O entardecer marca a hora, o princípio da derradeira queda do mundo mortal. O dia encontra a noite em uma tempestade luminosa que colore o céu estrelado de tons de roxo, rosa, laranja e azul, num belo degrade de cores que mais se assemelha a uma pintura surrealista. Não há nada mais deslumbrante do que esse momento: o último pôr-do-sol, antes que tudo seja consumido pela escuridão.
A chegada da Noite de Todos os Santos.
O crepúsculo dá início a celebração deste particular momento que desafia todas as leis do espaço e tempo, em que a tênue barreira que rege as leis paranormais e separa o mundo dos vivos e dos mortos é tão enfraquecida que quase se quebra por completo.
É nesta terna ocasião, marcada pelos reencontros de almas – sejam eles para o bem, ou para o mal – que a simplória e rústica loja de chás e especiarias “Doces Sustos” de Amélia ocasiona uma reação em cadeia que tem tudo para ser catastrófica.
Construída em uma área mais afastada do centro de Porto Alegre, em uma ruazinha chamada carinhosamente pelos moradores mais antigos de “a passagem”, a loja desta jovem bruxa faz sucesso entre os habitantes do bairro. Dizem as más-línguas que o local onde a pequena construção se estabeleceu, costumava ser um lugar sagrado para as mulheres ousadas o bastante para desafiar as leis da época e a religião imposta.
A prática pagã se disseminou, mesmo que por debaixo dos panos e olhos inquisidores da igreja católica. O conhecimento se alastrou e foi passado de geração a geração, de mãe para filha, tudo sobre ervas medicinais, chás capazes de curar até a febre mais ardente, rituais de boa sorte, leituras do futuro e poções que as senhoras mais antigas da passagem dizem ser capazes de amarrar qualquer um.
Claro, nem tudo eram flores. A inquisição no Brasil foi brutal para muitas pessoas, em especial, as mulheres que desviavam da norma e se recusavam a ser subservientes de uma instituição que não cumpria com aquilo que tanto pregava. Muitas foram queimadas vivas, afogadas ou apedrejadas.
Mortes violentas e viscerais, mas que não provocavam qualquer tipo de movimentação ou indignação numa época vil em que o Brasil era destruído aos pouquinhos, tendo sua história de antes apagada e a conexão com a natureza, perdida.
Amélia poderia jurar que era capaz de escutar os gritos arrepiantes das jovens mulheres e crianças ardendo em chamas, ecoando por entre as paredes da loja construída em solo sagrado pagão.
Dizem, também, que o terreno foi um ponto encontrado pelos familiares e amigos das mulheres mortas para prestar suas homenagens fúnebres. Memórias abaixo da terra; tufos de cabelo, restos mortais, objetos de valor e apreço, pertences das vítimas, até mesmo entes queridos e tudo mais que se possa imaginar.
Sua casca de pele e ossos pode ter se esvaído, mas suas almas continuam vivas.
E elas gostam de tomar chá nas madrugadas solitárias, embebidas pelo aroma de ervas doces, bolinhos de chuva e chimia de uva.
No entanto, na noite do dia 31, as almas já não estão mais confinadas aos limites da loja.
Este é o primeiro Halloween de Amélia desde que ela abriu a “Doces Sustos” e ela mal pode esperar para o seu reencontro.
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