emvicente E. M. Vicente

Era apenas mais um sábado em família para Bernardinho, que não esperava um dia ver-se perdido na escolha entre seu mundo ou escutar os sussurros de silhuetas na escuridão.


Histoire courte Interdit aux moins de 18 ans.

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Silhuetas que chamam

Naquela noite, por volta das dez e meia, Bernardinho se levantou e deixou o leito no quarto em que ainda dividia com a irmã um pouco mais velha. Era normal muitas vezes precisar sair para urinar. Tinha só doze anos, e o escuro quase não mais o atormentava, apesar de que ainda imaginasse silhuetas pelos cantos. Mas na companhia de Larissa, o medo ficava mais atenuado, quase inexistindo. A menina de treze anos dormia enquanto o garoto saía para a sala na ponta dos pés. Acendeu a luz desta para cruzar o cômodo e chegar ao banheiro depressa. Enquanto seguia, ouvia vozes no outro cômodo, e aquilo não seria a primeira vez, aquela discussão abafada pela porta.


Depois de fazer o que precisava, voltou e parou um instante ante a porta do quarto dos pais. O peito apertado. Segundos lhe bastaram escutando tudo. Apagou a luz da sala e partiu com seus olhos marejados de volta ao quarto. Cutucou Larissa no ombro, que despertou, mantendo-se de lado.

— O pai e a mãe tão brigano — ele sussurrou.

— De novo — ela disse sonolenta e como quem não se importasse —, cê quis dizer.

Perante a porta do quarto dos pais, como já haviam feito ao menos uma vez naquele Novembro, eles ouviam na escuridão da sala desta vez, com a iluminação da luz acesa do quarto deles como auxílio. Mas não era uma discussão muito alta, porém, as palavras fortes eram exaladas de ambos. Bernardo baixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos e chorou baixo. A menina lhe tocou no braço, também com os olhos molhados. Voltaram ao quarto e deitaram-se. Em silêncio, era como se falassem em telepatia e confortassem um ao outro. A noite passou. Era sábado, no dia seguinte, quando à mesa de jantar, as crianças e o pai comiam assentados enquanto Jandira fazia a refeição de pé em frente a pia, de face amarrada. Havia passado toda a manhã até ali assim.


Waldir mantinha uma expressão boa, ao menos na frente dos filhos, mas comia apressado, o que não era de seu feitio. Larissa mantinha-se de cabeça baixa o tempo todo e comia devagar, parecendo não ter energia para levar a colher à boca. Bernardo só queria terminar tudo logo para poder voltar à sala a tempo de ver do começo o episódio de Power Ranges que passaria na tevê ligada ao fundo. Depois, ele se encontraria com os primos e amigos para brincarem. Eram outros tempos, mesmo que em seu âmago pulsasse uma angústia pela situação. O pai pediu à mulher que se sentasse e comesse sentada. Jandira negou, dizendo que estava apressada para terminar os afazeres, e grunhiu para o marido também se apressar para fazer o que precisava, incluindo pôr veneno para os ratos no quintal.


Waldir perguntou aos filhos se eles gostariam de acompanhá-lo até um local não muito longe para apanhar um pouco de madeira e de bambu. Desde muito tempo, o homem costumava buscar pelos itens para poder utilizar no aprimoramento do viveiro de aves que possuía; basicamente um criadouro grande de galinhas, patos, perus, dentre outros bichos que gostava de criar, lugar do qual Bernardo e a irmã adoravam ir para brincar, ajudar a colher ovos e a tratar dos animais. Costumavam até mesmo a dar nomes às galinhas. Brincavam de Tarzan e se imaginavam na selva. Larissa concordou com um sorriso sem usar dentes, mas com olhos cintilantes, e Bernardo verbalizou com entusiasmo que sim.


Jandira disse que não. Não deixaria os filhos irem. Poderia ser perigoso ir para um matagal. Waldir se impôs, dizendo que cuidaria deles; a esposa o fulminou com o olhar e exclamou com um pouco de comida na boca que ele não teria de decidir aquilo, pois, ‘’em breve apenas seriam eles e ela’’. O menino viu o pai apertar o punho sobre a mesa e trincar os dentes. As palavras da mãe esfaquearam o garoto de algum jeito, a ambos os irmãos. Era curioso que Jandira não permitisse, pois, muitas vezes, até incentivava que andassem com o pai, embora negasse em certos casos, e naquele não parecia um que negaria, porque já permitira noutras vezes.

— Num vou falar disso agora contigo, ‘’mulé’’. Tenho mais o que fazer como tu falou, e meus filhos vão comigo se eles quiserem, sim. Por que tá com essa bobagem agora?

— Eles não podem ir!

— Já disse que cuido deles.

— Não!

— Mãe?! — as crianças disseram quase que ao mesmo tempo.

— Deixa — concluiu Bernardo com voz manhosa.

A morena pareceu reflexiva. O marido insistiu, e os filhos também. Jandira disse que se os filhos se machucassem, ela iria acabar com ele, e que tudo seria por culpa dele. Waldir aceitou e a discussão findou. Após a refeição, Bernardo aguardou o pai se aprontar enquanto assistia tevê ao lado da irmã. Nesse momento, a mãe aproximou-se, parando ao lado deles. Pediu desculpas pela discussão e falou que era algo que passaria e que eles precisavam entender. Não falou muito mais e se retirou.


Por volta de uma hora, eles saíram. O pai, os filhos e seu irmão. Moravam em um morro calmo da cidade pacata. Enquanto que os adultos vinham conversando mais atrás, Bernardo sentia o vento na face e passando veloz por seu cabelo preto, estapeando sua bochecha que se corava pelo sol a pino. Gargalhava enquanto que se segurava firme nas bordas laterais do carrinho de mão velho do pai. ‘’Mais rápido! Mais rápido!’’, ele pedia. Larissa também ria empurrando o carrinho com tudo morro acima, este levemente inclinado a princípio. O rabo de cavalo preto feito um pêndulo. O garoto fechou os olhos. A sensação era demais! Adorava fazer aquilo. Mais atrás, o pai berrou para terem cuidado com os buracos da rua de asfalto. Pareceram nem ligar.


Quando a subida ficou mais inclinada, eles pararam, Bernardo desceu, e Larissa moveu o carrinho vazio até o topo. Trocaram de lugar e o menino começou a empurrá-la pela descida adiante. Ela fechou os olhos, alçou os bracinhos e começou a gritar como se estivesse na montanha russa. Então a voz longínqua do pai reverberou de algum lugar atrás deles. ‘’Parem aí!’’ e eles pararam mais afrente. Aproximaram-se da lateral do morrinho, no meio fio, e começaram a berrar para uma zona de matagal no barranco e que quase bloqueava a visão para outro morro lá embaixo. Com as mãos como conchas nas laterais das bocas, gritavam revezando-se e produzindo ecos pelo prédio vazio a uns trinta metros e que ficava na rua inferior. Eles riam fazendo barulhos de animais ou gritando seus próprios nomes.


Quando os homens chegaram, eles prosseguiram. Desta vez, Waldir se encarregou de levar o carrinho. Seguindo o pai, entraram por uma descida de terra ao lado da rua; a entrada para uma propriedade. Pelo caminho, o menino ouvia a conversa do pai com seu irmão, Túlio. Era algo sobre o casamento, e Waldir parecia escolher bem as palavras, talvez por causa dos filhos perto. O irmão magrelo, sem camisa, com esta largada sobre o ombro, seguia com uma latinha de cerveja, dando goladas esporádicas e bradando conselhos: para o homem pensar nos filhos apenas... ‘’e que se foda a biscate’’. Não seria a primeira vez que lhe dava conselhos para acabar com tudo logo, mesmo quando as coisas nem estavam tão ruins.


Ainda estavam na descida quando Bernardinho cutucou o pai no braço e o questionou, apontando o dedo, sobre de quem era a casa do local – uma casa de laje e de tijolos com reboco mal-acabado. Waldir respondeu que era de uma família que não vivia mais ali desde alguns poucos anos. Não soube quando eles se foram; apenas se foram. Nenhum parente viera para reclamar a propriedade, não que soubera. Era um local abandonado agora e nem mesmo a prefeitura havia ainda tomado alguma providência. Mas quando havia gente ali, era comum que permitissem alguns conhecidos e amigos adentrarem para a coleta de lenha na zona de matagal mais ou menos longe da casa.


Eram pessoas legais, simples, apesar de bem reservadas. Houve relatos de amigos da família de esta mesmo ter dito estar sofrendo perseguições e de que os perseguidores a observavam à noite, às sombras, ou mesmo de dia, no quintal e dentro de casa, pelos cantos umbrosos. Pessoas com as roupas negras e também com máscaras negras, sem olhos ou bocas. Umas eram altas e esguias, outras, usavam até mesmo algum tipo de chapéu na cor preta. Sussurravam coisas e se moviam pouco. Então, iam embora se misturando às trevas. Começaram a aparecer em maior quantidade. Antes eram apenas duas, por um longo tempo; e já há alguns anos, quando seus filhos eram ainda bebês, costumava aparecer somente um, mas não tinha como saber se era sempre a mesma pessoa.


Talvez fosse a razão de eles terem partido. Os aparecimentos contumazes dessas pessoas se tornaram demais para eles. Era uma teoria. Chegaram mesmo a relatar à polícia, que fizera uma ronda na época pelo quintal e matagal, não achando qualquer pista de nada. A família Abelardo partira e o mistério permanecera. O real por que de tudo. Quem eram as pessoas de roupas negras, por que estavam ali e o que queriam seria para sempre uma interrogação. O fato era que agora iriam usar o terreno para colher o que precisavam. Waldir nunca tivera o costume de fazer isto ali, porém, o lugar que costumava pegar antes se tornara uma propriedade privada e não dariam permissão. Enquanto desciam pelo trecho de terra, Bernardo ouvia mais da conversa.

— Tu já devia ter acabado logo com isso, ‘’Di’’ — Túlio deu uma golada na cerveja. — Tem mais futuro não, ó... Só tô falano.

— Por que tu insiste tanto que eu acabe logo? — Waldir ajeitou o boné na cabeça calva. Era braçudo. — Eu, hein? Eu queria mesmo era acertar as coisas... pelas crianças.

— Esquece, colega — deu um toquinho no braço de Waldir com a mão da cerveja. Ambos levavam facões. — ‘’Caba’’ isso, rapá. Conselho de irmão.

Waldir riu.

— Quando eu quiser conselho de ‘’gelada’’, eu te peço. Só disso mesmo.

Túlio riu e bebeu. Desceram pelo morro, fizeram uma curva e desceram por outro morro estreito até o local. Passaram pela casa abandonada, até adentrarem o matagal a uns vinte metros à frente. Túlio conhecia melhor o local por já ter ido ali uma vez pegar tijolos abandonados que os donos doaram para que terminasse de construir um quartinho de ferramentas em sua casa, depositados depois da mata, perto de um riacho pequeno. O grupo adentrou o matagal um pouco denso e sombrio, devido aos galhos grossos dos jacarandás dali, mesmo com o sol da tarde. Bernardo e Larissa começaram a correr pelo local, brincando de Tarzan. Mantinham as mãos apoiadas com os nós dos dedos no chão e joelhos semi flexionados. Eram como dois símios correndo desengonçados mata adentro.


Waldir e o irmão começaram a cortar alguns bambus do bambuzal ali. O pai gritou para as crianças não se afastarem muito. Elas tentaram escalar uma árvore mais baixa; gargalhavam e trepavam no tronco com os galhos bifurcados mais acima. Saltavam de lá e depois subiam outra vez. Não tão distante, era possível de se ouvir o som de uma correnteza. Apanharam dois galhos do chão, vagamente no formato de armas, e passaram a correr um atrás do outro, brincando de polícia e ladrão, fazendo barulho de tiros com a boca. Rapidamente e aos gargalhos, aproximaram-se do riacho. Eles pararam estupefatos. ‘’Ual. Nossa’’, disse Larissa. ‘’Que Do caramba!’’, o garoto falou. Subiram na rocha grande, musgosa. Sentaram às margens. A água era cristalina, com certa profundidade e correnteza.


A corrente fluía por em meio às rochas dentro do riacho, este que seguia até ser ocultado por uma camada densa de vegetação. Da rocha em que estavam, até a água, era pouco mais de um metro. Larissa tacou o galho, que segurava, na água. Pegaram algumas pedras pequenas em um canto e as jogaram também. Sorriam, então, pararam. Larissa começou a bater a palma da mão na rocha, como que inventando uma batida qualquer.

— Será que o pai e a mãe... — Larissa falou, mantendo a batida, e deixou a frase morrer no ar.

— Não — Bernardo disse quebrando um pedaço de seu galho.

— Como sabe? — ela parou de bater.

Ele ficou quieto, inspirou e tacou o pedaço o mais longe possível na água.

— Sei lá — ficou cabisbaixo. — Tomara que não.

— É.

Tudo o que ele queria era que as coisas ficassem bem. Queria ter os pais juntos e felizes, e sabia que Larissa também ansiava isso. Do outro lado do riacho havia a entrada para a outra parte do matagal que circundava o lugar. Bernardo pensou ter ouvido algo e observou em direção da entrada. Larissa lhe questionou. Parecera um sussurro. Ouviu de novo, segundos depois, e se levantou. Larissa também ouviu e pôs-se de pé ao lado do irmão. Era a voz duma criança. ‘’Ei. Ei’’. Parecia chamar. ‘’Ei. Ei’’. Bernardo colocou a mão acima dos olhos para cobrir o sol, além de apertar a vista. Não viu nada além de sombras em meio à mata densa naquele trecho. A menina fez o mesmo. Ao longe, ouviu a voz de seu pai lhes chamando, e antes que pudesse dar atenção, escutou uma respirada profunda ao seu lado, como quem traga o ar com força.


Olhou e viu Larissa de olhos esbugalhados olhando para frente. A garota fez menção em se virar para correr, escorregou no musgo e caiu de costas dentro do riacho. Ela começou a gritar e bater os braços desesperada. Seu irmão se ajoelhou e estendeu a mão para ela. ‘’Pai. Pai’’, ela gritava com desespero e se afastava mais da borda devido à correnteza. ‘’La’’, com os olhos lacrimejantes, o menino a chamava.

— Pai, pai. Socorro! — ele chamou.

— ‘’Bê’’. Me... A... juda! — Larissa berrou de forma esganiçada e batendo os membros. — Pai!

Bernardo não conseguiu pensar em mais nada a não ser correr de volta e encontrar seu pai para pedir ajuda. Mal se lembrava do caminho, mesmo não sendo tão distante. Corria com lágrimas nos olhos. Ao chegar, parou de súbito, derrapou nas pedrinhas miúdas e caiu sentado com um par de olhos quase saltados. Próximo ao bambuzal, Waldir estava caído com sua face voltada para o chão. Seu facão estava perto de sua mão, e havia uma poça de sangue se formando ao redor de sua cabeça, mesclando-se com o chão de terra e grama rala do lugar. Atrás do crânio, marcas profundas de cortes, e o boné verde jazido no solo acima da cabeça.


Mas havia chegado bem a tempo de escutar o som de um tropel e notar uma figura magra se afastar correndo com outro facão ensanguentado. Pouco mais distante, no solo, uma latinha de cerveja quase no fim. Com a vista turva pelo estresse da situação, e mesmo com as pernas bambas, o garoto correu para a direção oposta e voltou para o riacho, gritando por Larissa, ao passo em que as lágrimas pingavam de seus olhos. A garota desaparecera e nenhum outro grito seu foi ouvido. Bernardo sentou-se na pedra e pôs todas as lágrimas para fora, chorando de soluçar. Ficou quase dez minutos ali, sentado de cabeça baixa, então voltou para o corpo do pai, porém, se mantando afastado ao menos cinco metros, espiando de olhos molhados. Em sua cabeça, tinha que ir embora e voltar para a mãe.


Com dificuldades, achou o caminho de volta e, assim que chegou à rua já capengando, fez seu caminho para casa naquele mesmo morro. Contou o que houve. A polícia fez uma busca e encontrou o corpo de Larissa preso a galhos do trecho denso de mato por onde a fluente corria. Os corpos dos familiares foram removidos e o enterro foi conjunto. Durante a semana, Bernardo não foi à aula e tão pouco saiu de casa. Mal comia. Jandira não fora tão diferente, mais pela filha. Chorara muito. Houve-se uma grande comoção no bairro. Passados cinco dias de luto, na sala, enquanto via tevê sem muita alegria, Bernardo não conseguiu olhar na face do sujeito que se aproximou dele, mas sentia o cheiro de cerveja.

— Se tu falar que eu tava lá, eu te bato muito, tendeu?

Ele não o respondeu. Olhava a televisão com os olhos marejados. Apenas engoliu duramente e fez que sim. ‘’Fala. Entendeu, molequinho?’’ Com a segunda voz lhe inquirindo, ele olhou, vendo a mãe ao lado de Túlio sem camisa, como sempre andava. O menino afirmou que sim. O legista havia concluído a fratura na cabeça do pai, devido aos fortes traumas por algum tipo de arma cortante. Túlio disse à polícia dias depois que o irmão tinha um inimigo que o ameaçava por causa de dívidas, e que costumava segui-lo. Jandira confirmou a história, apesar de outros parentes entrevistados terem dito não saberem nada sobre isso.


Como contra-argumento, a viúva relatou que seu marido somente falava disso com ela e o irmão, e lhes pedia segredo. E disseram não saberem de quem se tratava, porque Waldir se recusava a tocar nesse ponto. A polícia não concluíra nada e acabara por fechar o caso com dois meses depois do ocorrido. No caso da irmã, afogamento fora a causa concluída por laudo e dessa vez ao menos, Bernardo pudera testemunhar sem medo que a irmã caíra na água, embora não tivesse visto ela se afogar.


Jandira e Túlio endossaram que Waldir estava bebendo muita cerveja nos últimos dias, mais do que o irmão – outros parentes negaram, porém, a esposa e o cunhado rebateram isso com o argumento de que o marido estava mais assim em casa, nos fins de semana, dias antes do ocorrido, e que ele preferia se mostrar sóbrio na presença dos outros – e estava pouco atencioso, embora tivesse teimado em levar junto os filhos naquele lugar. Jandira dissera ter ficado arrependida da decisão de ter deixado. Na noite presente, Bernardo se levantou mais uma vez para ir até o banheiro. Tivera de se acostumar com a cama de Larissa vazia. Nem ao menos ela estava mais ali, já haviam se livrado dela e de outros pertences da menina.


As sombras nos cantos da casa causavam arrepios agora, como nunca. O garoto acendeu a luz da sala e seguiu, mas parou ante a porta do quarto da mãe. O que eram discussões antes com seu pai, no presente, pareciam gemidos de prazer. O garoto ficou confuso. Ainda tinha só doze anos. Após urinar, regressou. Já pegava no sono quando acordou com um sussurro em seu ouvido, chamando o seu nome. ‘’Bernardo’’. Com um pulo, pôs-se sentado, olhando para os lados. Acendeu depressa a luz do abajur infantil azul que a mãe comprara para que ele não tivesse tanto medo de dormir sozinho agora.


Ele respirava forte. Ouviu outro sussurro e fitou o canto penumbroso atrás da porta, aonde a luz não chegava forte. Era uma sombra chapada. Negra como a noite mais densa. Ao mesmo tempo em que ela parecia presa à parede, era como se estivesse descolada. Não se movia muito. Mas tinha uma forma bem definida, magra, e o aparente volume do cabelo e roupas. Seu coração tamborilava. Os olhos ainda arregalados. ‘’Não tenha medo’’, a sombra disse num sussurro de gelar a alma e continuou:

— Aqui não tem morte, não tem dor. Aqueles que cê ama, aqui, jamais te desapontarão; jamais te abandonarão. Aqui, cê nunca me perdeu e nunca me perderá. Aqui, não precisamos de nada. Podemos brincar de Tarzan na lua se a gente quiser.

O garoto mantinha-se estático.

— A gente amou o papai e a mamãe — a sombra continuou. — Mas tudo mudou. Aqui, não choramos mais — a massa escura fez uma pausa, então seguiu: — Morrer não é tão ruim assim, ‘’Bê’’. Se tu quiser, estarei ao seu lado até o Aqui. Você quer?

Mais sombras surgiram em dois cantos do quarto; eram altas; não fizeram mais nenhum movimento. A sombra de Larissa disse que eles eram parte do Povo do Aqui, que atendendo a um pedido dela, vieram buscá-lo. Ela havia morrido naquele lugar isolado, ocultada entre as raízes, e isto fez sua alma se perder no limiar do plano espiritual humano com o Aqui. Era uma fronteira, e ela fora achada primeira pelo Povo que vagava por ali devido às energias sombrias daquele local. Tivera medo, mas percebera como era uma benção estar vivendo daquele lado e quis tirar seu irmão do sofrimento ao ter tido consciência do que se passava. ‘’Quer vir?’’ Mas o garoto não conseguia responder. ‘’Quer vir?’’, ela insistiu. E Bernardo, de um modo automático, conseguindo falar, respondeu:

— Tô com medo.

— Bernardo — sussurrou outra sombra. — Estamos com você, meu filho. Não quero mais que sofra aqui. Venha para as trevas com seu pai e a ‘’La’’. Só venha. Venha para esse lugar maravilhoso.


Bernardo engoliu em seco. Fechou os olhos apertados, e depois de alguns segundos, os abriu e as sombras haviam sumido. Passaram-se dez dias e ainda pensava naquilo. Sentia falta da irmã e do pai. Começou a apanhar com frequência da mãe por coisas como derramar o café e deixar algum brinquedo no chão, o que não ocorria tanto antes. Túlio vivia agarrado a ela agora e sussurrando em seus ouvidos. Passava a mão nela na frente dele e isso lhe causava um sentimento ruim ao ver. Os gemidos da mãe no quarto à noite continuaram, e mesmo Túlio passou a bater nele com um pedaço de ripa de madeira por ficar olhando os dois agarrados pela casa.


A mãe ria quando o homem lhe chamava de ‘’frutinha’’. Era como se ele não a reconhecesse mais. Por que ela estava agindo assim agora? Será que ela sempre foi assim e nunca reparara? Depois das perdas, algumas coisas mudaram, e Bernardo sentia raiva; a criança sentia raiva da mãe a cada dia, e seus pensamentos ficavam distraídos na irmã e no pai. Ia muito mal na escola, continuava a apanhar por qualquer besteira em casa. Não tinha ninguém por ele. Naquela noite, por volta das onze, acordou com gritos da mãe e do tio, por segundos breves, até que cessaram. Nos cantos escuros, Larissa surgiu pela segunda vez desde a primeira, somente ela desta vez. A sombra sussurrou seu nome. O garoto acendeu o abajur.

— Co... Como eu vô até tu e o papai? — falou gaguejando e sentado na cama. Respirava forte. Sentia medo ainda, porém, era como se o fato de saber que a forma era de sua irmã Larissa, lhe confortasse o bastante para não surtar.

A silhueta exalou uma gargalhada estrídula e se moveu alguns centímetros em direção à cama.

— Vou colocar minhas mãos no seu pescoço — Larissa sussurrou. — Esse lugar tem energia sombria. Vai dar certo.

O menino inspirou fundo.

— Mas e a mãe?

Larissa gargalhou e disse para não se importar com ela. Nada disso importaria no Aqui. Seriam apenas eles três. Bernardo quis saber se iria doer. Estava com medo. E Larissa sussurrou medonhamente que ele estaria fora antes mesmo que pudesse imaginar, como quando você sonha e não sabe como começou a sonhar. Ela o incentivou e gargalhou... Nada mais precisou ser dito.


No quarto de Jandira, à luz de uma lamparina deixada acesa, dois corpos jaziam. As paredes com borrifos escarlates ainda deslizando sobre. Faces de um puro pavor, pela dor ou horror ali visto. Ossos quebrados, fraturas expostas, músculos estilhaçados; olhos saltados, poças rubras mescladas e pele rasgada como que por um demônio. A fragrância da morte no ar e o fim de uma forma ímpar e nefasta. Sombras pequenas e de mãos dadas observavam; sem faces, e logo depois saíram voando dali, atravessando o teto e desaparecendo na finitude da noite.


16 Novembre 2022 21:43 0 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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La fin

A propos de l’auteur

E. M. Vicente Bastante interessado no gênero do horror, suspense e afins, independente da mídia. Se essa também é sua praia, fique à vontade.

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