Faz quase dois anos desde nosso triunfo sobre o denominado Assassino da Meia-Noite. No início houve uma exaltação à figura de Sherlock Holmes, como em todo caso grande que meu amigo costuma resolver, e até à minha figura, seu “fiel escudeiro”. Os negócios voltaram a aquecer, resolvemos mais casos complicados, o inspetor Lestrade se mostrou tão grato quanto prestativo - mesmo que Sherlock se recuse a admitir isso - e até minha clínica ganhou maior movimentação.
Com o tempo, os holofotes se apagaram, os casos diferenciados se tornaram escassos e voltamos ao estágio em que nos encontrávamos antes do famoso caso: desafios monótonos e dispensáveis.
Entretanto, ao invés da reclusão depressiva de outrora em que nossa parede era a maior prejudicada, Holmes encontrou passatempos para distrair sua mente sedenta por desafios. O primeiro, e ouso dizer que já era um passatempo favorito, foi aprimorar suas habilidades no violino. O que era perfeito se tornou mais-que-perfeito ao som de Bach, Beethoven e Mozart em sequência ininterrupta.
Também distraímos a mente com jogos de tabuleiro. O mais óbvio foi O Jogo do Detetive, mas diria que foi uma perda de tempo.
-Não, isso não está certo! - vociferei certa noite.
-É claro que está certo, John! É a solução mais plausível e não entendo como minha teoria é inválida.
-Holmes! Um morto não pode ser culpado de seu próprio assassinato!
Por fim, jogamos xadrez (eu perdi e Sherlock nem precisou prestar atenção no tabuleiro), Vinte e Um e alguns outros jogos que não merecem menção.
Eu fazia o chá para a tarde e Holmes praticava violino quando a governanta, a senhora Hudson, chegou com um cliente, que era um sujeito gordinho com um ticket de ônibus visível no bolso direito do casaco, chapéu marrom sobre a cabeça e botas sujas de lama. Cordialmente, nos pediu desculpas por sujar nosso carpete.
-Boa tarde - falei.
-Boa tarde. Boa tarde, senhor.
Dirigiu-se primeiramente para mim e depois para Sherlock, que nem lhe deu atenção. Trocamos um aperto de mãos rápido.
-O ônibus estava lotado? - perguntei.
Deduzir nunca foi meu forte, mas de vez em quando eu me arriscava. Na maioria das vezes, estava errado.
-Ônibus? - ele disse, confuso.
-Sim. Tem um ticket de ônibus no seu bolso e suas botas estão sujas de lama. Imaginei que o transporte estivesse lotado, então desceu antes da parada e seguiu a pé.
-Ah. Eu vim de táxi. - Ele mostrou o bilhete de ônibus e se explicou: - Meu sobrinho é um colecionador de tickets de ônibus, achei este na rua e guardei para entregar a ele.
-Ah.
Nós rimos para tentar fingir que não houve um constrangimento com minha dedução errônea. Quase senti os olhos de Holmes pousando sobre mim com ar de reprovação.
-Você é o famoso Sherlock Holmes? - perguntou para mim. - O senhor parece diferente do que vi nos jornais.
-Não. É ele.
-Ah, sim. - O cliente pareceu chateado por ser ignorado.
-Ele está nos escutando. Sua mente trabalha dessa forma. - Tentei justificar. - Enfim, o que deseja, senhor…?
-Hargreaves. Stephen Hargreaves. Bom, eu preciso da ajuda do senhor Sherlock Holmes. Eu, ahn… Estou participando de uma aposta com minha namorada. Ela me desafiou a desvendar um álibi impossível de ser decifrado.
Naquele momento, Sherlock parou de tocar o violino. Olhamos ele com surpresa, mas logo o detetive voltou a tocá-lo. Era um sinal de que ele estava interessado no caso, por isso sorri com sutileza.
-Por favor, conte-nos sobre a aposta.
-Sim. Eu e minha namorada, Suzanne Barnes, adoramos ler esses livros de mistério e suspense, e nós sempre nos concentramos no álibi dos personagens. Eis que numa bela noite, após discutirmos sobre a leitura de “A Casa do Penhasco”, ela me lançou esse desafio. Disse que poderia criar um álibi tão perfeito e tão indecifrável que nem Hercule Poirot em pessoa poderia resolver. Lógico, não sou Hercule Poirot e nem Sherlock Holmes, sou apenas um contador. Mas aceitei o desafio.
“Então, algumas noites depois, ela me trouxe seu álibi para um dia específico. Já pensei em tudo e não consegui decifrar, por isso vim solicitar o suporte do maior detetive de Londres. E se eu acertar até amanhã, que é o prazo final, ela disse que vai aceitar se casar comigo.
“Além disso, imagino que seja trapaça pedir o auxílio de vocês, mas é que eu realmente amo aquela mulher e quero mostrar que posso solucionar isso. Conto com a discrição de vocês e posso pagar pelas despesas, isto é, se aceitarem o caso.
-Claro que aceitamos - manifestou-se Holmes, finalmente. Ele continuou de pé, mas com o violino colocado sobre a mesa. - E pode contar com nossa discrição quanto a isso, senhor Hargreaves. Agora, pode nos contar em detalhes o álibi da senhorita Suzanne?
-Sim. - O cliente tirou um papel do bolso. - Foi um dia especial, era aniversário da mãe dela. Não pude comparecer por conta do trabalho, mas mandei uma mensagem de parabéns a ela.
“Já Suzanne anotou tudo o que fez naquele dia. Às 8h saiu de casa; de 8h30 às 14h, esteve no trabalho como enfermeira, com uma pausa para o almoço entre 12h e 12h30. Aí é que fica complicado, senhor Holmes, porque ela esteve às 13h30 num trem para fora de Londres ao mesmo tempo em que supostamente foi ao shopping comprar um presente para a mãe. Às 14h30 em teoria ela voltou para casa, mas em simultâneo ela estava desembarcando do trem. Segundo as anotações, estava em Canterbury.
“A partir de 14h30 só tem anotação de Canterbury. Ela foi recepcionada pelo tio, ela visitou as primas, passeou pela catedral, os jardins e às 18h estava de volta à estação viajando para Londres. Tudo isso enquanto, supostamente, esteve em casa. E eu sei que ela esteve em casa, pois tive uma folga e a visitei. Foi lá pelas 16h30”.
“Por fim, às 19h retornou a Londres e jantou com a mãe e os outros membros da família. Ficou até umas 21h30, e voltou para casa às 22h”.
-Interessantíssimo - comentou Holmes. Conhecendo-o bem, ele já estava criando suas teorias. - Pode retornar tranquilamente amanhã, senhor Hargreaves. Terei sua resposta e você poderá pedir a mão de sua namorada em casamento.
Sherlock o conduziu para fora da sala. Voltou menos de 2 minutos depois com um ar renovado, deixou na mesinha de centro uma fotografia e o papel com as informações do álibi e retomou sua prática no violino.
-Não vai falar nada sobre o caso?
Ele parou e me encarou com certa diversão.
-Meu caro Watson, sei que está ansioso para escrever mais uma de nossas aventuras, já que você é meu biógrafo pessoal e acompanhante. - Ele fez uma pausa e deixou o violino de pé encostado na parede. - Existem duas possibilidades. Eu refuto uma, porque é uma saída fácil e até a mente simplória de nosso digníssimo contador deduziria por conta própria. E creio que é a mesma coisa que você está pensando agora.
-E qual é? - perguntei sem esconder a chateação na voz.
-Sinta-se à vontade para me dizer, John. Sabe, estou orgulhoso de sua tentativa de dedução. Foi um fracasso, mas já é um passo a mais para por em prática os ensinamentos de nossa convivência.
Eu respirei fundo. Eu sei que Sherlock tentava me confortar antes de estraçalhar meu ego refutando a teoria que eu tinha em mente. Agradeci com um aceno e, finalmente, falei em voz alta:
-Acho que ela tem uma irmã gêmea.
Sherlock Holmes é um homem que pouco ri, por isso quando solta uma gargalhada, como a que soltou naquela hora, tenho a mais absoluta certeza de que é uma gargalhada autêntica e sincera.
-Qual sua opinião sobre isso, Holmes? - perguntei, sério.
-Meu bom doutor, se ela tivesse uma gêmea, Hargreaves já teria solucionado este mistério e não precisaria de nosso auxílio. Imagine só: quer se casar com a moça e sequer sabe que a cunhada é uma gêmea! Não, definitivamente está fora de questão.
-Uma sósia contratada, então? Atriz, modelo ou coisa assim?
-É uma possibilidade mais plausível, mas eu tenho uma ideia que você e os leitores de nossas aventuras vão se surpreender.
-E qual é?
-Contarei mais tarde. - Holmes puxou seu relógio de bolso. Pegou seu chapéu quadriculado, o casaco Tweed e se pôs diante da porta.
-Espera, você sabia que ele tinha vindo de táxi?
Ele assentiu com a cabeça enquanto pegava seu cachimbo.
-Como?
-O ticket datava de três dias atrás. Além disso, poucas pessoas guardam um bilhete de ônibus, a menos que seja para coleção ou por ter se esquecido de jogar fora. - Naquele momento Holmes se virou para mim com dúvida. - A propósito, aquele rosto lhe pareceu familiar de alguma forma?
Tentei forçar a memória. Hoje, enquanto relato esta aventura, admito que com mais um pouco de esforço eu teria adivinhado quem era o verdadeiro Stephen Hargreaves. Mas não consegui.
-Não. Sinceramente não.
Ele fez uma cara de decepção.
-Certo, então. Vou a Canterbury. Você vem?
Tive que negar. Eu adoraria ter ido a uma cidade histórica como Canterbury, mas eu tinha que trabalhar na clínica naquela tarde. Posso dizer que meu trabalho foi bem produtivo.
Não tive contato com Sherlock pelo resto do dia. Tentei visitá-lo pela noite, mas a senhora Hudson falou que ele não estava no apartamento. Fiquei surpreso, já que Canterbury fica a uma hora de distância de Londres, caso use o trem.
Pela manhã apareci mais uma vez. A governanta não me informou sobre a presença de Sherlock, mas bastou subir a escada para ouvir o suave som do violino e confirmar a presença de meu amigo.
-Bom dia - me manifestei. Holmes apenas acenou com a cabeça.
Ele demorou um bom tempo com o instrumento musical. Quando terminou, eu aplaudi.
-Como foi em Canterbury?
-Foi informativo. - Não havia muita empolgação em sua voz. - Confirmei minha teoria e logo Stephen Hargreaves vai chegar. Espero que não se importe de ouvir o que tenho a dizer apenas na presença de nosso cliente.
Gesticulei que não me importava e me sentei na minha poltrona. O senhor Hargreaves não demorou a aparecer. Novamente apertamos as mãos cordialmente, não havia nenhum ticket no bolso e as botas não estavam enlameadas como no dia anterior. Sua barba, entretanto, estava maior e deixava seu rosto mais redondo.
Não sabia naquela hora, mas tive um pressentimento ruim quando o encarei nos olhos.
-Então… A que conclusão chegou, senhor Holmes?
-Estava esperando que me perguntasse por isso.
Holmes pousou o violino na parede e andou pelo apartamento com as mãos nas costas. Esperou um pouco até introduzir sua narração:
-Canterbury é um lugar interiorano, muito conhecido por sua catedral de estrutura gótica que já passou de mil anos de existência, considerada um dos inícios do Cristianismo na Inglaterra. Essa introdução é para seus leitores se situarem, John. Sei que gosta de romancear nossas aventuras.
“Pois bem, eu visitei Canterbury. Na verdade, primeiro, eu conversei com alguns funcionários do trem que vai de Londres para lá. A maioria deles reconheceu a senhorita Suzanne Barnes pela foto e confirmaram que ela esteve naquele trem na última quarta-feira. E perguntei diversas vezes, alguns afirmaram que ela parecia querer que todos soubessem que ela estava ali na quarta-feira passada.
“Já em Canterbury, eu visitei a família da senhorita Barnes. Um tio e duas primas, sendo específico. Lógico, o homem se empolgou com minha presença.
“Você é Sherlock Holmes?, ele perguntou. O próprio, você é o senhor Barnes?, perguntei de volta. O próprio, ele respondeu com certa diversão na voz, como se fosse satisfatório repetir duas palavras ditas por mim. Se encantou com a forma como o encontrei, aí tive que explicar que cheguei ao endereço apenas porque pesquisei na lista telefônica da cidade. Canterbury ainda mantém algumas tradições e foi bom guardar essa informação na memória.
“Ele me confirmou a visita de Suzanne Barnes na última quarta-feira, garantiu que ela era mesmo e não uma sósia contratada, muito menos uma irmã gêmea”, houve certo desdém quando ele citou a possibilidade de uma irmã gêmea. “As primas de Suzanne também confirmaram. Aliás, Suzanne tirou muitas fotos durante a visita e todos os mínimos detalhes batiam com a fotografia que você nos emprestou”.
-Então o álibi é mesmo inquebrável? - perguntou Hargreaves, preocupado. Entretanto, por um instante, contraditoriamente, eu vi seus olhos se iluminarem.
-Não terminei, meu caro. Quando voltei a Londres, visitei a mãe de Suzanne Barnes.
-A mãe? Mas por quê? Você me garantiu que seria discreto.
-Deixe-me terminar. Eu visitei a mãe de Suzanne, mas fui atendido por uma funcionária. Ela confirmou o jantar de aniversário na noite de quarta-feira e confirmou que ia deixar Suzanne na casa às 22 horas. Sim, o álibi dela é bem sólido, mas sabe o que não é sólido? Você. Não literalmente, é claro. Falo figurativamente.
Olhei surpreso para Sherlock, então encarei Stephen Hargreaves, que estava com os olhos arregalados. Holmes se sentou em sua poltrona, pôs a perna direita por cima da esquerda e acendeu seu cachimbo. Demorou um instante até juntar os dedos de um jeito pensativo.
-Poderia explicar melhor, senhor Holmes?
-Claro que posso. - Tirou o cachimbo da boca e inclinou-se para frente. - Sabe, quando te vi ontem, seu rosto me pareceu familiar. É uma maldição ter uma memória tão incrível, que até falha de vez em quando. Mas não falhou totalmente. Pode ter aparecido sem a barba, mas consegui te reconhecer no noticiário, senhor Hargreaves. Ou devo chamá-lo de senhor Peter Fogler?
-Quem? - perguntou nosso cliente, fazendo uma cara de desentendido e rindo de nervoso quase instantaneamente.
-Perguntei ao inspetor Greg Lestrade, da New Scotland Yard, por estes nomes ontem à noite depois de visitar a mãe da senhorita Barnes: Suzanne Barnes, Stephen Hargreaves e Peter Fogler. Paradeiro desconhecido, falecido, procurado para interrogatório. Adivinha qual é qual?
“Suzanne Barnes foi vista pela última vez no jantar de aniversário da mãe na última quarta-feira, deixada em casa às 22 horas. O álibi dela é perfeito porque, de fato, aconteceu tudo do jeito que está anotado. Tudo, exceto um ponto: Você.
“O namorado, Stephen Hargreaves, faleceu três meses atrás, vítima de infarto. Um fato lamentável. O melhor amigo, Peter Fogler, prometeu tomar conta de tudo. Da namorada, da casa, do trabalho de contador. Mas ela nunca te aceitou como namorado nem como amigo. Você anotou tudo sobre a senhorita Barnes naquela quarta-feira, sabe que o álibi é perfeito porque você a seguiu. Mas, de alguma forma, às 22 horas, perdeu ela de vista. Ela esteve desaparecida desde então.
“Sabe, senhor Fogler, sua obsessão seria preservada se apenas me contasse uma história simples. Essa questão da aposta com a namorada valendo o casamento… É tão começo do século XX que chega a ser risível”.
Olhei para o rosto de Peter Fogler. Sua cara rechonchuda suava, ele limpava as mãos na calça. Já Holmes fumava o cachimbo com glória e satisfação. Senti na hora que ele escondia uma carta na manga.
-O senhor está errado, senhor Holmes. Eu e ela somos felizes, eu e ela amamos literatura policial e fizemos uma aposta. Existe alguma falha no álibi, eu sei disso!
-A falha é você, Peter Fogler. Sua parte, aquela em que você a viu em casa, é a falha, pois isso não aconteceu. Vocês sequer moram no mesmo bairro. Sabe como eu sei disso?
-Como?
-Encontrei Suzanne ontem à noite. - Aí está a carta na manga. O rosto de Peter pareceu um tomate de tão enrubescido. - Ela confirma que está sendo perseguida pelo melhor amigo do falecido namorado. Passou as últimas três noites na casa da mãe enquanto, aí sim, John, uma sósia foi para casa. A sósia que você abordou na porta quando descobriu que ela havia sumido, não é, Peter? Suzanne está dando um depoimento à New Scotland Yard agora.
-Chega!
Peter se levantou e, com o punho direito em riste, arriscou um soco na direção de Holmes. Desviando como o pugilista de Oxford que era, Holmes contra-atacou com um soco no peito e depois o imobilizou ao segurá-lo por trás, pelo pescoço. Peter Fogler perdeu a consciência aos poucos. Enquanto isso, eu até me levantei, mas nada podia fazer.
-E assim, meu caro Watson, encerramos mais um mistério.
Holmes amarrou o agressor e o deixou sob minha vigilância. Voltou para seu violino e não parou de tocá-lo nem quando o inspetor Lestrade apareceu com a polícia.
Merci pour la lecture!
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