amanda-kraft1664221938 Amanda Kraft

Um crime cometido há mais de 80, onde as discrepância nos intrigam até hoje. Seria possível descobrir toda a verdade em torno dele depois de tantos anos?


Thriller/Mystère Interdit aux moins de 18 ans.

#crime #castelinho rua apas #drama #sobrenatural
Histoire courte
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O vigia noturno


Acabara de fechar um importante projeto de restauração que seria de grande visibilidade para minha empresa de Arquitetura. Mas não era apenas esse o motivo. Queria estar à frente desse projeto. Sou louca por imóveis históricos e a propriedade da Casa da Rua Angélica, 236, construída em 1912, no estilo Renascentista, era o sonho de qualquer arquiteto. A pobrezinha estava abandonada há algum tempo. Feliz da vida, parti junto da minha equipe para o local, sem ter a mínima ideia do que me aguardava.

A obra estava em pleno vapor. Enquanto discutia com o serralheiro os detalhes nos arabescos do corrimão da escada da sala de jantar, percebi uma senhora idosa passando pela porta do quarto que fiz, provisoriamente, de meu escritório. Pedi licença para seu José, e fui atrás dela. Foi a primeira vez que a vi. Andei pelos cômodos, cheios de trabalhadores, à procura da tal mulher. Encontrei-me com Carlos, engenheiro da equipe, que verificava na cozinha os ladrilhos que seriam assentados sobre a pia:

— Carlos, quem deixou uma senhora entrar na obra? Ainda por cima sem nenhum equipamento de segurança?

— Senhora? Não vi ninguém, Charlie. Tem certeza? — questionou de cenho franzido.

— É claro! Acabou de passar pelo corredor. Você sabe como isso é irregular! — completei, aborrecida.

— Que estranho! Tenho certeza de que fui bem claro quanto à entrada de estranhos na obra. Mas vou descobrir quem a deixou entrar. Deixa comigo.

Voltei, intrigada, para a conversa interrompida com o serralheiro e não pensei mais no assunto. No início da noite, quando todos se preparavam para o merecido descanso, resolvi ir até a sala de jantar, apreciar a abóboda que refletia a luz da lua, clareando totalmente o cômodo com sua luz fria. Ao deixar a obra, maravilhada com o espetáculo de luzes fragmentadas, avistei o velho vigia. Encontrava-se sentado em uma cadeira de madeira, entre as colunas que sustentavam a varanda da biblioteca no piso superior, com toda a sua tranquilidade aparente.

— Boa noite! — cumprimentei o velho que olhava para as estrelas.

— Noite! — respondeu-me cabisbaixo, assim que ouviu minha voz.

— Olá. Sou Charlote, mas todos me chamam de Charlie. Ainda não o tinha visto por aqui — observei, voltando-me para a frente da casa, mirando encantada o efeito prateado do luar sobre ela.

— A moça gosta daqui, não? — questionou ele, como se tivesse a certeza da resposta.

— Pode apostar que sim. Esse lugar me fascina. Fico imaginando o que havia em cada cômodo, quem viveu aqui, como passavam o tempo dentro e fora da casa, os jantares e as festas que deviam dar notoriedade ao lugar! — retruquei com um olhar luzidio, entretanto ele mantinha os olhos fixo à frente — O senhor sabe alguma coisa sobre a casa? Quem viveu aqui? — indaguei curiosa.

— Um dia eu conto para moça — anunciou, encerrando o assunto peremptoriamente. Só me restou desejar-lhe boa noite e dar partida no carro.

Engraçado como a curiosidade pareceu me consumir ainda mais, assim que o velho me redarguiu. Até então estava mais preocupada com afrescos, escadas, pisos, ladrilhos. Sequer havia pensado na vida pulsante que um dia se descortinou por ela.

Naquela noite tive um sonho estranho. Vestia-me com um vestido antigo, de seda. Estava à mesa de jantar, à luz de velas, tendo o luar a adentrar pela cúpula de vidro. Havia homens e mulheres elegantes, rindo e conversando, enquanto saboreavam da mesa farta. Apenas dois homens, que encabeçavam as pontas da mesa, pareciam alheios a tudo aquilo. Havia certa semelhança entre eles, o que me fez pensar serem irmãos. Em nenhum momento sorriram, apenas observavam a cena. De repente a mesa de jantar deu lugar ao salão principal. Casais rodopiavam ao som de uma valsa. Um deles — talvez o mais velho — deixou o lugar sem dizer uma palavra. O outro circulou pela sala e entrou no que parecia ser um escritório, perto da escadaria que levava ao andar superior. Acordei assustada, no meio da noite, ao ver a velha caída ao pé da escada. Havia sangue em suas vestes.

Demorei a voltar a dormir, intrigada com o fato de que minha mente projetara no rosto da mulher caída ao pé da escada, o mesmo da mulher que vira perambulando pela obra. Alguns dias mais tarde, totalmente focada na restauração da casa, a vi novamente. Dessa vez passou por mim enquanto eu analisava um afresco na sala de estar. Deixei o caderno em que reproduzia um desenho e corri atrás dela. Quando cheguei à escada, a mulher havia desaparecido. Senti um arrepio no corpo ao relembrar o sonho. Ela tombara naquele mesmo lugar. Voltei à sala e logo um dos rapazes me procurou:

— Dona Charlie! Posso ter uma palavrinha com a senhora? — apressou-se a dizer, visivelmente nervoso.

— É claro! O que houve?

— Não é nada não! É que tendo um burburinho entre os rapazes. A gente tem que resolver logo antes que o povo resolva deixar as coisas e se mandar.

— Já falou com o Carlos? — retruquei, pressentindo problema.

— Não senhora. Achei melhor falar com a senhora primeiro. Sabe como é...

— O que está havendo, seu Luís?

— Bom, os rapazes tão dizendo que tão trabalhando e, de repente, as coisas começam a sumir.

— Sumir? Como assim? O senhor acha que “estão entrando” na obra?

— Não. Não. As coisas somem e depois aparecem de novo do nada. Uns disseram que tão ouvindo choro, gritos... — resmungou baixo, olhando envergonhado para os próprios pés.

— Bom, seu Luís. Não sei o que o senhor está tentando me dizer, mas acho improvável. Talvez seja alguma brincadeira de um dos rapazes. De qualquer forma, ninguém se machucou, as ferramentas estão aí. Então, vou falar com o Carlos para dar uma acalmada no pessoal e descobrir o brincalhão.

Não podia dizer a ele que eu mesma estava achando estranho aquela mulher entrar e sair da obra daquela maneira. Resolvi esticar o expediente e tentar tirar alguma informação do vigia noturno. Ele parecia conhecer aquele lugar como a palma da mão. Deixei a obra e, assim que saí pela porta, eu o vi andando em direção ao bosque. Chamei por ele, entretanto, acenou-me e desapareceu. O celular tocou e acabei me esquecendo dele, enquanto seguia para o carro. Sabia que logo o velho voltaria para seu posto e cuidaria da obra. Então, passei pela guarita, distraída com a conversa, e fui para a casa.

Depois de um bom banho e já estando alimentada, sentei-me no sofá com o laptop aberto. Algo me incomodava, sobremaneira. Lembrei-me da velha intrusa. Isso me fez ir ao Google buscar informações sobre a casa. Digitei Casa da Rua Augusta e logo as imagens encheram a tela. Horrorizada, vi a imagem da velha senhora caída na escada, tal qual em meu estranho sonho. Rolei a tela e, mais abaixo, os dois irmãos também estavam lá, maculando o chão de ladrilhos, um ao lado do outro.

Pareciam dormir, não fosse a mancha escura em suas camisas brancas. A manchete dizia tratar-se de um duplo homicídio, seguido de suicídio, de importantes membros da sociedade paulistana. Chocada com a leitura e com a forma como os reconheci naquelas páginas, passei a procurar por todos os sites que traziam a tragédia que dizimara a família Alves.

Segundo as matérias havia tempos que os irmãos Eurico, o mais velho, e Emílio estavam às turras. Eurico queria se desfazer de um dos imóveis rentáveis da família para montar um ringue de patinação no gelo, sendo ele um playboy, campeão na modalidade. Emílio e a mãe, dona Augusta, eram contra. Ringue de patinação em pleno calor do Brasil? O irmão mais novo, cansado da sandice do mais velho, ameaçou interná-lo em um hospital psiquiátrico. Entretanto, Eurico havia se comprometido com alguns sócios a levar o plano adiante, assinando várias promissórias. Em uma terrível discussão entre os três familiares, o veredicto deu-se como homicídio duplo de Emílio e Dona Augusta, causado pela arma de fogo de Eurico que, posteriormente, suicidou-se após a tragédia.

Contudo, havia inúmeras discrepâncias entre o laudo da perícia técnica e o dos médicos legistas. Vestígios de pólvora foram encontrados na mão de Emílio, que morrera com um tiro no coração sendo, para os médicos legistas, o autor do crime, contrariando a perícia que afirmava que Eurico se matou com dois tiros no peito. “Quem se mata com dois tiros no peito”? Sua arma fora encontrada ao lado do corpo, próximo à sua mão esquerda. Soube-se mais tarde, sem a devida importância, que Eurico era destro.

Dona Augusta fora alvejada com um tiro nas costas e três no peito. Contudo, o projétil das costas não era o mesmo encontrado em seu peito, o que nos leva a crer que uma arma desconhecida foi usada, porém nunca encontrada. A discussão entre os três e os tiros deflagrados não foram ouvidos por nenhum dos empregados que viviam em um anexo da casa. A secretária de um dos rapazes desapareceu misteriosamente depois de revelados os crimes.

Estava pasma com o que lia. Continuei pesquisando e a história nunca mudava. Os arquivos, com mais de oito pastas, desapareceram misteriosamente quando se tentou reabrir o caso, um ano após a tragédia, descobrindo assim, que as fotos tiradas logo após o crime, em maio de 1937, cujo negativo se fazia em placas de vidro, foram quebradas quando o carro que as transportava sofreu um acidente. Os irmãos Alves morreram intestato. Seus bens passaram a pertencer à União, a partir de uma Lei sancionada pelo Presidente Getúlio Vargas, nomeando-a de heranças vacantes, onde parentes de segundo grau das vítimas não tinham direito aos seus bens.

Como aquilo era possível? Um crime com mais de oitenta anos e ninguém descobriu a verdade sobre ele? Quanto mais informações eu procurava, mais fascinada ficava pela família Alves. A forma como os vi em sonho, causava-me um frio na espinha. Muitos foram os relatos de coisas anormais naquele imóvel durante os anos em que se deteriorou no tempo. Alguém deveria saber o que aconteceu a eles. Esse pensamento trouxe-me as palavras do velho vigia noturno: Um dia te conto.

Acordei ansiosa para me encontrar com o velho à noite. Entretanto, o dia não foi muito produtivo. Sentia-me letárgica. Na hora em que a velha costumava aparecer, às três da tarde, um formigamento percorreu minha espinha até a altura do pescoço. Segui, impelida por uma mão invisível para a escada, e a vi. Nossos olhos se encontraram. Engoli em seco quando seu braço ergueu e o dedo indicador apontou em minha direção. Até então não havia sentido medo algum, pois a pensava viva. Contudo, ao saber que estava frente a frente a uma manifestação sobrenatural, minhas pernas tremeram. Tomei de coragem e perguntei:

— O que aconteceu? Como posso ajudar?

Seu rosto se transformou num esgar de fúria e o vazio da boca assustou-me sobremaneira. Entendi uma única palavra antes que ela desaparecesse diante de meus olhos estupefatos: Eduardo! Eduardo? Quem era Eduardo? Em tudo que li esse nome não fora citado. Tentei me distrair, porém o tempo resolveu discorrer lentamente naquela tarde. Quando todos se foram, deixei a obra e saí à procura do velho vigia.

Ele estava sentado na mesma cadeira. Puxei uma lata de tinta e me sentei ao seu lado. Seu olhar se mantinha no horizonte e pouco se via de seu rosto sob o luar. Perguntei-lhe sobre os irmãos. Percebi um leve pesar pelo modo como contraiu a boca, antes de começar a falar de forma lenta e arrastada:

— Na década de trinta, os alemães eram os maiores importadores do Brasil, por isso o Vargas fazia vista grossa ao partido nazista no País. Tampouco ligava para as escolas alemãs que ensinavam em alemão e cantavam hinos para Hitler. Muitos espiões espalhavam-se pelos estados, infiltrados em vários setores, incluindo repartições públicas, usando codinomes. Hitler tinha um interesse especial no Brasil. Havia um bar na Avenida São João cujo proprietário escondia uma suástica atrás do balcão. E foi nesse bar que Eurico conheceu um jovem que se tornaria seu sócio na louca empreitada de transformar o Cinema de sua família em um ringue de patinação. Eurico era um jovem galanteador, rico, solteiro que se sentia livre sobre uma moto e patinando. Vivia rodeado de belas mulheres. O jovem alemão viu na sociedade a possibilidade de status para o partido nazista, mas não queria o mesmo que ele e, sim, o próprio Cinema, que seria usado para passar informações aos espiões e também os próprios filmes do Führer.

O primogênito tomou dinheiro do partido, não contando com a negativa do irmão mais novo e da mãe. Pressionado, viajou ao exterior com o intuito de levantar mais fundo para o projeto que jamais se concretizaria. Ao voltar, encontrou suas promissórias adulteradas. Pela primeira vez o medo o fez perder a cabeça. As discussões com o irmão mais novo foram testemunhadas por frequentadores da casa. Emílio não sabia o quanto Eurico estava sendo pressionado pelo partido, a ponto de quase entrar com um pedido de intervenção contra o irmão. Restou a Eurico contar a verdade a Emílio sobre os sócios e sobre a adulteração das promissórias. Emílio ficou transtornado.

Eurico tentou se desfazer do imbróglio em que havia se metido, contudo seu credor se manteve irredutível. Se a dívida fosse cobrada, seus bens pessoais não seriam suficientes para saldá-la. Desconfiou que a adulteração fora feita por uma pessoa com acesso à casa, para pressioná-lo a continuar com o negócio. Interpelou a secretária do irmão que não negou o fato. Estava sobre as ordens do partido. Na tarde de treze de maio, o jovem alemão, de codinome Eduardo, visitou a casa confrontando Emílio em favor de Eurico.

Emílio mostrou-se irredutível. Um telefonema foi dado a Eurico, quando ele se encontrava na casa da namorada, pedindo que fosse ter com eles. Os ânimos se inflamaram na presença dos três, fazendo a mãe tomar partido dos filhos. Diante da ameaça de Eduardo à sua família, Eurico sacou a arma. A mãe, nervosa, correu até ele implorando para que a abaixasse; que tudo se resolveria. Emílio deixou a cadeira atrás da escrivaninha e, antes que se aproximasse do irmão, Eduardo sacou sua arma e mandou que se calassem.

Dona Augusta, assustada, disse que chamaria a polícia e ao se virar em direção à saída, foi alvejada nas costas. Eduardo correu até o estático Eurico, que olhava para o sangue respingado da mãe na camisa, tomando-lhe a arma e atirando no peito de Emílio, que tentava vir para cima dele. Em seguida, disparou dois tiros no peito de Eurico que assistia, paralisado, a chacina à sua frente. Seus olhos estavam embaçados quando olhou pela última vez nos olhos de seu algoz.

— Meu Deus! — exclamei horrorizada, interrompendo o velho que me olhou com o canto do olho, voltando à narrativa.

— Os empregados que viviam no anexo, alemães de nascimento, correram até o local. Entretanto, ao verem Eduardo, afastaram-se em silêncio. Calmamente ele arrastou dona Augusta até o pé da escada, deixando-a de barriga para cima. Pegou a arma de Eurico e atirou três vezes em seu peito. Pôs a arma de Eurico na mão de Emílio e atirou a esmo, deixando resíduo de pólvora nela e, depois, levando os projéteis consigo. Ajeitou os corpos dos irmãos quase um ao lado do outro, deixando a arma ao lado da mão de Eurico.

À secretária de Emílio, que a tudo assistira, coube limpar o sangue da matriarca. Em um gesto piedoso, a moça colocou a mão de Emílio sobre o peito, deixando seus olhos abertos, antes de deixar a cidade e retornar à Alemanha. Os corpos foram encontrados na manhã seguinte. Muitos curiosos encontravam-se em frente a casa, entre eles, agentes infiltrados. Foi muito simples bater no carro da polícia, acabando com as provas fotográficas e mais tarde com os laudos. Diante da cena inexplicável, o veredicto de assassinato, seguido de suicídio, foi apenas uma justificativa para a sociedade.

— Como o senhor sabe de tudo isso? Eu procurei em todos os lugares e não encontrei nenhuma explicação para o mistério que envolve essa família?

— Eu estava lá! — informou, deixando-me pasma, levantando-se em seguida à caminho do canto da casa, na direção ao bosque.

Esperei alguns instantes, aguardando seu retorno em vão. Na manhã seguinte, querendo mais explicações do velho, perguntei seu endereço para Carlos.

— Não temos nenhum vigia noturno, Charlie. Apenas o guarda que fica na guarita!


Baseado no Crime do Castelinho da Rua Apa.


6 Avril 2023 20:51 3 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
5
La fin

A propos de l’auteur

Amanda Kraft Participo com mais de cem contos em diversas antologias de várias editoras. Livros lançados: Somente eu sei a verdade; Traição; Uma Segunda Chance; A Noiva da Neblina e o Segredo de Lara pela buenovela.com e também contos e livros inéditos na Amazon kindle.

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Norberto Silva Norberto Silva
Uau! Simplesmente fantástica mais essa história de assombração. ficou fantastica a reconstrução do crime, extremamente bem contada e detalhada, fazendo com que a imersão fosse gigante. Adorei mesmo! Parabéns!
April 07, 2023, 01:42

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