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Marina Benzem�


Por: Luís Augusto Rebelo da Silva


Histoire courte Tout public. © Luís Augusto Rebelo da Silva

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INTRODUCÇÃO

Dicebam que: in nidulo meo moriar, et sicut palma multiplicabo dies.

Job cap. XXIX v. 18

As pequenas composições, que hoje principiâmos a publicar, são de um homem, que nunca do mundo quiz mais do que a tranquilla obscuridade, que faz de ordinario o supplicio de tantas vaidades. Ministro sincero de um Deus de paz, assentou-se aos pés da cruz e d'ali viu aproximar o inverno da velhice, com a mesma serenidade com que tinha visto passar as illusões da juventude, e com que havia atravessado os perigos da edade viril. Satisfeito com a sua pobreza, não invejava (se é que invejou alguma cousa!) senão a uncção apostolica e a eloquencia persuasiva dos primeiros confessores da fé{6} nas grandes epochas da regeneração moral do mundo. Chegado quasi ao termo do seu desterro, quando a hora da liberdade estava a soar, reclinou a cabeça para acordar sem dôr na manção do jubilo, patria suspirada de suas mais doces esperanças, unica impaciencia de uma alma, que longe da morada celeste se entristecia captiva.

A virtude n'elle era risonha e desassombrada. Nascia de dentro, não aspirava a grangear applausos, nem se desvanecia com os respeitos mundanos. Se alguma vez peccou foi por excesso de bondade. Nunca ouviu queixas que a sua bocca se não abrisse para as suavisar, nem viu lagrimas, que a sua mão as não enxugasse logo. Por isso em muitas occasiões, elle, o ancião experimentado, revellava a simplicidade da pomba, enganado pelos artificios dos hypocritas. Por mais que o advertissem, a sua caridade não se cansava, e embora faltasse a si, nunca faltou aos pobres. Se o convenciam de erro, se lhe mostravam a illusão, sorria-se, e respondia: «Louvado seja Deus! Ainda bem que até me deu para esses!» Dito isto cheirava com pausa a sua pitada de esturro, e ia catar, ou alporcar os craveiros, até o relogio do estomago, unico relogio que havia em casa, o avisar de que eram horas da refeição. Vinha então recolhendo-se de vagar, alargava o passeio pela cosinha, rondando o almoço ou o jantar, não sem se arriscar a alguma jaculatoria da tia Brizida, matrona sexuagenaria,{7} que tinha a seu cargo a economia domestica e o baixo e mixto imperio da dispensa e da capoeira.

A ultima doença do padre Vigario, occasionou-a o zelo pelo serviço d'Aquelle, que nunca fez tambem esperar os desvalidos. Por baixo de immensa cerração, caindo a chuva em torrentes, e soprando o vento, frio e agudo, metteu-se á meia noute ao caminho da serra, para levar as consolações da Egreja a uma de suas ovelhas, que agonisava em desabrigada choupana. Á volta o corpo tremia sacudido por uma sesão de febre, e o rosto vinha mais pallido, do que a face de um moribundo. Deitou-se para não se tornar a levantar.

Ferido no seu posto, como soldado intrepido, elevou o espirito, abençoou a enfermidade, e bem com Deus e com os homens, ao terceiro dia adormeceu para sempre. O Vigario levou todos os bens comsigo. Para se sepultar foi preciso que os visinhos fizessem uma derrama. Mas em compensação nunca houve funeral tão rico de prantos e louvores. Despovoaram-se os logares da freguezia e dos arredores para o acompanhar, e quando o corpo saiu do presbyterio, o chôro de toda a aldeia honrou aquellas cinzas tão amadas. Com razão! Não era o velho parocho o pae, o amigo, o bemfeitor de todos? Em vida constituira os pobres seus herdeiros, por isso não deixava de seu mais do que a sobrepeliz e a batina remendada, em que o amortalharam, e o{8} crucifixo de marfim, que unira ao coração na derradeira despedida.

O premio não foi só a corôa de gloria!... Por mais desvairada, ou corrompida, que uma geração corra ao precipicio, os exemplos salutares sempre se lhe gravam na lembrança, e a rudeza dos camponezes, apezar dos vicios esquecidos nos idilios, não é usualmente a que resiste mais á proveitosa lição das boas obras. Pelo menos assim aconteceu na parochia. A ama, á qual o Vigario legára sómente a memoria de suas virtudes, encontrou logo a hospitalidade, affectuosa, não de um, mas de muitos habitantes, que se lhe offereceram para acolherem sua velhice. O cão do Pastor, companheiro constante de tantos dias de fadiga, tambem achou quem se condoesse, e o fosse levantar da sepultura sobre que gemia saudoso. As pobres alfaias da casa, o breviario usado, os poucos livros da estante, e um, ou outro movel de seu uso quotidiano, disputados como reliquias, repartiram-se á sorte por evitar contendas, e hoje mesmo, depois de largos annos, o tempo, que tudo gasta, não amorteceu ainda a recordação do sacerdote exemplar, cujos ossos repousam á sombra dos cyprestes plantados pelas suas mãos no cemiterio da aldeia.

Este foi o homem e o ecclesiastico venerando.

Do poeta, que era, que sempre tinha sido, quasi sem o cuidar, raras, rarissimas pessoas dariam noticia.{9} Fugia da fama que dão as lettras, com um cuidado egual pelo menos áquelle, com que se furtava envergonhado ao pregão da sua caridade. Pejava-se tanto de si, e por tal receava ser visto, que se a direita se escondia da esquerda nas esmolas, a penna não se occultava menos discreta quando escrevia. O padre prior tinha pouco vagar para livros volumosos. Nos curtos ocios que as obrigações lhe concediam, distrahia-se deixando vaguear a phantasia pelas recordações do passado, enganando assim as tristesas do presente, ou ligando em algumas scenas soltas as remeniscencias, ainda vivas, dos dias da mocidade. E em quanto o vento lhe sacudia os caixilhos das janellas, e a chuva, chapinhando, lhe fustigava os telhados, enchia elle uma ou duas paginas á luz do ponderoso candieiro de latão amarello de tres bicos, talvez o traste mais luxuoso de toda a sua mobilia. Assim nasceram em um recanto obscuro da aldeia estes Contos e Lendas, escriptos sem emendas e com admiravel rapidez, em lettra grada, direita, e garrafal, para regosijo dos compositores, que cegam a miudo os negalhos de missanga de certos auctores, muito nossos conhecidos, aos quaes Deus não castigue em desaggravo de suas victimas.

Se o padre Vigario vivesse, ainda não soltava seguramente da gaveta os papeis fechados a tres voltas e meia de chave. Foram precisas repetidas instancias{10} para m'os confiar. Poucos mezes antes da sua morte é que alcancei licença para fazer d'elles o uso que julgasse mais opportuno, com tanto que o nome do verdadeiro auctor nunca figurasse «porque dizia elle, não são cousas estas para um sacerdote da minha edade matar o tempo, quando podia rezar, meditar as suas praticas do domingo, ou examinar a sua consciencia. Mas não sei como isto é; assim que me sento diante da mesa e pego da penna, não posso valer-lhe, e apesar de todos os protestos, entram commigo as malditas historias, e não ha resistir-lhe. Se fosse crendeiro jurava que me faziam bruxarias.»

A bruxaria era o que hoje se chama a vocação! A sós commigo perdia de vista as realidades da vida, e quasi sem o saber, deixava-se arrebatar pelas visões do mundo phantastico, aonde antes d'elle já se entranharam muitas outras que a admiração saúda como principes da intelligencia. Vingava-se porem d'este máu sestro (era a sua phrase) pondo de lado as escriptas frivolas apenas as acabava e nunca mais fallando d'ellas. Rabiscava umas tantas folhas de papel (com este desprezo tratava a inspiração!) e sem as tornar a ler, juntava o novo caderno ao antigo maço. Uma fita de nastro vermelho atava tudo. Esquecia-se depois d'este e dos outros até ao inverno seguinte, em que voltava ás suas historias com extremo pavor da tia Brizida, confidente dos{11} seus segredos, a qual representava nos serões litterarios do presbyterio o papel, que a tradição attribue á famosa ama de Molière. Em lisa fé temia ella devéras, que o demonio perdesse um dia a paciencia á força de esbofeteado, e de escarnecido pelo Vigario n'aquelles papeis, e que se desforrasse torcendo o pescoço ás gallinhas e frangos, ou chupando o sangue aos coelhos, transformado em raposa ou em ginete. Nunca acordava, que não esperasse encontrar a capoeira vasia! Se é bom estar bem com Deus, dizia, não é máu estar em paz com o demonio. A casa do presbyterio não era grande, nem espaçosa, mas sorria de longe á vista caiada por fóra e rodeada de canteiros de flôres. Vestia-se de um tal ar de festa, que namorava pela bellesa rustica e logo a distancia promettia a hospitalidade que nos dias do Prior estava convidando de longe com os braços abertos a quantos lhe batiam á porta. Situada na corôa de um outeirinho, alvejava por entre a folhagem prateada das faias, cujos troncos lisos e direitos o vento meneava graciosamente. O pateo ajardinado, cercado de alegretes, era todo viço e frescura, e tres cepas enroscadas e collossaes, cobriam com a sombra de seus pampanos as parreiras, aonde amadureciam na estação os mais formosos cachos de moscatel e de ferral-tamara. Em volta da risonha morada, penduravam-se as vinhas pelas encostas das collinas até ás margens de um ribeiro, toldado{12} de salgueiros e chorões que se torciam para beijarem a agua. Por entre as vinhas apparecia em malhas o verde mais fechado das hortas mettidas entre vallados de piteiras, em quanto ao lado sussurrava a levada correndo pelas regueiras. Os pomares, copando-se, encantavam de espaço em espaço os olhos offerecendo-lhes bosques fechados, e embalsamando tudo em roda com sua fragrancia. Subindo pelos outeiros, que ondeavam desde a planicie até ás montanhas torreadas no extremo horisonte, os troncos nodosos e robustos das oliveiras trepavam de socalco em socalco até á cortina de pinheiros, cujas cabeças, de um verde triste, a viração balouçava lá em cima meneando-as entre mormurios ao cair da tarde.

A ribeira vinha de cima, e ora rebentando entalada, ora espraiando quasi adormecida, na areia alva e fina do leito, despenhava-se mais abaixo com estrepito, entrando no logar opulenta com as aguas recebidas. Aquelles pampanos cingidos de arvoredos, aquelles valles viçosos de hortas e pomares; os variados tons que zebravam as encostas dos montes e collinas, desde a esmeralda viva dos prados até ao louro cendrado das paveias; os rosmaninhos e as boninas esmaltando as veigas; o rio precipitando-se aqui, mais adiante correndo manso e limpido e depois esperguiçando-se sobre as relvas; de dia o sol inundando de luz dourada todo o quadro, de{13} noute o clarão da lua tocando-o de meiga melancolia, compunham um espectaculo de tanto enlevo que a vista fugia com a vontade e com o coração para aquelles casaes debruçados das collinas fazendo nascer desejos de pedir pousada em algum d'elles, para vêr romper o luar por entre o arvoredo e de ouvir brincar a aragem com os ramos aos primeiros raios brancos do alvor matutino.

Era sobre tudo ao anoutecer que a aldeia se animava. As chaminés expelliam o fumo em penachos caprichosos; os cepos estalávam no lume; e as creanças, como enxame buliçoso, brincavam defronte das portas. As mães cosinhavam a ceia, em quanto os velhos e os mancebos descansando do trabalho, aguardavam encostados, ou assentados, a hora proxima da refeição e do repouso.

Que saudade causa no tumulto das cidades a ideia do pôr do sol nas aldeias! N'esta occasião, em que a fadiga do corpo como que faz mais docil o espirito, é que o padre Vigario, desembocava de uma das azinhagas com o seu Horacio, ou o seu Salustio debaixo do braço, e vinha conversar o seu pedaço com os anciãos da terra, para saber as novidades, e espreitar as rixas e discordias, afim de as compôr. Correndo a mão pela cabeça das creanças, ralhando com umas, afagando outras, informava-se de tudo, sanava as malquerenças, e conseguia pelo respeito de seus annos e qualidades, que{14} os moradores da parochia formassem uma só familia. Mestre e passa-culpas eterno dos rapazes, estes, mal o viam, voavam em bandos a agarrar-se-lhe á loba e ás mãos, por entre vozes e saltos com uma algazarra, que dava rebate a toda a aldeia. No verão, nos dias de maior calor, era sempre certo o prior, á tardinha, debaixo da parreira, que lhe cobria a varanda, com o livro aberto e os oculos de prata, que lhe escorregavam até á ponta do nariz. Lia e passeiava. De tres, ou de quatro em quatro voltas, parava, batia na caixa de tartaruga e sorvia com delicias uma pitada, deitando os olhos pelos canteiros a vêr se alguma flôr carecia de rega, ou de amanho. Quando o sol declinava punha na cabeça o venerando tricornio, pegava da bengala de canna da India e castão de prata, e sahia a tomar um pouco de ar. Era a phrase modesta, empregada por elle para designar as suas marchas forçadas de legua, legua e meia, e ás vezes duas leguas por montes e quebradas.

Quando o encontrei por acaso, e travei conhecimento com elle, poucos homens vigorosos, na flôr da edade, poderiam acompanhal-o no seu passo largo e egual. Abordoando-se á bengala por costume e não por necessidade, despejava caminho como andarilho mais valente. De estatura elevada, secca, mas encorpada, carregava sem esforço com o peso de uma velhice verde e alegre. Nos olhos cinzentos e vivos brilhava{15} um toque de finura risonha, e a bocca não pequena, mas engraçada, animava o rosto e dava-lhe expressão agradavel, avivada de constante jovialidade. A brandura do animo correspondia ás promessas da physionomia, e o tracto intimo denunciava as prendas d'aquelle caracter, honrado, severo só comsigo, inflexivel e incapaz de se torcer em pontos de consciencia ou de melindre. Na convivencia com o padre Vigario, aprendi mais do que me ensinariam muitos annos de leitura. Convalescente e magoado, devi-lhe a saude do corpo, a saude e o conforto da alma.

Este velho desterrado por gosto e eleição sua em um canto do mundo, n'uma aldeia ignorada, era mais sabio na sua humildade, do que muitos que se pavoneiam de lidos e eruditos. Em dous preceitos unicos encerrava toda a sua philosophia:—paciencia e amor. Com a primeira supportava os trabalhos e os revezes sem desmentir a serenidade da alma; graças ao segundo, o coração, purificado pelos annos, abria-se a todos os sentimentos nobres, e palpitava com orgulho memorando as glorias da patria. Fiado nos pronuncios do futuro mitigava a dôr das desgraças presentes, com as esperanças de melhor porvir, tão crente e enthusiasta, como se acabasse de entrar na epocha das illusões. Entendia e applicava o Evangelho pelos affectos ardentes da sua alma, abraçando como filhos e irmãos todos os afflictos e necessitados;{16} e pelo amor, finalmente, não perdoava mas agradecia as offensas, as injustiças, e até as calumnias, provações da virtude, não se lembrando d'ellas senão para pagar o mal com o bem.

Horacio, Salustio e Tacito eram os seus auctores mimosos, a par de Camões, de Ferreira e de Sá de Miranda. Familiar com os escriptores da antiguidade, e com os modernos de mais nome, seria preciso colhel-o desapercebido, e espertar a veia natural e espirituosa da sua conversação, para se apreciar devidamente os thesouros encobertos d'aquella vasta erudição e os prodigios de uma memoria em verdade rara. As citações acudiam-lhe espontaneas; os ditos agudos e as anecdotas encadeavam-se; as scenas e os quadros pintados com vivesa admiravel, succediam-se e ligavam-se. Parecia que a sua voz ressuscitava de repente os homens e as cousas, que as cinzas dos grandes varões de Roma e da Grecia, dos heroes de todos os tempos e de todas as nações tornavam a juntar-se, a tomar corpo e a animar-se e que os viamos mover e fallar como se os estivessemos contemplando nos dias do seu esplendor. As ruinas de Athenas, as do velho Lacio, os monumentos da meia edade, e os episodios de epochas mais proximas, evocados pelo encantamento irresistivel d'aquella imaginação creadora, como que volviam subitamente ao primeiro sêr, apparecendo uns em toda a formosura da arte classica, erguendo-se{17} outros pela religiosa inspiração da arte christã.

Á noute era um prazer e um exemplo, observal-o sentado na immensa poltrona de couro, com a ama á direita e o cão somnolento á esquerda, a velha cabeceando de rocca á cinta e engrolando Padres-nossos, o animal piscando os olhos com uma orelha fita e outra derrubada. Dos dous companheiros do serão o mais attento e sisudo era de certo o cão! Medindo sempre o dono com a vista, o mastim nunca perdia occasião de lhe coçar o focinho pelo joelho, quando suppunha o ensejo favoravel. O bofete de pau santo e pés torneados, o candieiro de latão e a anarchia dos papeis completavam o pitoresco painel do lar domestico. Passada uma hora, o unico que não dormia era o Vigario; a sua penna continuava a ranger sobre o papel, ao som dos roncos assobiados da tia Brizida. Quando as palpebras se lhe faziam pesadas, o prior arrastava a cadeira, mettia dous dedos na argola do candieiro, e recolhia-se ao quarto no meio das recommendações da ama sobre os perigos do fogo, sobre a falta de cuidado no abafo, e sobre mil outros casos provaveis. Estas recommendações não se calavam, senão quando a respiração alta e compassada do ouvinte convenciam a oradora do effeito suporifero da sua eloquencia.

Em um d'estes serões, a que assisti, caiu o dialogo sobre não sei qual de nossos reis, e o Vigario{18} innocentemente deixou escapar o segredo das suas vigilias. A curiosidade de comparar a escripta do solitario com o seu talento de narrar, obrigou-me a pedir-lhe, sem attender a desculpas, que me lê-se alguns Contos e Lendas. Oxalá que o leitor seja do meu voto. Ainda me não arrependo do que disse d'elles ao auctor, que tremia, como se a minha opinião valesse alguma cousa. Não os reputei perfeitos, longe d'isso, mas asseverei-lhe que seriam talvez folheados sem fastio. Arriscaria um juizo temerario?!... No seu acanhamento o prior sempre resistiu a apurar o manuscripto para a imprensa, e quando m'o entregou, pouco antes da sua morte, foi com a final e irrevogavel condição de nunca descubrir o nome do auctor, se me atrevesse a importunar os prelos (assim se expressou) com as puerilidades de um velho creança. Possam os Contos e Lendas do padre Vigario, cuja ultima vontade estou cumprindo, merecerem alguns momentos de attenção, não por si, mas pelas memorias que recordam. Correm já sujeitos ás vecissitudes da publicidade tantos filhos espurios da mesma invenção, que mais esta, entrando no mundo das lettras, não usurpará de certo logar, que pertença de direito ás obras primas dos poetas festejados. Em todo o caso, sem audacia não ha fortuna. Lanço-a á corrente!... A sorte bôa, ou má que faça o resto!

Valle, 30 de septembro de 1866.{19}

A TORRE DE CAIN

LENDA DO SECULO XI

I
De um bom irmão um mau christão

O monge começou assim a sua historia:

No tempo em que os walis de Cordova tinham quasi todo o reino sujeito, é que succedeu o que vou contar. Estava o conde D. Henrique a entrar por dias, e com elle vinham boas lanças para o ajudarem a resgatar do poder dos infieis as provincias de Portugal. A essa hora nos castellos da fronteira não se descansava de dia, nem de noite; ninguem despia as armas; e quer luzisse a manhã, quer cerrasse a tarde, o clarão das almenáras, ou o rebate das trombetas não consentia nem leve repouso aos defensores da verdadeira lei. Nas ameias, ou no{20} campo da peleja, não se socegava um momento. Os melhores castellos ainda tinham a voz dos descridos; muitas terras pagavam-lhes tributo; e as bellas tapadas do Minho e do Alemtejo eram para elles correrem os veados, os ursos e os javalis. Do marmore de nossas pedreiras arrancavam as columnas e as ricas laçarias de seus paços. Tudo na abençoada primavera d'este formoso jardim chamado Portugal era dos sarracenos e em tudo punham o seu deleite. Nas campinas floridas, em que a lua nasce suave como sorriso infantil, e o ceu brilha radioso como olhar de virgem namorada, a tristeza até parecia desmaiar o sol. Antes de o tragar o inferno, cujo é, o arabe sensual passava pelo paraiso, que nos tinha roubado! Por isso a saudade do que perdeu lhe punge tão viva hoje o coração!...

—E não havia cavalleiros, que lhes estalassem as lanças no peito, bradando: esta terra é nossa! acudiu Martin Paes.

—Havia! redarguiu o frade. Mas eram poucos. N'aquelles dias de captiveiro todos inclinavam a fronte, regando de lagrimas os sulcos da charrua, guiadas por mãos de escravos. Deus exalte o braço victorioso, que nos deu outra vez a terra de nossos paes, que fez nossos, a casa em que abrimos os olhos, o cemiterio aonde dormem os que nos amaram, a arvore que nos cobriu com a sombra a infancia e a velhice, e a fonte que ferve ao pé do rosal!...{21} N'aquelle tempo, quando o mouro passava, baixavam todos a vista, porque elle era o senhor.

—Mas a terra havia de ser então quasi um deserto, padre?

—Não. As espigas douravam-se nas searas como agora; os campos vestiam-se de relvas e de arvoredos; as noras gemiam nas hortas; e os gados pastavam nos montes. Mas a terra, tão alegre por fóra, toda era magoa e desconsôlo por dentro; porque a terra, em que sômos escravos, mesmo que seja a da patria, parece-nos mais só e vasia, do que um êrmo. A casa alheia, a courella que é de outro, e o fogo accêso na lareira a medo, fazem-nos chorar, porque nada d'aquillo é nosso, e hoje, ou amanhã, podem dizer-nos: sáe! O reino vivia, como vive agora; o que estava morto era o coração do homem. Resplandecia o mesmo sol, corriam as mesmas aguas, nasciam as mesmas flôres; porém as creanças não brincavam por baixo dos pampanos da vinha, como brincam estas; e a donzella assustada, tremendo de se vêr formosa, não se assentava tranquilla, como aquella, debaixo da amendoeira em flôr ouvindo descantar o rouxinol por cima da cabeça. O harem do sarraceno, aberto diante d'ella, como um abysmo, fazia-a empallidecer. De um momento para outro podia ser obrigada a escolher entre a deshonra e a morte.{22}

—Que martyrio não seria a vida assim?!...

—Era! Foi!... Mas viveu-se, e por quantos annos!... O dia declina. Faz-se tarde. Quereis que continue?

—Oh, de certo. Fallae!... Todos vos ouvimos.

—No tempo que disse, lavrava a discordia entre dous ricos homens nas terras de Alem-Douro, afirmavam uns que por amor dos lindos olhos de certa dama, juravam outros que por causa da aposta de um cavallo. De seus castellos os dous inimigos, postos defronte, corriam o campo talando vinhas, pomares e cearas, e mal um se descuidava, o outro, assaltando-o, vinha logo acordal-o a ferro e fogo. Em suas mesnadas, ou companhas de homens d'armas, ardia a guerra em toda a furia. Nos casaes assolados de ambos, o solarengo ou o pastor nunca sabia se ao anoutecer recolheria os frutos, e os rebanhos a salvo, ou se despertaria ao clarão das labaredas, para enterrar algum dos seus assassinado.

Por fim o cavalleiro mais velho accommetteu o paço acastellado do contrario, e tomou-o á traição, deixando a cabeça do senhor cravada nas ameias. Aconteceu isto vespera de S. João, por alta noute, quando todos festejavam o bemdito Santo com fogueiras, cantigas e follias. O cavalleiro tinha um filho e um irmão. O filho de edade tenra; o irmão temido{23} pela indole e pelo braço. Entraram e sairam os annos assim; a creança fez-se homem; e de parte a parte a aversão das duas familias cada vez crescia mais. O rio que as separava, tingiu-se de sangue por muitas vezes, e os sinos não cessavam de dobrar na egreja pelos que morriam. O tempo, que tudo gasta de dia para dia, parecia avivar mais aquella rixa. A este tempo o herdeiro do cavalleiro assassinado era já um mancebo louvado pela destresa nas armas e pela prezença gentil a cavallo e nos saráus. Chamava-se D. Moço Ansures, e vendo-o passar, esbelto e affogueado da carreira, com o falcão no punho, as donzellas sorriam-se e córavam, e os homens saudavam-o admirando a fiel imagem do rico homem morto na vespera de S. João.

D. Moço ainda não dissera a mulher nenhuma: amo-te! Um dia, por desgraça, viu a neta do senhor do solar inimigo, e logo o coração esquecido da vingança guardou para sempre a doce imagem. O sangue do pae derramado á falsa fé, as malquerenças de tantos annos, as promessas da meninice e da juventude, tudo d'ahi em diante se apagou da sua alma para não vêr outro sol, outra luz, senão a dos bellos olhos, que o tinham feito seu captivo. Segredos de Deus! Do maior odio rebentou o mais constante amor!... Correram mezes, e o affecto escondido saltou aos olhos de todos. Os parentes lançaram{24} em rosto ao mancebo a sua fraqueza, mas a paixão pôde mais, que as memorias do tumulo, que deixava sem vingança. Por ultimo, cansados das guerras dilatadas, os rancores cederam, e o casamento ajustou-se. Uma rosa veiu unir as duas casas inimigas. O sorriso de uma dama veiu aplacar no sepulcro os que não podiam dormir o somno eterno, e os que haviam jurado não perdoar. Aprazou-se para vespera de S. João o ditoso enlace. Seria proposito, ou acaso? N'esse dia contavam-se justamente quatorze annos, que o pae de D. Moço de Ansures fôra assassinado.

O homem põe e Deus dispõe!

O cavalleiro morto tinha, como disse, um irmão, que lhe queria mais do que á propria vida. Haviam nascido ambos vespera de S. Pedro, e escusado fôra procurar mais do que uma vontade e um affecto nas duas almas. D. Inigo Lopes, era o nome do irmão mais novo, andava ausente. Acertou chegar de longe, quando estavam pregando as taboas do caixão do infeliz. A dôr fez de D. Inigo uma estatua, e sete dias com sete noutes o viram todos jazer deitado sobre a sepultura. Parece que a terra, comendo-lhe os ossos do irmão, consumia ao mesmo tempo n'elle tudo que tinha de humano. Quando rompeu a alva do oitavo dia, e se levantou, trazia a cabeça e as barbas brancas como neve. Envelhecêra ali um seculo em sete dias! Nem um lagrima nos olhos seccos! Nem{25} um soluço do peito mudo. Deixou sobre a campa espada e arnez, e levou só comsigo o punhal. Ao entrar ainda fizera o signal da cruz, mas, saindo, Jesus! voltou as costas ao altar. Os anjos nos defendam!

O que fez sete dias com sete noutes D. Inigo só e encerrado na capella? Se alguem o soube foi a cova fria. Contavam, depois, que um monge na ultima noute vira a pedra do tumulo erguida sem lhe tocarem, e um corpo crescer da sepultura e a mão do morto apertar a mão do vivo. Illusões! Quem vae nunca mais torna. O que não foi fabula, porque todos o presencearam, foi ao oitavo dia rebentar com o primeiro raio de luz uma rozeira do centro da cova, tão viçosa e robusta como se existisse ha muitos annos. Que frescas rosas e que lindos botões nos ramos! Mas se queriam apanhal-os por devoção, murchavam nos dedos; se tentavam cortar uma pelo pé, o sangue corria da haste como se corresse de veia aberta. Em cada ramo abriam sete rosas brancas e sete rosas vermelhas. E que outros tantos dias se contavam tambem desde que o corpo do valente cavalleiro descera á sepultura trespassado de sete feridas.

Nunca mais se soube, ou se fallou de D. Inigo. Dizia-se que sete annos com mais cinco vagueára como peregrino, pelos desertos, que Deus pisou, comendo das ervas do monte, bebendo da agua das nascentes, dormindo ás inclemencias do tempo. Que vida penitente a d'aquelle Santo! Vozes do mundo!{26} O Senhor, que lê nos corações, ha muito que tinha desviado os olhos d'elle. Com ser christão nascido nunca mais ajoelhára á cruz, ou se encommendára á Virgem. Quasi ao cabo do longo desterro anouteceu-lhe no deserto da Tentação ao atravessar pela terceira vez a Palestina. Valha-nos Maria Santissima!... De repente as areias inflammaram-se em um mar de fogo; o ceu cobriu-se de trevas; e nas pontas recortadas das altas rochas dançaram, crusando-se, milhares de luzeiros. Ouviu-se então na vasta solidão do ermo um brado immenso. D. Inigo respondeu, e o pacto, que ali firmou, foi tão negro, que a lua tornou-se côr de sangue e sumiu-se, que as estrellas esconderam tremulas a sua luz. O christão acabáva de vender ali a alma ao inferno pela vingança. Desde aquella hora seguiu-o sempre por toda a parte, como a sombra segue o corpo, a imagem do irmão assassinado. Ajoelhára ao poder de Satanaz, elle que não se prostrára diante da cruz, e rasgando as veias afirmára o juramento. Quando se ergueu soou o cantar do gallo por tres vezes no espaço, repetido pelos echos, e risadas tremendas, levantando-se das aguas immoveis do Mar Morto, applaudiram a victoria do espirito do mal. O reprobo escarneceu do passado. Uma blasphemia atroz saltou-lhe da bocca. Mas elle que se ria de Deus e do inferno, estremeceu sentindo fugir-lhe a terra debaixo dos pés, como horrorisada do peso do seu crime. Aos primeiros{27} passos o clarão dos relampagos cegou-lhe a vista. O temporal rebentava ao mesmo tempo no mar aonde as ondas se empolaram como serras, no ceu aonde os trovões estalavam uns apoz outros; na terra, que se abria em voragens, e no deserto, aonde o furacão, bramindo, cavava abysmos, e alteava montanhas, revolvendo em vortice as areias. Cedros antigos, como os do Libano, desabavam de pancada. As feras, timidas que nem cordeiros, acoutavam-se submissas nos povoados. Os homens elevavam suas orações a Deus pedindo-lhe piedade. Quando tudo se fazia humilde e pequeno para a supplica, porque riria só o orgulho do culpado? D'ali em diante não passou uma hora sem elle se despenhar mais e mais fundo no precipicio. Raiava a manhã um dia e curvado sobre a corrente do Jordão, debruçava o cantaro e enchia-o. As ramas das arvores enfezadas torciam-se em toldo raro sobre a ribeira. A duas passadas de distancia caíra um velho desfallecido de sede e de fadiga. Bastava uma gota d'aquella agua para lhe restituir a vida. D. Inigo negou-lh'a entornando-lhe de proposito o cantaro diante dos olhos para lhe exacerbar o tormento, diante dos olhos que estavam tragando de longe a agua, que o maldito derramava zombando da sua agonia, e dizendo-lhe por mofa: «chama pelo teu Deus e pede-lhe uma nascente ao pé de ti!» O Senhor não accudiu com prodigios ao seu servo. Quiz que expirasse vencedor do{28}inferno. Mas, desde aquelle crime, a sêde intensa ateiada nas entranhas do reprobo, nunca mais se aplacou. Os rios e as fontes convertiam a fresquidão em fogo para o abrazar. A gota de agua negada no deserto pesára na balança do Senhor largos seculos de culpas.

Cumpridos doze annos, D. Inigo voltou, sem se saber como, á terra em que nascera. Disseram que um cavallo da côr da noute, com os olhos todos chammas, o trouxera em breves instantes da Judeia a Portugal. A cauda varria o pó, a respiração era toda fogo, e as crinas ondeavam ao vento. Diante d'elle as mais altas montanhas encolhiam-se e tornavam-se outeiros; o mar e os abysmos solidificados aplanavam-se; e no perpassar do galope infernal os carvalhos inclinados tremiam e beijavam o chão, flexiveis como juncos. Cavallo e cavalleiro não corriam, voavam! Debaixo da ferradura magica as aguas tomavam a dureza do diamante: a terra oscillava, e mil faiscas, saltando da cratera dos vulcões, vinham coroar o rei do fogo. Ao romper da aurora o corsel retrahiu-se, e estacou. Apontava o dia no topo de uma cruz de pedra. Não passou d'ali. Á medida que ia aclarando a manhã adelgaçavam-se-lhe as formas e do primeiro raio de sol dissolveu-se desfeito em fumo.

Quando acabou de desapparecer tangia um sino. D. Inigo olhou e conheceu o sitio. Estava junto da egreja aonde fôra sepultado seu irmão. Ao primeiro{29} passo que deu, descerrou-se o portal por si mesmo; ao segundo illuminou-se a capella repentinamente; ao terceiro as rosas vermelhas cairam seccas e as brancas floriram juntas. Um cantico suave dentro levantava o Ave maris stella. Estava aplacada a vingança do morto. A fé, porem, debalde chamava ali por Inigo; elle não a ouvia. A voz do ceu em vão lhe offerecia o perdão; elle, surdo, não escutava a palavra de misericordia! Orava n'aquelle momento a Deus, muito longe, um santo hermita pelo maior peccador. Arrebatado em espirito, viu um homem cuspindo por odio na cruz á porta de uma egreja. O anjo Custodio, ajoelhado no cruzeiro, banhava de lagrimas as vestes luminosas; mas o desacato gelou-lhe o pranto, e, cobrindo o rosto com as azas, subiu na aragem até se perder nos raios dourados do sol nascente.

«A tua clemencia, Senhor, é infinita! exclamou o justo. Haverá perdão para o que renega o teu Santo nome?»

N'este ponto a visão sumiu-se; as portas da ermida fecharam-se com estrondo; e uma voz, semelhante á da tempestade, bramindo nas selvas, repetiu ao longe:memento, homo, quia pulvis es!{30}

{31}

II
Não ha gosto sem pesar

N'aquelle tempo, em terras de alem Douro, que rico homem era mais poderoso e rico do que D. Ordonho, conde? Estendendo a vista dos eirados do castello por valles, montes e campos, sabia que tudo era seu. A um aceno trinta cavalleiros mettiam o pé no estribo, e centos de homens de armas e peões seguiam o seu pendão. Descendia da grande raça dos primeiros lidadores das Asturias, raça de bronze nos odios, e de ferro nas vinganças. A edade gasta os mais fortes, e açor velho não se remonta ás aguias. Quando na carreira o vento lhe sacudia as madeixas brancas, D. Ordonho sentia que os{32} annos não haviam passado em vão. Só a neta, a formosa Auzenda, unico amor da sua vida, podia distrahil-o das horas de tristeza. Mais do que filha, porque duas vezes era o sangue da sua alma, um sorriso d'ella quebrava-lhe a vontade, e uma lagrima só d'aquelles olhos lindos, transformava em cordeiro o leão embravecido.

Os atalayas vigiam dos altos miradouros da torre de menagem. Os homens de armas crusam-se nos eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa cavalgada, que se espera?

O sol já se escondeu de traz do ultimo outeiro; desmaiaram os derradeiros clarões no topo da cruz de pedra; levantou-se por fim a lua sobre as campinas, e nenhum cavalleiro, ou sombra d'elle, se avista em larga distancia ao redor.

No castello era vespera de noivado. Auzenda, a bella Auzenda, ia casar-se com Moço Ansures. Estava por horas a festejada vespera de S. João, e por horas tambem estavam a cumprir-se quatorze annos desde que os monges negros rezaram o officio de finados em volta da tumba do cavalleiro assassinado.

Porque se via Auzenda tão pensativa olhando do seu balcão para a corôa do outeiro, que fica defronte? Cordova e Granada, os dous Edens da formosura, entre mil não se ufanavam de possuir perola de egual valia. Aquella belleza era sem par. Sorria-lhe o ceu nos labios; ondeavam os cabellos em tranças{33} d'ouro soltas á briza; e os olhos azues, aonde amor suspira, oh! quem podéra vencel-os depois de vencidos por elles! Delgado cinto aperta-lhe as roupas no corpo esbelto. O veu de tisso bordado ora folga livre com o vento, ora desce em pregas graciosas sobre o seio palpitante. Ao raiar da alva tinha saido. Os pés, como os da corsa gentil, que a acompanha, fogem tão leves, que mal trilham os musgos das fragas na serra ingreme. As rozas accendem o rubor na face assetinada desmaiando os lyrios. Boninas e cecens tecem a coroa silvestre pousada na fronte. Ajoelhou á cruz solitaria, e a oração matinal subiu casta e pura do coração ao throno do Senhor, no meio das fragrancias da aurora. O vestido branco desenha confusamente as fórmas, e visto de longe fluctua nos vapores da madrugada. Dir-se-hia visão celeste que os raios da primeira luz vão desvanecer. Ella a chegar, e um cavalleiro a correr do lado opposto. O açor do Douro remata-lhe o capello de aço. É D. Moço Ansures. Ajoelha a seu lado e juntos offerecem a Deus as premicias do amor.

—Voltais logo? perguntou a donzella corando.

—Ao cerrar da tarde! responde mettendo-a na alma com o apaixonado olhar.

—Tão tarde!?

—Quereis que fique? Mas o voto que fiz?!...

—Não! Mas!...

—Ao cerrar da tarde, vivo ou morto, estarei aqui!{34}

Separaram-se. Elle despediu o cavallo pelas gargantas da montanha, ella seguiu-o com a vista, saudosa até desapparecer por traz do ultimo outeiro.

Porque chora a bella Auzenda? O que lhe diz o coração? É por isso que a donzella scismava sosinha ao cair do dia no seu balcão? Seriam receios de noiva a combatel-a, ou saudades de namorada? Baixou a tarde, fechou-se a noute, e quando as estrellas começavam a tremer na abobada do ceu, recolheu-se suspirando. Quasi ao mesmo tempo soava a sineta da atalaya. Donas, cavalleiros e pagens principiavam a entrar no castello, attraidos pelos festejos. As armas reluzentes, as plumas de côres diversas, os tabardos de matizes variegados deslumbravam, vistos á luz dos fachos. O som das trompas, os latidos dos lebreus, os relinchos dos cavallos, e as vozes dos peões animavam de mil ruidos alegres o quadro do noivado. O conde Ordonho sobresaia no meio de todos pela estatura. Era como o carvalho antigo abrigando os arbustos debaixo da sombra. O seu brado vencia o estrepito.

—Pagens! Escudeiros! Fazei honra! exclamava cortejando os recem-chegados com a bocca cheia de riso.

Falta, porem, um homem na festa e com elle tudo falta. A ultima hora do dia, segundo sua promessa, deveria tel-o trazido aos pés de Auzenda, e com a noute cerrada não chegava!... Do lado das montanhas{35} não havia rebate de mouros. As almenáras apagadas não davam signal de inimigos. Que motivo demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o chamando tão meigo e desejado? Porque se ausentára n'aquelle dia, em que tantos estremos o convidavam a não se apartar dos bellos olhos que o prendiam? Um juramento sagrado! Um voto! Promettera a Deus, para expiar aos olhos de todos a união das duas casas, passar doze horas ajoelhado sobre o tumulo de seu pae. Por isso deixára Auzenda junto da cruz de pedra ao romper da aurora. Por isso as horas passavam e a saudade impaciente da noiva as contava tão vagarosas!{36}

{37}

III
Deus seja comnosco

Na sala de armas do castello soam mil vozes de jubilo. Que luz faisca das malhas pulidas e que reflexos, que cegam, saltam dos dourados capellos! Cavalleiros moços fallam de amores, inclinados sobre os estrados das donas e donzellas. Violas e doçainas acompanham as coplas dos trovadores. Mais adiante, em turbilhões de cem côres, em collos ondeados e graciosos, giram e volteam as dansas, e o olhar furtivo de alguns pares promette, em breve, dias semelhantes a mais de um solar.

Na vasta quadra apparelhada para o festim em quanto os convivas não entram, o vento geme por entre frizos{38} e laçarias dos delgados columnellos. A lua, alta no ceu, entorna pelos vidros corádos das frestas golphadas de luz branca. De repente as trompas quebram o silencio. Avizinha-se, e já se reflete nas paredes, o clarão de muitas tochas. Povoa-se a sala, innundada de luz subitamente. Os escanções enchem as taças e fazem-as circular em roda. Saudes, acclamações, e vozes crusam-se, trocam-se e voam em confusão jovial de um a outro extremo da casa. D. Ordonho parece remoçado. Á sua direita senta-se Auzenda. Da esquerda um escanho vazio aguarda D. Moço Ansures. Defronte, em outro escanho, tambem vazio, estaria o pae do noivo, se podesse deixar a sepultura. Cobre-o um veu de luto.

A meio do banquete as dansas tornam a entrançar os pares como grinaldas vivas do festejo. Pelas portas abertas do alcacer enxameiam incessantemente donas, cavalleiros e monges, convidados pela hospitalidade quasi regia do rico-homem. As taças cheias de licor espumoso correm de mão para mão. D. Ordonho, de pé, alça a sua, e com a fronte erguida brada:

—Á paz dos christãos! Á ruina e confusão dos infieis! «Uma longa acclamação responde á sua voz: «Assim findem todas as discordias entre irmãos!»

Ainda não tinha pousado o vaso na mesa quando, voltando a vista, soltou um grito. Os convivas olharam{39} tambem e ficaram immoveis com as taças suspensas.

No logar vazio destinado a honrar a memoria do pae de Ansures, appareceu de repente um homem sentado. Vestia armas pretas com a viseira callada e na cotta o açor bordado. Descalçando o guante direito, e empunhando a primeira taça cheia, ergueu-a lentamente.

—Bem fallado, conde Ordonho! (exclamou.) Á paz da noute de S. João!..

Não bebeu, derramou o vaso, e o vinho, maculando a toalha, tornou-se vermelho e vivo como sangue. No sitio em que pousou a taça uma malha de ferro em braza queimou a alvura do linho. Alçou então a viseira. Os olhos, as feições o os modos eram exactamente os do cavalleiro assassinado havia quatorze annos; porem os cabellos e as barbas brancas lembravam, que por cima do seu corpo passára o frio da sepultura.

Alguns dos que o viram desejaram fugir, mas, petreficados por um poder occulto, não poderam mover-se. O horror gelava a todos.{40}

{41}

IV
Enterro por noivado

Aqui Fr. Munio fez uma pequena pausa. Depois proseguiu:

Dava meia noute. A sineta da hermida repicou tres dobres compassados. Ao primeiro as dansas estacaram. Homens e damas, suspensos e petreficados, ficaram immoveis como estatuas. Ao segundo os sons emudeceram nas cordas das violas e alaúdes. A ultima nota tremeu solitaria e reboou pelos vaõs profundos das salas. Era surdo o sopro das trompas, e o canto dos jograes transformou-se repentinamente em dies iræ que retumbou. Os cabellos erriçaram-se de horror. Ao terceiro dobre o castello tremeu e{42} vacillou dos alicerces, como se um terramoto o abalasse. Os eirados jogaram, as torres inclinaram pendidas. E o cavalleiro negro? Ainda o sino dobrava já tinha desapparecido. Que susto! Que pavor! Que immensos clamores! Muitos intentaram fugir. Debalde! As portas, sem ninguem lhes tocar, fecharam-se adiante d'elles. O portal maciço gemeu nos quicios e cerrou-se por si mesmo. Mãos invisiveis alaram as dobradiças.

Ai noute de S. João, noute aziaga! Valiam reinos os olhos que por amor de ti choraram; a alcachofra benta ardendo não brotou a flor de esperança; o palmito symbolico, em vez de rozas e de fructos, só ramas de cypreste esfolhou sobre o leito do noivado. Nos paços do conde ninguem se entendia. Estava sobre elles o poder do inferno. O suor frio borbulhava nas faces dos cavalleiros, e o tremor dos mais ousados fazia tinir a espada contra a espora. De repente raiou uma pluma de fogo na escuridão. Cresceu, alastrou-se e em breve as nuvens de fumo enrolaram-se com as labaredas enroscadas nos grossos madeiros dos tectos. Jesus! Acudi! O castello está a arder! Tudo isto se viu e se obrou em um abrir e fechar de olhos. E as portas cerradas, e os eirados tão altos, e o fosso tão fundo! N'este momento rompeu a lua outra vez o toldo sombrio, que a velava, e o seu clarão pallido lançou como um sudario sobre o rochedo talhado a pique, que se aprumava a{43} curta distancia sobranceiro ao castello. As aguas, rebentando ali á sombra de antigos choupos, ferviam de encontro ás fragas, e despenhadas espumaram batendo em cachões no leito da ribeira, que lá em baixo bramia arremessada por entre a bronca penedia.

Aonde está D. Ordonho? Junto de Auzenda desmaiada! Com ella nos braços por entre as chammas, que lhe crestavam o rosto, não correu, voou baixando de andar em andar, até ao terreiro. Ahi, olhando, viu tudo cerrado, as labaredas serpeando cada vez mais vivas e o castello pedra por pedra quasi a desconjuntar-se. Os cavalleiros escondiam as lagrimas envergonhados.

—Erusigis! Escudeiro!... A minha acha adamascada! clamou o senhor de St.ª Olaia. Este pulso pode com ella. Nem diamantes a embotaram. Aqui todos! gritou depois em grande brado.

Palpitou a esperança esmorecida nos peitos mais desalentados. Ergueram-se as achas... Golpes de cem machados, rigor furioso de cem robustos braços ferem a um tempo com ancia mortal a porta maciça e chapeada. O roble gemeu, o ferro chispou fogo, os gonzos tremem... Mas nas taboas nem signaes dos finos gumes. Os machados, estalando, lascam até aos cabos. Por cima do ruido das pancadas e do alarido das vozes rompem risadas altas. D. Ordonho volveu os olhos. Na coroa do rochedo campeia{44} o cavalleiro negro. As aguas espumavam por baixo dos pés do corcel; a mão direita brandia um facho; a esquerda só peava com as redeas o cavallo preto, quasi no ar sobre o abysmo.

—Conde Ordonho! Esta fogueira faltava á tua festa do S. João. Accendi-a eu. Pago as arrhas da formosa noiva.

—Maldito!...

—Esquecias já D. Pedro Ansures, morto por ti ha quatorze annos?! Chegou o dia e a hora das ultimas contas. O sangue dos teus vingará o sangue dos meus. Cumpriu-se o voto de Inigo Lopes.

Ditas estas palavras, como se o inferno as soprasse, as chammas em vagas furiosas investiram o castello por todas as partes. D. Ordonho ajoelhou. No hombro tinha reclinado outra vez o lindo corpo de Auzenda sem sentidos. As faces desbotadas da donzella tocavam o rosto queimado do velho; as tranças de ouro misturavam-se com as madeixas brancas; os olhos languidos, em que expirava a doce luz da vida, cerravam-se mortaes.

—Castigai-me, Senhor! bradava o conde, chorando como creança. O sangue verteu-o esta mão culpada.... Feri a cabeça do peccador saciado de annos e de amarguras! Mas esta innocente! O que fez para acabar assim?... Poupai-a em vossa justiça!.

Dizendo isto apertava a neta contra o coração. O que não daria n'aquelle instante o senhor de tantos{45} vassallos e castellos por alguns palmos de terra livre, por uma respiração pura da briza nocturna, que nos serros vizinhos refrigerava as miserias do escravo?

O conde ergueu-se de novo. As almas viris podem vergar um momento, mas não quebram... As maiores dores calaram-se diante da sua dôr; o pranto enxugou-se em todos os olhos; e os mais intrepidos estremeceram, vendo passar muda e terrivel aquella vingança! Eil-o vai o velho fronteiro! Nem capello de aço lhe cobre a fronte núa, nem arnez lhe veste o peito descoberto. Leva porem a morte escripta no rosto. O sombrio clarão do desespero reluz nas orbitas ensanguentadas. A voz emudeceu nos labios, brancos e descorados. Deixai-o ir! É o castigo de Deus que se adianta! Inclinai-vos! É o santo amor de pae que o inspira!

A aguia real não caiu logo. Varado o peito, sobe e perde-se nas alturas para depois baixar inerte. Vai morrer longe da terra sobre as nuvens. Que fogo ameaçador na vista immovel! Que fria raiva no vôo lento! Guarde-se o falcão. Primeiro perderá a vida que o rei dos ares. Assim era D. Ordonho!... A lua escondeu-se. A tormenta rugia ao longe. O vento lastimava-se soturno. A distancia, nos outeiros e plainos, refletia-se o clarão avermelhado do incendio. O fumo em rollos salpicados de faiscas estendia-se como toldo immenso. As aguas e o furacão confundiam{46} os bramidos. Os relampagos lambiam a crista dos montes. O trovão estourava em estampidos medonhos.

A aza negra da tempestade varria a face da terra.... Que vulto é aquelle, que as labaredas rodeiam emoldurando-o encostado ao arco no eirado da torre Albarran? Fogem-lhe aluidas debaixo dos pés as lageas abrazadas e não recúa. Sobre a cabeça crusam-se mil centelhas e não as sente. Ao lado estalam e desabam os madeiros com fragor, racham-se e abatem as paredes, e não as vê! O temporal fustigando os cedros, estronca-os; o raio, fuzilando, lasca os penhascos da montanha; as torrentes, crescendo tumidas, inundam as margens como rios caudalosos. Que escudo cobre, pois, aquelle homem que todos os perigos e horrores da vida conjurados não o aballam? A desesperação! Que lhe importam ao desgraçado as ameaças do ceu, ou as ruinas da terra? Esconde no seio a peior das mortes. Morrera em vida. O castello de seus avós será o sepulcro do ultimo descendente de uma grande raça.

Soltou por ultimo do peito um rugido immenso. A côr livida da ira dava-lhe á face o aspecto de um cadaver. Encurva o arco, reteza a corda, e a vista mede o espaço. Ai do que aparar o tiro! A seta só espera um aceno para voar sibilando ao seu alvo....

Tres vezes estalou o trovão, e tres vezes um lençol{47} de fogo jorrou dos ceus abertos. Soa distinctamente o galope de um cavallo. As ferraduras, raspando as fragas, fazem saltar as faiscas umas atraz das outras. Armas brancas, capello sem viseira, no peito o açor do Douro. Será D. Moço Ansures? Á claridade dos relampagos, á luz do facho sacudido pelo cavalleiro negro, viram todos o corsel do mancebo ennovelado sobre a aresta do precipicio, quasi a escorregar pelas rochas aprumadas. Cavallo e cavalleiro arquejam suspensos de um fio sobre o abysmo. O que Inigo lhe disse, o que elle respondeu, ninguem o ouvio. O vento bramia forte. Pouco depois descortinava-se D. Moço enristando a lança meio corpo debruçado para o precipicio, e o renegado arremeçando o facho ás aguas para se rodear de trevas. O braço do Maldito alçou de subito a espada e o golpe descia já... quando uma seta passa assoviando. O mancebo vio então o seu inimigo rolar aos pés do ginete e logo apoz um corpo dobado nos ares, resvalar, batendo nas pontas das rochas até se atufar dilacerado e disforme nos cachões da nascente, que espirram a grande altura espuma e sangue.

Do castello, no eirado fronteiro, uma voz cheia e vibrante levanta brados de triumpho, e por momentos avulta a estatura gigante do conde Ordonho, cosida nas chammas, immovel e magestosa, com os cabellos soltos ao temporal. Depois abateu-se a torre com grande estrepito, as quadrellas alluiram-se, as traves{48} accesas remoinharam e cairam, e entre os destroços, como em leito tranquillo, o velho guerreiro adormeceu do somno eterno. Honra ao que morre amortalhado em suas armas e envolto no seu pendão! Ao cabo de sessenta annos de pelejas o fronteiro sepultou comsigo a orgulhosa raça de riba d'Ave, e do seu castello só ficaram de pé aquella torre negra, que alem vemos, e a hermida aonde jazem os ossos de Pedro Ansures.

—E D. Moço? perguntou Martim Paes.

—E Auzenda? acudiu D. Nuno.

D. Moço, cumprindo já de noute o seu voto, teve um presentimento, e, cravando esporas no cavallo, despediu a carreira veloz por cabêços, fragas, e alcantis. Já perto do castello, deu-lhe no rosto o clarão do incendio e viu-o arder. Apertando o corsel, correu como louco, e só parou quando o facho do cavalleiro negro lhe cegou os olhos. O que succedeu então já vos contei. Apenas Inigo expirou, desfez-se o encantamento. D. Moço buscou Auzenda. Encontrou-a, mas sem vida! Levaram-a os monges á capella, puzeram-lhe na cabeça uma corôa de cecens, e a terra comeu de quinze annos a formosura mais invejada das Hespanhas.

D. Moço, desde esse dia, não viveu. A saudade matou-lhe a alegria, a esperança, e a juventude. Nunca mais vestiu armas. O que iria pedir ás batalhas? A gloria? Não tinha com quem a repartir. A morte?{49} Para quê? Não a sentia já no peito? A liberdade da terra do seu berço? Ai! Nem essa ideia mesmo podia fundir já os gelos d'aquelle coração!... Sombra do que fôra, o que fazia o desgraçado n'este desterro cruel, sem affectos, sem amigos, sem consolações? Como o carvalho, que o raio feriu na força do crescimento debruça os ramos mirrados e se torce e definha até cair, a dôr e a memoria, verdugos implacaveis das existencias desgraçadas, minavam-lhe a vida, seccando-lh'a na raiz.

Sobre a madrugada o somno pousava-lhe a medo nas palpebras molhadas de lagrimas. Então a febre do delirio representava-lhe junto do leito a doce imagem, que trazia no coração. Era ella! Via-a, como nos dias ditosos. A mesma grinalda de flores do campo sustinha os cabellos louros que fugiam em ondas; as mesmas roupas alvas desenhavam as formas virginaes; nos olhos sempre a luz suave do amor, que o fizera tão feliz; nos labios aquelle sorriso em botão, que se abria casto como a rosa. O mancebo queria estreitar a visão querida ao peito, e acordava, chorando, porque só abraçára o ar. N'este tormento agonisou por mezes até que Deus, compadecido, lhe enviou a morte a um mosteiro humilde, aonde se recolhera.

Quando o amortalharam, os monges acharam-lhe unido ao peito, sobre o coração, um laço de cabellos; e no quarto de alva o frade, que ficára orando a velar{50} a tumba, contou depois que vira apparecer uma dama, formosa como os anjos, e inclinar-se triste sobre o corpo. De dentro do ataude saiu um braço, e ella, com a sua mão na mão do morto, passar-lhe um annel no dedo e cingir-lhe a corôa de boninas que trazia, na fronte descorada. Um guerreiro de armas negras, e de estatura descommunal, por tres vezes lutou para romper o circulo luminoso, que a rodeava, e outras tantas, vencido por braço invisivel, se prostrou com a face no pó do templo. Eram as nupcias dos mortos, o noivado de Auzenda e de Ansures? Era ainda a sombra de Inigo Lopes perseguindo na donzella o sangue inimigo e a vingança contra o conde Ordonho? Altos mysterios de Deus. Quem ousaria prescutar os segredos da sua justiça, e os prodigios da sua clemencia infinita?!{51}

O CASTELLO DE ALMOUROL[1]

CONTO DO SECULO XVII

I

—Ai, Virgem Santissima! Não ganha a gente para sustos! Não bastava esta praga dos castelhanos, que vem ahi, dizem, um poder do mundo d'elles pelo Alemtejo abaixo?! Ó sr. Romão Pires, d'onde elles estão aqui á nossa quinta é muito longe?

—Não é nada perto, não, sr.ª Brizida de Sousa! Mas lá diz o adagio: aos que muito correm quebram-se-lhes{52} as pernas... Socegue. O sr. conde de Villa Flôr anda com elles a contas e não é para graças.

—O sr. conde é muito bom senhor, bem sei, e de grande fama sempre ouvi dizer... Mas se elle ficasse mal agora?

—Ficavamos nós peior, isso é verdade... Melhor o hade fazer Deus. Oh, se meu senhor e amo fosse vivo!... Não estava eu aqui posto ao canto como um estafermo!...

—Ora não diga isso por quem é. O sr. Romão já andou demais por essas guerras e tragou bem maus bocados. Descanse, descanse, que o merece... O que seria de mim sósinha n'estes palacios confusos, sem pregar olho ha umas poucas de noites com medo... E que medo! Fantasmas e almas do outro mundo! Ó sr. Romão Pires, diga-me: o demonio—salva tal logar—terá poder de subverter comsigo no inferno corpo e alma uma creatura baptisada e remida nas santas aguas?...

—Conforme! Se não estiver em estado de graça!...

—Credo! S. Braz e S. João! Meus ricos santos da minha alma, valei-me! Subvertida em corpo e alma?! Deus de misericordia!... Sabe que mais? Quero que me escreva já e já á sr.ª D. Magdalena, contando-lhe tudo isto. Ella não póde consentir que a sua criada velha uma noite d'estas desappareça nas garras{53} do inimigo tentador do genero humano. Jesus!... Diga-lhe que nos venha livrar d'este inferno, senão... eu cá por mim fujo! Primeiro a salvação da minha alma...

—Tambem eu não gosto nada d'isto, sr.ª Brizida. Mas animo forte e coração á larga. O demonio parece que entrou de semana comnosco, e, pelo que vejo, não leva geito de nos querer largar. Desde que viemos para esta quinta...

—Desde que viemos... diz muito bem! Olhe, Brizida de Sousa me não chamasse eu, se depois da primeira noite não mettesse um bom par de legoas entre o demonio e quem se présa de christã baptisada na freguezia de Santa Catharina de Lisboa, nascida de paes catholicos, tementes a Deus, e sem eiva, nem leiva de mau sangue!... Mas o amor, que tenho á minha menina, coitadinha, tudo me faz supportar com paciencia... Espere! Não ouviu bulha? Assim a modo de ferros arrastados pelo sobrado?

—Nada. Foi cadeira, ou banco deitado no chão lá em cima. De dia não é que elles fazem das suas...

—É verdade. Guardam-se para a noite. Que noites, que eternidade de noites, Senhor Deus de misericordia! Parece que nunca a gente lhes vê o fim. E que me diz então a estas despedidas de maio e entradas de junho?!...

—Não são de convidar, sr.ª Brizida! Velho sou,{54} mas não me lembro de anno mais carrancudo. Chuvas, relampagos, trovões e ventanias que levam tudo pelos ares! Safa!

—E nós, coitados, n'este ermo, n'este desterro! Ai minha Senhora Santa Barbara! se a tua serva e devota não deixa aqui os ossos, grande milagre será. Escute!... Agora não foi engano!... Não ouviu risadas lá em cima no vão das casas?

—Não é nada. São os rapazes do feitor jogando as escondidas.

—Pois, sr. Romão Pires, affirmo-lhe por minha alma, que em Lisboa, quando minha senhora D. Magdalena me chamou e me disse: «Brizida, a sua menina anda fraquinha e enfezada, e o irmão tambem, os phisicos não acertam com o remedio, e fr. João entende que estas tosses do peito, assim teimosas, não se despegam senão com mudança de ares. Bem sabe, não posso sair da cidade por estes dias mais chegados—e é assim, coitada, por causa da sua demanda—acompanhe-me os meninos, e conte que fico tão socegada como se eu mesma fosse...» Quando me disse isto, e eu lhe beijei as mãos pela mercê, se podesse adivinhar o que nos esperava aqui, asseguro-lhe que me encolhia como a tartaruga na concha; e viesse quem quizesse... Isto não é palacio, nem quinta, é um verdadeiro inferno! Deus salve a minha alma!

—A sr.ª Brizida não diz o que sente. Vindo a{55} sr.ª D. Maria e o sr. D. Pedro, ninguem a arrancava de ao pé d'elles.

—Tem razão. Ninguem! A ella creei-a, mamou o meu leite, e sua mãe não lhe quer mais, não, deixe-me ter esta presumpção... A elle vi-o nascer, e os primeiros braços, que o embalaram, foram estes que hade comer a terra. Tão pequeninos os conheci, e tão formosos e crescidos os vejo agora, que não me posso costumar a crer, que um dia hei de ter o gosto de os abraçar homens!... Quando me ponho a olhar para elles, parece-me ás vezes que não póde ser, e que tudo isto é sonho...

—Então!? Elles fazem-se homens, e nós fazemo-nos velhos. Não ha remedio. O mundo vae assim.

—Bem sei. Mas, não os acha muito delgados, muito afinadinhos? Dizem que é da edade e do muito crescer, e que hão de encorpar depois. Deus queira! São os negregados estudos, que me ralam o corpo e a alegria dos meus meninos. A sr.ª D. Maria manhãs e tardes inteiras á almofada, bordando de branco, de matiz, e a ouro. E com que perfeição!... Que dedinhos de fada aquelles! E o sr. D. Pedro? É mesmo uma dôr de alma vel-o dia e noite amarrado á banca dos livros, e que livros! Latins, gregos, e não sei que outras trapalhadas de retroricas... Quem tem a culpa de tudo, o culpado de tudo o que póde acontecer, é o teimoso do sr. fr. João, que á fina força{56}quer o sobrinho sabio. Depois que falleceu o pae, (Deus o tenha em gloria!) não se nos tira de casa, e tanto ha de quebrar-me a cabeça ao meu menino, que um dia treslê. Pois olhe, sr. Romão Pires, vá com o que lhe diz uma ruim cabeça: mais vale asno vivo, que doutor morto.

—O sr. fr. João, atalhou Romão Pires, aproveitando uma pausa da sr.ª Brizida, é muito bom tio, e desde que morreu meu senhor e amo tem sido um segundo pae para os meninos. Quer os sobrinhos prendados e de grandes merecimentos. Não lh'o levemos a mal. Sangue illustre e bens da fortuna possuem elles...

—Por isso mesmo! Não precisava atanazarmos tanto! Não m'os deixa respirar. Mestres d'isto, mestres d'aquillo, musica para aqui, dansa para acolá... latins, pholosophias, ai, que barafunda! Nem eu sei como as pobres creanças não teem endoudecido. Cá por mim já o miolo ha muito tempo me tinha dado volta, tão certo como chamar-me eu Brizida de Sousa.

—Ninguem aprende sem trabalho. O sr. fr. João não é nenhum nescio...

—Nem eu lh'o chamo. Deus me livre. Nescio?... No convento e na côrte dizem que não ha outro doutor como elle.

—Pois então deixe-o, que bem sabe o que faz. Estes sobrinhos são a luz dos seus olhos, e depois tão meigos, tão applicados...{57}

—De mais, de mais, para a edade, sr. Romão Pires. Assustam-me. Não parecem d'este mundo, nem d'este seculo. O sr. fr. João é muito extremoso, e o que faz é por desejar o seu bem d'elles, mas, graças a Deus, a casa é rica e não era preciso amofinar-me tanto os meus meninos...

O dialogo de que acabamos de ser fieis e escrupulosos expositores, era travado em uma antiga sala, vasta e pouco allumiada por estreitas janellas, cujas vidraças de postigo mal deixavam coar o dia. Das paredes em reboco pendiam farrapos soltos dos pannos, que as tinham forrado. Em outras partes as colgaduras adheriam ainda aos filetes, e representavam em suas pinturas desvanecidas figuras descommunaes, debaixo de arvores anãs, e no meio de arbustos e flores monstruosas. Os tectos, cujas vigas lavradas inculcavam a paciencia de um artifice do XV seculo, subiam a grande altura, enegrecidos pelo fumo da immensa chaminé de pedra, ornada de leões de marmore nas bases, e rematada com um brazão de relevo alto, orlado de ramos de silvas e amoras.

O sr. Romão Pires, escudeiro de quasi setenta annos de edade, enxuto de carnes, e amarello como uma cidra, erguia-se direito e aprumado como uma das faias mais direitas da quinta. Nascêra e fôra creado desde a infancia n'aquella casa, e não conhecera nunca outros amos senão D. Vasco, e D.{58} Magdalena. Acompanhára seu senhor, assim lhe chamou sempre, em todas as campanhas da guerra da restauração, pelejando esforçadamente ao lado d'elle, e assistindo aos cercos e batalhas mais notaveis desde 1642. A historia dos perigos, em que se tinha achado, e a narração das proezas de seu amo, enfeitada de episodios e commentarios, serviam de saboroso pasto aos serões da familia, obrigada a engulir como artigos de fé todas as aventuras da nova «Tavola Redonda,» que a imaginação do escudeiro entretecia na tela interminavel de sua cansativa Illiada.

A sr.ª Brizida de Sousa, que tão avexada ouvimos queixar-se das apparições, era matrona de mais de cincoenta annos. Baixa, roliça e risonha, suas faces lisas, cheias e coradas ainda tinham a frescura de duas maçans rainetas. As feições, pouco accentuadas, e quasi infantis, sumiam-se entre as roscas das nedias bochechas, e os seus ares beatos brigavam na candura affectada com uma larga experiencia da vida. Toda aquella pequena e buliçosa matrona respirava aceio, cuidado, devoção, e azafama. Collaça de D. Magdalena, e casada com um dos caseiros mais abastados do morgado, depois ama de leite da filha primogenita da casa, enviuvára sem filhos, nem saudades do estado, resumindo todos os affectos nos seus extremos pela fidalga, e na idolatria das duas creanças, que trazia sempre na boca e no coração.{59}

Trajava por costume roupas escuras. As toucas alvissimas, caidas talvez de mais para a testa, e o córte dos vestidos á beguina, affirmavam o programma da sua virtude inaccessivel. Supersticiosa, e com a memoria recheada de orações, de visões, e de devotas crendices, o seu defeito capital era occupar-se muito com as vidas alheias, enfiando um rosario de conselhos a proposito de tudo, e mexericando, por indiscreta, amos, criados, e hospedes, mas sem intenção ruim. Todos se encobriam d'ella, quanto podiam, porém ninguem a aborrecia. Temiam-se da intemperança de suas confidencias, mas confessavam a bondade do seu caracter, que era na verdade excellente.

Romão Pires, tirando a estafada repetição de suas campanhas, representava em tudo o opposto d'ella. Sério, como um santão, embizourado, e quasi sempre com a aguda barba escondida na gargantilha, se levantasse a vista e a curiosidade para os negocios dos outros, cuidaria faltar a Deus, a si, e ao mundo. Sua boca era sagrada, e segredo que lhe caisse no peito ficava sepultado n'elle profundamente.

Apesar d'estas qualidades contrarias e talvez mesmo pelas possuir, era o conselheiro nato da sr.ª Brizida em todos os casos intrincados, e o defensor convicto dos seus mêdos e indiscrições.—«Boa alma! Boa alma! respondia aos que a censuravam.{60} Tem o defeito de fallar de mais, mas é uma santa pessoa.»—Brizida pagava-lh'o. Para escutar a milessima edição das guerreiras epopeias do escudeiro, até fazia o sacrificio de suspender a loquacidade propria!...

O sr. Romão Pires, amortalhado na eterna roupeta e n'umas calças côr de pulga, esguio, comprido, e hirto, com um par de oculos de azelha montado no cavallete do interminavel nariz, não desabotoava a seriedade do rosto, nem dava ferias ao enfado chronico senão para sorrir á sua comadre Brizida. Aquelles olhos verdes desbotados não se animavam senão para festejar algum bom dito da matrona, cujas fallas assucaradas contrastavam com a voz rouca e soturna do antigo campeão da independencia portugueza. A predilecção honesta, mas decidida dos dois um pelo outro, não escapára aos criados, e todos acreditavam que, cedo ou tarde, o vinculo matrimonial ainda viria apertar mais estreitamente a união de duas almas já tão intimas.

A quinta, em que residiam havia duas semanas, situada na margem direita do Tejo, estendia as matas e charnecas até á ribeira, que separa Paio Pelle da villa de Tancos, da qual a casa, construida sobre uma colina, distaria pouco mais de dois ou tres tiros de espingarda. Era palacio antigo, talvez fundado por meiados do seculo XIV, accrescentado, e reparado pelos fins do XVI. As ameias, já derrubadas{61} em muitos lanços de muro, proclamavam a sua velha e legitima nobreza. Duas alas terminadas por torres fortificadas em tempos mais remotos, saindo fóra do corpo principal do edificio, formavam os lados do espaçoso terreiro, rasgado diante da fachada, cujas doze janellas de architectura irregular olhavam para elle. No terreiro se tinham jogado cannas e corrido touros nos anniversarios festivos dos senhores.

A casa era antiga, como dissemos, e estava muito velha. Nas juntas e articulações das pedras carcomidas cresciam tufos de viçosas parietarias. Uma arcada sombria, sustida por grossas pilastras, resguardava as entradas das duas escadas, que subiam em volta de caracol até ao primeiro andar. Outra porta, por baixo do centro da arcada, dava serventia por uma rampa para os subterraneos allumiados ao rez do chão por agulheiros. No piso nobre corria uma fileira de salas nuas, frias e tristes, lageadas de ladrilho. Sobre os corredores por onde o ar e uma luz escassa a custo circulavam, abriam as alcovas suas portas envidraçadas. Seguiam-se muitos aposentos, mais ou menos escuros, crusados de passagens, de escadas furtadas, e de portas falsas, compondo desde o andar terreo até aos vãos debaixo dos telhados, uma rêde inextricavel, um verdadeiro labyrintho. A casa de jantar, forrada de carvalho em molduras, prolongava-se á maneira de refeitorio{62} entre dois extensos corredores. Na extremidade de um d'elles baixava uma escada para o jardim, na outra empinavam-se os degraus da escada, que ia para os vãos, os quaes por cima corriam em largura e comprimento da casa. As torres communicavam-se com o corpo do edificio por duas portas esguias e abobadadas, aferrolhadas havia longos annos. Os eirados, meio abatidos, vertiam-lhes dentro em torrentes as chuvas caudaes do inverno.

O jardim, ornado de canteiros e de poiaes azulejados, com um tanque de pedra no meio, e um satyro hediondo entornando a urna desforme, creava algumas roseiras e craveiros degenerados entre urtigas, papoulas, e malmequeres bravos. As hortas mais cuidadas pegavam com as terras de pão, cingidas de vallados altos, defendidos com pitteiras. O aspecto do palacio era carregado de melancholia. Rodeado de solidão justificava em sua tristeza as queixas, que ouvimos á sr.ª Brizida. Porque escolhera, porém, D. Magdalena aquelle êrmo para abrigo dos filhos e dos criados, quando tinha tantas propriedades mais alegres e reparadas aonde podessem respirar, longe do bulicio da côrte o ar do campo?

D. Magdalena descendia da familia illustre dos Coutinhos Noronhas, de que fôra tronco e progenitor o marechal Gonçalo Vaz Coutinho, senhor do couto de Leonil, e meirinho-mór por el-rei D. Fernando na comarca da Beira. Formosa, discreta e recatada,{63} perdera seu marido, D. Vasco Mascarenhas, mestre de campo dos exercitos de D. João IV e D. Affonso VI, havia tres annos, e ainda não enxugára as lagrimas da viuvez. Em edade de merecer e de acceitar requebros, tinha-se recolhido na sua casa de Lisboa, aonde não recebia senão as visitas de alguns amigos antigos da familia, guiando-se em tudo pelos conselhos de fr. João Coutinho, seu irmão, grande sabio, e doutor em canones e theologia, o qual se encarregára de dirigir a educação litteraria dos sobrinhos.

D. Vasco Mascarenhas, tão distincto pelo nascimento, como pelas qualidades do caracter e do espirito, unira ás propriedades de sua casa, já mui rica, o senhorio da villa de Paio Pelle e do castello de Almourol, que sua mulher lhe trouxera em dote, mas quasi sempre occupado na côrte com os negocios politicos e no serviço activo das armas, só duas vezes visitára de fugida aquelle solar desamparado, que principiava a cair em ruinas, entregando o grangeio das terras e a cobrança dos direitos do donatario, com excessiva confiança, diziam os murmuradores, á probidade equivoca do feitor Paulo Rodrigues, camponez avido e ladino, que mais as disfructava como usurario, do que as geria como administrador. Avisada de que o palacio e as fazendas se arruinavam n'aquellas mãos viscosas, D. Magdalena resolvera ver por seus olhos o verdadeiro estado{64} das cousas, na companhia de seu irmão, fr. João Coutinho, ficando para depois decidirem ambos o que julgassem mais conveniente.

Outra razão serviu de estimulo para a partida dos filhos da casa, dissimulada com o pretexto da necessidade da mudança de ares. Antigas relações de parentesco ligavam a familia dos Mascarenhas com o segundo ramo dos Noronhas, cujo opulento morgado possuia grandes bens na mesma comarca, aonde existia o solar dos Coutinhos. O logar do Arripiado, que tão viçoso beija as aguas do Tejo, defronte de Tancos, com dilatados campos e charnecas, pertencia ao velho D. Nuno, cujo filho unico, D. Affonso de Noronha, saira da côrte para o exercito do Alemtejo. D. Affonso, illustre pelo berço, e já illustre pelo valor, vira crescer em belleza, primeiro com assombro, depois com paixão ardente, sua prima D. Maria de Mascarenhas, e não encobrira de seu pae o amor, que ella lhe inspirava. D. Nuno confiou este segredo á ditosa mãe, e ella, não podendo desejar casamento mais vantajoso, nem mais da sua escolha, antes de dar o sim, quizera, comtudo, sondar disfarçadamente as inclinações da donzella. Conheceu com alegria, que D. Affonso começára a apoderar-se d'aquelle coração, que em sua innocencia principiava a balbuciar apenas as primeiras e vagas aspirações de um sentimento, que não sabia definir ainda.{65}

Corria o anno de 1663. D. João de Austria, á frente das armas castelhanas, tentára o derradeiro esforço, invadindo Portugal com dezeseis mil soldados, e os nossos generaes, juntando as forças, mal conseguiram oppor-lhe cinco ou seis mil. A cidade de Evora, que devia ser um dos baluartes da resistencia, accommettida no dia 14 de maio, capitulára, depois de pouco honrada defeza. Este revez aggravou os receios, e as partidas de cavallaria inimiga chegaram a insultar Alcacer. D. Sancho Manuel convocára immediatamente os officiaes a conselho, e só um voto, o d'elle, approvára a conveniencia de ferir a batalha, que as ordens do governo prescreviam como remedio extremo. A pericia de Schomberg, temendo como inevitavel o desastre, viu n'elle o ultimo precipicio da independencia; mas a feliz temeridade do conde de Villa Flor, fechando os olhos á prudencia, applaudia o encontro decisivo dos dois exercitos, como o unico meio, embora desesperado, de salvar a provincia e o reino da sujeição estrangeira.

O povo de Lisboa, assustado, furioso, e alvorotado nas praças, assaltára as casas de Sebastião Cesar, do marquez de Marialva, e de Luiz Mendes de Elvas. A todas as horas se aguardavam noticias da marcha das tropas, e todos tremiam. Um lance repentino podia sepultar para sempre as esperanças de Portugal!{66}

A filha de D. Magdalena, D. Maria de Mascarenhas, mais velha desoito mezes do que D. Pedro, seu irmão, contava n'esta epocha dezesete annos, e sem vaidade merecia ser admirada como uma formosura completa. Talvez que o unico senão de tanta belleza fosse a sua mesma perfeição irreprehensivel. No rosto, graciosamente emoldurado pelas luxuosas tranças, confundiam-se os lirios e as rozas na mais mimosa frescura. A bocca, fina e espirituosa, córada como um botão nacarado, breve como um suspiro, quando o sorriso a animava, tinha uma expressão adoravel. Nos olhos pretos, que as assedadas pestanas cobriam ás vezes de uma sombra de enlevada melancolia, a luz serena raramente se inflammava, mas sua tranquillidade languida deixava adivinhar, que se a paixão dormia ainda, facil lhe seria, despertando, illuminar de subito e vivo fulgor aquellas pupilas descuidadas. A mão parecia formada pelo modelo de uma estatua primorosa. O pé estreito e arqueado pousava-se tão leve e elegante, que a vista como que involuntariamente se alçava a buscar nos hombros as azas da Silphide. A voz tinha condão seductor. A estatura, um pouco acima de ordinaria, e flexivel como a hastea de uma flor, tambem se dobrava como ella, parecendo que o esbelto corpo de melindroso não podia com o doce peso da fronte, em que as mil graças da primeira enamorada primavera competiam umas com as outras sem se vencerem.{67}

As posições e os gestos em sua desafectada singeleza respiravam a attracção, que o calculo debalde se esforça por imitar. Tudo desmentia o arteficio. O requebro das maneiras, o imperio irresistivel da vista e do sorriso, e a magia arrebatadora das fallas e do semblante, nasciam espontaneos, prendendo os sentidos e a admiração. A formosura da alma ainda era maior, se é possivel. O coração retratava-se na fronte limpida, e os infinitos thesouros de ternura e de abnegação, que por ora concentrava nos extremos de filha e de irmã, quando se abrissem a affectos mais vehementes, promettiam todas as venturas ao amor ditoso. A pureza mais casta, a da ignorancia sublime da infancia, vestia-lhe de candura todos os pensamentos. O pejo era n'ella tão sensivel, que affrontado não só faria corar o rosto, mas o corpo. Compassiva e caridosa sabia conciliar a altivez do sexo com a brandura da indole a firmesa da vontade. Os dotes do espirito esmaltavam as qualidades moraes.

Talvez não houvesse na corte dama ou donzella tão instruida na lição das boas letras. Os melhores livros de prosa e as obras mais acceitas e castigadas dos poetas portuguezes, hespanhoes e italianos, escolhidos por Fr. João, eram a sua companhia certa nas horas de repouso.

D. Maria presava em D. Affonso de Noronha todas as distincções, que o exaltavam. Valia menos, porem, a seus olhos a illustração do berço, do que a elevação{68} do caracter e a fidalguia das acções, que em edade tão verde quasi o haviam tornado um paladino. Não seria mulher, comtudo, senão a confirmassem n'este juizo a presença insinuante do mancebo, a gentileza do seu porte e a nobre expressão da sua phisionomia. Os olhos da donzella, sempre pensativos, encontrando os olhos vivos e rasgados do primo, aonde riam as illusões da vida e da juventude, nunca fugiam d'elles, senão a furto, e as rosas mais accezas das faces confessavam o que tentaria encobrir em vão se acaso soubesse dissimular. Nunca os labios dos dois tinham soltado uma palavra, que revelasse o que sentiam. Amavam-se. A alma de um trazia sempre gravada a alma do outro, mas só a eloquencia da vista, indiscreta ás vezes, traira o segredo. D. Affonso, não podendo por mais tempo calar a chamma, que o abrazava, tinha declarado ao pae, momentos antes de metter o pé no estribo e de partir para a campanha, que este amor encerrava todo o futuro de suas esperanças, entregando-lhe a sorte d'elle. Sabemos que D. Nuno não perdera a occasião, e que D. Magdalena applaudia o enlace proposto.

A chegada repentina dos filhos de D. Magdalena, da aya e do escudeiro, com alguns criados velhos, colheu de sobresalto o feitor Paulo Rodrigues. Tomado de subito o manhoso camponez, soubera disfarçar o embaraço e as apprehensões, mas custara-lhe a conformar-se com a presença dos amos na casa, que{69} havia tantos annos estava costumado a olhar mais como sua do que d'elles. Mandou varrer e aceiar á pressa duas salas e algumas alcovas do andar nobre, para os hospedar, recolheu a mulher e os filhos nos vãos do palacio, e ainda se lhe carregou mais a viseira quando soube que a senhora e Fr. João Coutinho poucos dias se demorariam atraz da familia.

No primeiro dia reinou profundo socego, mas na segunda noute, mal a ultima pancada do sino batera as doze horas, romperam as diabruras nos quartos da aya e de Romão Pires. Apagaram-se todas as luzes de repente por si mesmas. Estalaram nos corredores risadas infernaes. Soaram ruidos de ferros e cadeias arrastadas. Só ao alvorecer é que tudo desappareceu.

O escudeiro, lembrado dos antigos feitos, apesar do tremor, que lhe sacudia os membros, quiz fazer e fez cara feia ao demonio. Na terceira noute levantou-se da cama, engrolando Padres Nossos e Ave Marias, petiscou lume, accendeu uma vela, abriu a porta de manso e saiu ao corredor, quasi em vestido de banho, mas com a comprida espada nua debaixo do braço. Depressa se arrependeu. Aos primeiros passos um sopro forte apagou-lhe a luz, bramidos roucos e proximos gelaram-lhe o sangue, e um clarão momentaneo e sulphurio mostrou-lhe, envolto no sudario, um spectro descummunal e ameaçador.{70}

Esta horrenda visão deu-lhe com os brios em terra; e, virando costas ao inimigo, logrou refugiar-se no seu catre com a cabeça debaixo das roupas, acto de valor, em que a sr.ª Brizida de Sousa o acompanhava conscienciosamente havia muitas horas. Pela manhã os dous velhos pareciam desenterrados.

O aposento aonde D. Maria de Mascarenhas dormia e uma criada, não foi mais respeitado, e a donzella, transida de susto, contou em vigilia continuada as longas horas, que medeiaram até ao amanhecer. D. Pedro ainda padeceu mais. Acordando sobresaltado ao impulso de mãos brutaes e no meio de escuridão profunda, sentiu-se arrancar do leito e balouçar dentro das cobertas entre uivos e rizadas.

Paulo Rodrigues, pelas oito horas veio saber da saude dos amos, e, ouvindo da sua bocca a lastimosa historia dos tormentos e perplexidades nocturnas, contentou-se com encolher os hombros, e observou serenamente, que em vida de seu pae, já tinham muito má fama as casas do andar nobre.

As noutes seguintes não foram mais tranquillas. Os espectros e duendes tinham de certo reservado aquellas espaçosas salas, e os corredores, para theatro de suas diabruras. Dir-se-hia até que o tempo conspirado com elles os ajudava a augmentar o pavor dos hospedes. Rebentaram as trovoadas de maio tão carrancudas e violentas, que os ceus se abriam em relampagos, e a terra tremia com o rebombo dos trovões.{71} As chuvas caiam tão impetuosas que as estradas ficaram convertidas em leitos de torrentes e as terras baixas em lagoas. O Tejo, cheio e empolado, alagava as margens, e suas aguas batiam enfurecidas contra os penedos sobre que se ergue o castello de Almourol, salvando por cima do caes em cachões de espuma. Ao oitavo dia acalmaram-se as tempestades, mas redobraram de força os maleficios nocturnos, com terror, e espanto summo dos recem-chegados.

Avexados, tremulos e fóra de si, reuniram-se todos e determinaram mudar a residencia para os aposentos do castello, que não tinham desabado ainda minados pelos seculos e pela indifferença; mas o feitor, que estabelecera n'elles uma filha casada, dissuadiu-os do proposito, ponderando que as salas e os quartos do velho edificio dos Templarios, alem de frios e de mais nus, que os do palacio, não eram menos perseguidos de visões. Por horas mortas, exclamou elle, as almas dos cavalleiros tornavam aos sitios, aonde tantos annos os corpos tinham vivido. Nas guaritas de pedra, pelo adarve das muralhas, e nas salas de abobada, espectros cobertos com o manto branco, ornado da cruz vermelha da famosa milicia religiosa, appareciam repentinamente, e no silencio da noute sentia-se o tinir das grevas e sapatos de ferro sobre as lageas e ouvia-se a voz das sentinellas. Até raiar a aurora não se calavam na sala de{72} armas as vozes, as rizadas, e as blasfemias. Escutando esta descripção horrifica, Brizida de Sousa e Romão Pires olharam consternados um para o outro, e depois de se persignarem devotamente, não querendo precipitar-se de Scylla em Carybdes, preferiram supportar as travessuras menos estrondosas dos duendes da quinta. Escreveram entretanto a D. Magdalena, pedindo-lhe que os tirasse d'aquelle purgatorio o mais cedo possivel, ou que viesse sem demora em companhia do Sr. Fr. João desalojar os espiritos diabolicos, cuja audacia zombava da agua benta e exorcismos do Vigario de Tancos. Os dous honrados servos confiavam que a grande sciencia do frade doutor e as virtudes do habito de S. Domingos sairiam victoriosas com certeza da rebeldia de Satanaz e da maldade dos seus accessores.{73}

8 Mars 2018 15:51 0 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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