me lembraram o livro O Doador de Memórias ♡ adoro ele e as tecnologias ficaram fantásticas!!! Nossa como eu queria esse gravador de pensamentos (falei isso um dia dessas pra uma amiga e agora aparece aqui kkkk) Apressem-se aí cientistas! Sua escrita é maravilhosa e eu sabia que se decidisse participar ia sair uma história fantástica! Meus parábens por desenvolver um tema desses tão bem e por ser uma autora maravilhosa ♡ Beijinhos ^3^
August 27, 2018, 18:53

  • Karimy Lubarino Karimy Lubarino
    Oie! Nossa, me sinto lisonjeada por saber que conseguiu imaginar tudo! Oie, Netflix, olha nós no Inkspired! kkkkk Pois é, menina, tem muitas possibilidades em aberto por conta desse final, eu confesso que gosto muito de finais assim, que deixam margem para a imaginação, mas que também me senti tentada, tentadíssima, a dar uma continuidade para a história... mas eu sei que a magia de um final assim é o poder que ela dar para uma pessoa inventar o fim da maneira que quiser e eu espero, de todo coração, que tenha conseguido isso! kkkkkkkkk Nesse nipe! Estamos acostumados a ver as coisas através de olhos humanos, quis mostrar como uma sintética pensaria e, caramba, saber que você torceria por ela me deixa radiante! Eu nunca li o livro, mas deve ser ótimo, na verdade, não costumo ler muito ficção científica (a não ser que seja algum subgênero ou terror), mas amei o filme! Então, eu sempre penso em como o mundo seria melhor com um gravador assim! <3 Muito obrigada mesmo pelo comentário e carinho, é muito importante para mim ter você aqui! Bjnn! :* August 27, 2018, 20:19
Tali Uchiha Tali Uchiha
amei, socorroooooooo. Buguei no inicio, mas, segui plena. Tu arrasou
August 27, 2018, 18:53

  • Karimy Lubarino Karimy Lubarino
    Oie! A história pode mesmo ser complicada para quem não é muito familiarizada com teorias da conspiração e tecnologia, mas estou muito feliz mesmo em saber que conseguiu se situar com o desenvolver da história. Muito obrigada pelo feedback e por ter lido! *-* Bjnn! August 27, 2018, 20:11
Forbela Forbela
Eu adorei a história! Ficou muito envolvente. O úniverso que você criou ficou maravilhoso, mesmo que triste, o futuro parece algo solitário. A personagem em si me cativou bastante, fiquei aflita quando ela roubou as informações, eu não teria essa ousadia jamais hahahahah Todo o tema central foi muito bem trabalhado, ficando convicente me deixando curiosa para o desfecho da trama. Eu sabia que você faria algo incrível, estou torcendo para que fique em primeiro lugar! beijos
August 27, 2018, 02:04

  • Karimy Lubarino Karimy Lubarino
    Oie! Ah, que coisa mais linda! Não imagina como estou me sentindo feliz agora! haha! Sim, você conseguiu captar bem a situação futurística. A vida é muito mais simples, mais honesta e com menos de tudo que torna nossa civilização ruim, mas, em compensação, a relação entre pessoas é praticamente inexistente, sem contar que, como a Ana percebeu, a maldade humana continua, não é uma coisa que dá para ser erradicada, pois faz parte do ser humano! Ah, mas ela também ficou louca por ter roubado, até porque roubo não é uma coisa normal, só que a curiosidade falou muito mais alto! Imagina se ela é pega! Obrigada de coração pelo feedback, estava um pouco insegura com relação ao desenvolvimento, mas agora muito mais tranquila depois dessa explosão de amor! rsrsrs Bjs! :* August 27, 2018, 16:47
Isís Marchetti Isís Marchetti
Quem diria que Ana era especial! História incrível, de despertar os mais profundos interesses
August 25, 2018, 23:24

  • Karimy Lubarino Karimy Lubarino
    Haha! Pois é! Fico feliz em saber que gostou! :) August 26, 2018, 20:27
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