Venho de uma família humilde. Meus pais cresceram, viveram e trabalharam nos sítios de seus pais. Encontraram-se na juventude e, após se casarem, constituíram morada na cidade, onde eu e meus irmãos nascemos. Por terem vivido em meio à natureza, nossa infância foi permeada por histórias que, principalmente a mãe, gostava de nos contar nas noites de verão, onde estendíamos um cobertor velho na parte calçada do fundo do quintal e nos deitávamos a contemplar o céu estrelado.
Acho que o gosto pelo sobrenatural veio de seus causos. Lembro-me da luzinha vermelha que acompanhava meu avô materno quando ele caminhava pelas estradas de chão batido, entre um sítio e outro. Ele nunca teve medo de nada, segundo a mãe gostava de afirmar. Eram tantas as histórias que permeavam por nosso imaginário.
Ela mesma deu de cara com o velho Silva, que havia morrido há uma semana, quando fora levar comida para o seu pai lá na roça. Contou-lhe, assim que lhe deu a marmita já meio fria pela distância. Ele a ouviu e, sabiamente, disse que não era nada. Esquecer-se do fato era a melhor coisa a fazer. Contudo, ao chegar à casinha amarela onde morava, foi logo narrado a aventura para sua mãe que quase foi ao chão de susto. A vó passou a gritar e a disparar para todo o mundo que encontrava pela frente que a filha havia visto um fantasma, traumatizando-a.
Eu, particularmente, adorava quando a mãe contava que o pai dela dera de cara com um lobisomem. O tal do bicho era um vizinho estranho que morava em um casebre no meio do mato, entre um sítio e outro. O povo o maldizia, fazendo chacota. Um dia o avô, vindo de suas andanças a cavalo, encontrou-se com um cachorro estranho que pareou ao seu lado. Caminharam por um tempo, quando ele, pela visão periférica, percebeu que o cachorro ia ganhando corpo; aumentava de tamanho até ficar da altura do cavalo. A fera rosnou para ele que, com a mão na cintura, onde sua arma descansava, disse em alto e bom som para o bicho tomar o rumo e ir em paz.
Obviamente que hoje, relembrando esse causo, dou boas risadas. Mas à época, meus olhos infantis ficavam vidrados, crendo que o avô e a mãe não mentiam. Houve também a história do tio Nelson, irmão do meu avô, que era um jovem valente e destemido. Nada o assustava, apesar de saber que coisas estranhas aconteciam nas estradas e nas porteiras que adentravam as propriedades vizinhas. Gostava de sair de tardinha e ir aos bailes que ali se davam pelas redondezas, voltando em plena madrugada sobre um cavalo baio, cantando a plenos pulmões, até chegar à casa de sua mãe, minha bisavó Brasília.
A mãe conta que quando ele soube que ela vira o fantasma do velho Silva, riu tanto que foi ao chão, sentindo cãibras no estômago. Passou a chamá-la de velho Silva, o que a deixava enfastiada. Até que um dia, de namorador que era, voltou de um desses bailes, branco feito cera, tremendo dos pés à cabeça, sem sua costumeira cantoria. A “bisa” o interpelou e, depois de muito custo, ele contou que pareou com um homem estranho, cujo rosto escondia-se debaixo de um chapéu gasto. Deu boa noite para o estranho, que se manteve calado por uns cinco minutos. De repente, bem diante de seus olhos, o homem misterioso desapareceu, fazendo o tio Nelson correr em desabalada até o aconchego do seu lar. A partir desse dia nunca mais chamou a mãe de velho Silva, para sua desforra.
Eram tantas as histórias que mexiam constantemente e consideravelmente o com nosso imaginário! Havia uma porteira que diziam ser mal-assombrada. Ninguém conseguia passar por ela sem que visse um fogareiro que subia ao céu e sem apanhar do tal fantasma. Meus olhos esbugalhavam quando a mãe contava que o tio dela, o tio Hélio, outro irmão de seu pai, veio a se deparar com a coisa.
Ele tinha atado um namoro firme com a Angelina. Sabia da história e jamais passava pela cerca quando voltava da casa dela durante a madrugada. Porém, naquele domingo, a chuva estava forte e ele já se encontrava encharcado sob o cavalo. Para cortar caminho, desviando da assombração, levaria pelo menos meia hora para chegar ao sítio da “bisa”. Resolveu então, dessa feita, enfrentar a malfadada porteira. Avistou-a branca sob os raios que serpenteavam o céu. Manteve-se firme em seu propósito. Desceu do cavalo e, ao colocar a mão no trinco para abri-la, o fogo desceu sobre ele jogando-o longe. O pobre caiu sentado e atordoado na terra molhada. Sentiu a mão sobrenatural desferir um tapa bem dado em sua cabeça. Levantou-se, assustado, tentando pegar as rédeas do cavalo, que relinchava e andava de ré, pronto para fugir dali. Nem preciso dizer que nunca mais ele se atreveu a cortar caminho.
Devo ressaltar que a família do avô materno era meio estranha. Aquela italianada parecia atrair essas coisas que ninguém explica. A “bisa” Brasília contava que sua mãe, minha tataravó, mandou chamar as filhas e filhos já casados para um almoço de domingo, onde preparou todas as guloseimas que eles mais gostavam. Em meio ao festejo, a matriarca disse que havia requisitado suas presenças para se despedir. Ninguém entendeu nada. A velha estava bem de saúde, firme e forte. Como se despedir, se não iria viajar? Pensavam as filhas com seus botões. Ela pediu silêncio na indagação dos rebentos e informou que às quatorze horas iria partir para o outro plano. As filhas e filhos riram da bobagem da mãe. Almoçaram, arrumaram a cozinha enquanto a mama foi descansar. Pasmem. As quatorze horas, só para atestar, uma das filhas foi chamá-la, encontrando-a morta.
Eu ficava fascinada com essa história real da família. Contudo, depois de crescida, para mim era apenas um causo que merecia desconfiança. Até que presenciei a fala do meu avô em seu último Natal conosco. Minhas irmãs casadas e eu, a esperar por meu primeiro filho, primeiro neto de meus pais, sempre passávamos o Natal na casa deles, onde o avô materno vivia. Esse mesmo do causo do lobisomem. A mãe o levou para morar conosco quando ele ficou viúvo. Entre comidas e bebidas, celebrando a Noite de Luz e o início de minha gravidez, o avô disse em alto e bom som, deixando-nos boquiabertos:
— Esse é o último Natal que passo com vocês.
Todos nós tiramos sarro, já que ele estava forte e muito bem de saúde para os seus oitenta e três anos. O ano de 1995 entrou trazendo-nos esperança, porém em março, ele teve um derrame vindo a óbito. A partir daí, passei a dar mais atenção às coisas, principalmente àquelas sensações que muitas vezes damos de ombros e deixamos para lá. Aprendi a silenciar e escutar meu coração, depois que outro evento se deu, do qual presenciei estarrecida.
Era o ano de 2011. Estávamos, meu marido e eu, construindo uma nova casa, quase ao lado da que morávamos. Essa seria um pouco maior, capaz de comportar a nós e nossos três filhos. À época tínhamos um cachorro de porte médio que havíamos ganhado de um vizinho de minha mãe. O danado era uma mistura da raça poodle com vira-lata. Seu corpo era cheio de cachinhos negros, focinho comprido, porém seu espirito era de um vira-lata rueiro. Nada o fazia parar dentro de casa. Cada vez que meu marido chegava com o carro, eu tinha que prendê-lo na cozinha. Se surgisse uma oportunidade, lá ia ele pela rua em disparada, feliz, livre e solto. Era um tal de correr, cercar e tentar trazê-lo de volta sem sucesso. O danado parecia se divertir com a nossa falta de sorte. Os vizinhos, já acostumados, riam e nos ajudavam na empreitada.
A solução para tanta fuga foi deixá-lo tomando conta da construção. O Toby, nome escolhido por mim, contrariando as crianças, adorava ficar lá. Corria pelos quartos vazios, deitava no pé dos pedreiros, latia, saltava atrás dos passarinhos, contudo a maior parte do tempo ficava comigo, que então, trabalhava no escritório do meu marido que também ocupava o mesmo terreno da casa nova.
Na fase de acabamento, contratamos o Mirão, um assentador de piso, indicado por um amigo de meu marido. Todo o material que seria usado por ele foi colocado na garagem, de onde podia pegá-los sem que estragasse, enquanto preparava o contra piso. Fazia algumas semanas que ele trabalhava na casa quando o Toby passou a ir à garagem e latir feito um louco, coisa que não era de seu costume.
Lembro que esse dia era uma quarta-feira. Eu estava no escritório e seus latidos passaram a me incomodar. Mal dava para falar ao telefone. Toby parecia não respirar, apenas latir numa frequência aguda e desesperadora. Enfezei e deixei a mesa de trabalho, irritada. Atravessei o gramado, subi a escada que levava à construção e fui ver o que estava acontecendo. Ele olhava para o muro que fazia divisa com o sobrado do vizinho e latia de forma ensandecida. Assegurei-me de que não havia nada ali que pudesse afetá-lo daquela maneira. Olhei as caixas de piso depositadas na garagem à procura de algum bicho que resolvera se esconder ali, contudo não era para elas que ele latia. Era para o muro. Um muro de reboco liso. Olhava acima dele e latia incansavelmente.
Enquanto vasculhava o lugar o Mirão se postou atrás de mim e disse, meio sem jeito:
— Eu não entendo porque ele late tanto. Eu também já procurei por algum bicho, mas não tem nada aí.
— O senhor tem certeza? Eu nunca vi esse cachorro latir assim! O senhor precisa ficar bravo com ele, mandá-lo para dentro. Confesso que não estou conseguindo trabalhar.
O Mirão riu, como a me dizer, o que eu posso fazer? Voltei para o escritório e o Toby não parava de jeito nenhum. Aquele já era o terceiro dia daquela agonia. Na hora do almoço fui para casa. Pouco tempo depois meu marido chegou trazendo as crianças da escola. Enquanto eu ajeitava a mesa, ele foi até a construção, voltando meia hora depois.
— O Mirão disse que amanhã não virá trabalhar. Irá fazer um exame lá no AME de Américo. Talvez volte depois do almoço.
Perguntei se estava tudo bem com ele e disse que era uma pulsão na próstata. Contei para ele o abuso do Toby enquanto almoçávamos. No dia seguinte, fomos para o escritório e o danado estava um santo. Não deu um latido sequer. Naquela quinta-feira o Mirão não voltou. Nem na sexta. Achamos estranho porque ele era muito responsável. Não era de faltar. O fim de semana passou e na segunda, nada de ele aparecer. Meu marido ligou para o amigo que o havia indicado, perguntando por ele, sem resposta. Suas ferramentas estavam todas ali na construção. Sabíamos que ele morava perto desse amigo, mas não tínhamos contato, pois seu telefone encontrava-se desligado.
À noite, para nossa surpresa, a esposa dele veio até nossa casa. No dia em que o Mirão fora fazer o exame, voltou para a casa para almoçar, com o intuito de vir trabalhar na obra. Porém começou a passar mal, sendo obrigado a retornar ao hospital. Durante o exame algo aconteceu e ele teve uma septicemia, vindo a falecer naquela madrugada.
Sua esposa nos disse que, mesmo ruim, ele só pedia para ela avisar meu marido. Foi de uma tristeza imensa, mesmo agora, enquanto escrevo esse relato, ainda sinto um grande pesar. Não sei o que aconteceu naquela garagem, nos dias que antecederam a sua morte, mas só posso pensar que o Toby estava vendo algo que nossos olhos humanos não conseguiam. Creio que havia alguém ali o esperando. Não sei se algum anjo, parente ou mesmo a figura da dona morte. Sei apenas que o Toby soube antes de nós. Isso me fez crer que há algo por trás desse véu. Algo que veda nossos olhos e nos deixa viver da maneira como desejamos e acreditamos. Ficou claro para mim, nesse evento, que o sobrenatural existe, de alguma forma.
No ano seguinte, passei por outra experiência desse tipo. Eu adorava minha sogra. Sempre nos déramos muito bem a ponto de ela me apresentar como sua filha às pessoas. Em outubro de 2012, depois de uma DPOC pulmonar que a afligiu por longos anos, ela veio a óbito. Nessa época meu marido havia trazido duas cachorrinhas boxers da fazenda de um cliente. Estavam com uns três ou quatro meses. Já era fim de tarde e eu me encontrava em uma tristeza sem fim, pois havia acabado de voltar do velório. Fui ao quintal e as duas me seguiram. Uma delas voltou para dentro da casa, porém a Meg me acompanhou. Então ela olhou por sobre meu ombro e passou a latir feito uma doida, da mesma forma que o Toby fizera no ano anterior. Nesse momento eu estava com a mão na torneira do quintal, pois iria jogar água no jardim. Senti um arrepio no corpo. Olhei para a ela e vi sua cabecinha erguida, enquanto latia e recuava para o nada. Naquele momento uma paz me invadiu e eu sorri. Tive a certeza de que minha sogra fora ao meu encontro para se despedir. Não a vi, mas a Meg sim.
Esses eventos sobrenaturais foram reais e, de alguma forma, fez com que eu passasse a dar importância às coisas, principalmente à reação dos animais. Hoje o Toby e as meninas boxers já se foram, mas ainda tenho a Senshi e a Akira comigo.
Meus pais estão com idade avançada, requerendo cuidado e, alguns dias da semana, eu revezo com minhas irmãs no trato com eles. Toda a vez que chego de sua casa, a Akira passa a cheirar minha roupa de uma forma estranha. Não sei o que ela sabe, mas desconfio. Os animais têm muito a nos ensinar.
Por isso, cada instante passado com quem amamos é para ser apreciado. Nunca sabemos quando será o último sorriso, a última alegria, a última dança, o último beijo e abraço. Fechem os olhos por um momento e sintam as coisas ao redor. Às vezes se faz necessário deixar de lado coisas que podem ser consideradas sem importância quando a raiva por um motivo bobo passa. O importante é viver e estar junto de quem se ama.
Merci pour la lecture!
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