Ele está preso a cama sem esperança de cura, as horas passam vagarosamente e sabe que a qualquer hora ela virá buscá-lo, é uma espera dolorosa pois ainda é jovem e não está preparado para partir.
As visitas são poucas, seus amigos se foram quando a doença chegou e a família aos poucos foi se afastando, restando apenas seu avô a quem tudo lhe devia.
Seu avô, homem austero de criação e bruto de vivência era seu porto seguro, nunca lhe deixando faltar nada, seja material ou espiritual, ele sempre estava ali, sendo que a pior dor que sentia era que não poderia lhe retribuir tudo o que recebeu.
Neste dia ele entrou no quarto com um pesado livro, muito antigo, páginas de um papel grosso com a textura de linho e letras de um vermelho escuro já se apagando pela ação do tempo a capa feita de um tipo de couro que nunca tinha visto e gravada em baixo-relevo com símbolos estranhos; era um livro que causava nele medo e respulsa.
- Aqui neste grimório pode ter algo que seja do seu interesse, contudo use apenas se tiver certeza do que quer... - Dizendo isso deixou o enorme livro sobre a mesa de cabeceira e retirou-se apressadamente.
O dia ia se findando e à luz da lamparina ele começou a folhear o misterioso livro. Palavras estranhas, ervas, e toda sorte de especiarias acompanhadas de figuras grotescas, partes do corpo humano, animais meio humanos e figuras femininas em poses sensuais. Eram feitiços, invocações, magias e rituais, alguns bem simples e outros bem elaborados, seria um leitura interessante.
Não precisou ler muito para encontrar algo que lhe chamasse a atenção, uma invocação simples e um pedido poderia lhe ser atendido, eram apenas algumas palavras em uma língua que não conhecia, um pouco de sal, algumas ervas e um tipo específico de madeira que deveria ser queimada.
Já tarde da noite e com muitas dores ele se arrasta para fora do seu pequeno quarto com o livro nas mãos, vai a procura dos ingredientes para seu ritual. Em sua cozinha a maior parte dos elementos se fazia presente, a madeira e um tipo de erva seriam mais difíceis de conseguir, contudo ao lado do celeiro havia uma pilha de lenha que seu avô estava juntando para o inverno, ali com certeza deveria ter algum graveto da espécie que precisava e a erva não seria difícil de encontrar na floresta que margeava o riacho da propriedade.
Sem fazer barulhos para não acordar seu avô, ele rasteja para o pátio onde apenas a lua é sua companheira e testemunha do delito que está prestes a praticar. Como se alguém houvesse colocado ali, bem no topo da pilha de lenha a madeira de coloração avermelhada de que precisava jazia sob o ramo da erva aromática e alucinógena que precisava.
Ele tinha tudo para o ritual, faltava o lugar, não poderia ser na casa pois acordaria seu avô dessa forma o celeiro seria a melhor opção. Um grande galpão todo em madeira que nos últimos tempos encontrava-se praticamente vazio, apenas algumas tralhas espalhadas pelos cantos e ratos, muitos ratos.
A fórmula do ritual pedia que fosse desenhado um círculo no chão, com o pé na grossa camada de poeira ele o fez e com o sal escreveu os signos copiados do livro; a madeira ao centro serviria de tocha onde ao recitar os cânticos deveria queimar as ervas em uma ordem específica.
Tudo corria normalmente, se assim pode se dizer, a tocha acesa e erva por erva queimando ao som de uma cantoria aparentemente sem sentido, a última a ser colocada seria a que ele encontrou junto a madeira, apenas ela e o ritual estaria terminado, quando a deitou ao fogo algo de extraordinário aconteceu, a chama que vinha definhando, explodiu em uma labareda que quase atingiu o teto do celeiro e os ratos contrariando a lógica começam a se lançar nas chamas.
Assustado com o desenrolar dos acontecimentos e com uma certa aversão aos guinchados dos roedores ardendo nas chamas ele tenta fugir dali, mas encontra-se aterrado sem conseguir mexer um músculo é quando uma voz saindo das chamas petrifica sua alma.
- Tens medo de mim, ó ser insignificante!? vocifera o ser que começa a sair das chamas, sua cabeça lembra a de um búfalo com enormes chifres projetando se para a frente, seu grotesco corpo nú é de uma coloração vermelha acastanhada e eleva-se a uma altura descomunal.
- ...
- Diga o que queres, não tenho tempo a perder com vermes.
- Eu preciso reestabelecer minha saúde, não posso morrer ainda. Diz ele entre soluços e lágrimas.
- Quer apenas a cura!? Eu posso fazer isso, mas posso dar-lhe algo muito melhor. Aceitas!?
- Como assim!? O que poderia ser melhor que minha saúde? Eu quero viver!!!
- Exato! Posso dar-lhe a saúde, poder, glória e todos os tesouros da terra.
- Sim!!! Eu aceito.
- Não queres pensar um pouco antes? Para eu conceder-lhe tão grande dádiva, o nobre requerente pagar-me á uma pequena quantia!?
- Sim, tudo o que quiseres.
- Ótimo, ótimo.
- Diga qual a quantia, não tenho muito, todavía se necessário for, matarei para conseguir.
- É exatamente isso que precisará fazer.
- Minha condição não me auxilia, porém farei o impossível.
- O impossível não será necessário meu amigo, a alma que eu desejo, fácil será trazê-la a mim.
- Qual seria a alma que desejas?
- Esta... Diz o diabólico ser e abrindo os braços em um arco uma imagem começa a se formar, seu avô dormindo plácidamente em sua singela cama.
- NÃO! Jamais farei isso.
- Seu tempo está passando e esse é o trato, será ele ou você. A escolha é sua...
- Certo, eu o farei, apenas dê-me tempo...
- Como quiser, tens seis horas para trazer-me a alma do velho. Com essas palavras ditas em meio a um clarão o maldito desaparece em meio as chamas que se apagam, deixando apenas o cheiro de enxofre no ar.
Ja é dia, ele está exausto e com a sensação de ter vivido um pesadelo, sai do celeiro e com passos cambaleantes caminha de volta à casa onde o velho senhor o espera preocupado.
- Por onde esteve, meu filho? As dores não o deixaram dormir? Questiona o avô.
- Fui respirar um pouco de ar fresco.
- Sei que mentes, onde esteve? Estás sujo e com um odores de fumaça.
Sem conter a emoção, ele desfaz se em prantos, contando todo o incidente da noite, até mesmo o intento do acordo firmado com o diabólico ser.
- Então minha estratégia funcionou! Esse velho aqui já sabia como iria ser, quanto tempo ainda temos?
- Como assim? Como o senhor sabia? Pergunta o garoto atordoado.
- Simples, esse velho livro pertence a família à gerações e já o usei muito... Porém há pedidos que apenas o favorecido pode fazer e sempre o pagamento é vultuoso... Sua doença é por demais fatal e meus pedidos apenas prolongaram um pouco sua vida, sem contudo dar-lhe a plena saúde... Quem você acha que separou a madeira e a erva exata para o seu ritual!?
- Não pode ser, eu não posso fazer isso... Apenas o senhor permaneceu ao me lado, enquanto todos me abandonaram o senhor cuidou de mim...
- Tome. interrompeu o velho entregando-lhe uma faca. - Está bem afiada e poupará suas forças.
- NÃO! Não farei.
- Quanto tempo ele lhe deu? Duas, quatro horas!? Se você não fizer ao final do tempo ele virá buscá-lo, eu já vivi demais e meus pecados nesse mundo são muitos. Você tem uma vida toda ainda, vá ser feliz.
- Já disse, não posso fazer, não viverei com esse pecado. Prefiro morrer.
- Garoto imbecil, você não apenas morrerá, irá para o inferno eternamente. dizendo isso o velho segurando a faca nas mãos do neto crava em seu peito. - Ele terá minha alma de uma forma ou de outra, você ficará livre desse pecado e terá novamente sua saúde.
O velho em segundos dá seu último suspiro fitando o neto com ternura e respeito reconhecendo que ele não se entregou ao mal e seu coração continuaria puro.
O garoto derrama-se em lágrimas abraçado ao corpo inerte do avô e não percebe a nevoa úmida que entra pela janela se condensando na forma de um ancião de barbas longas, capuz cobrindo-lhe a face e túnica negra. O visitante apoia-se em um cajado de madeira rústica e observa a cena sem interferir. Após longo tempo ali estático ele toca o ombro do rapaz com o cajado, fazendo-o de um pulo por se em pé sem entender quem seria aquele estranho homem.
- Olá! Acho que não estás me reconhecendo, conversamos a pouco, desculpe-me pela outra forma que me apresentei a ti.
- Você!? Você fez isso... rosna o rapaz por entre os dentes.
- Eu!? Jamais, não tenho esse poder, mesmo que eu quisesse não poderia. Isso é obra sua, você enganou o velho convencendo-o de sua bondade e levando o a isso. No entanto esse não era exatamente o trato porém como já tenho a alma dele tenho que cumprir minha parte, entretanto como não cumpriste a risca não sou obrigado a cumprir precisamente a minha.
- Seu... seu... balbucia o rapaz tentando manter se em pé
- Não precisa agradecer me e tão pouco elogiar me. Vou dar te a cura que tanto almeja, as riquezas do mundo e a principal dádiva, por não ter cumprido com esmero sua parte do acordo, dar-te-ei a vida eterna, viverás até o fim dos dias e além.
- ah ah ah! Então consegui mais que o combinado!?
- Se pensás assim, sejas feliz com esse "dom". e com uma reverência o ancião finaliza a conversa desvanecendo-se em uma espessa névoa cheirando a morte.
Como tratado, o rapaz recupera todo seu vigor no momento em que o tinhoso profere suas últimas palavras. Com a saúde compatível com seus anos vividos ele arrasta o corpo de seu falecido avô para fora da casa e abre uma cova ordinária que será o descanso do corpo, pois a alma viverá o suplício eterno.
Durante anos o rapaz vive a vida que sempre sonhara, a taberna era sua casa e uma concubina diferente a cada noite faziam as vezes de uma esposa, o ouro não era problema, grandes somas entravam sem o mínimo esforço, a terra herdada produzia sem a necessidade de plantio, tudo corria como o maligno havia prometido.
Anos e anos foram passando a juventude continuava a acompanhá-lo porém o tédio começou a apoderarse, a bebida não tinha mais o gosto de antes, os vastos banquetes não tinham mais sabor, os perfumes perderam o encanto há tempos e as mulheres, ah as mulheres as doces e outrora amadas mulheres destas ele criou um certo asco, manipuladoras, egoístas e ambiciosas, estes eram os adjetivos que mais usava quando perguntado sobre elas, não dispensava uma única migalha de amor por nada e nem por ninguém.
Tantos anos vivendo no mesmo povoado os colonos começaram a suspeitar de algo, teria ele mais de noventa anos e conservava a aparência e jovialidade de um jovem rapaz saído da infância, sob essas suspeitas e boatos sobre sua vida, vendeu a propriedade e lançou se ao mundo e vivendo como um rico viajante não despertava a curiosidade alheia.
Por pouco tempo essa nova vida deu lhe um novo sopro de esperança, todavía a realidade tornava-se palpável ao lembrar que a eternidade o aguardava. Não suportando tal melancolia, com uma garrucha posicionada no céu da boca atentou pela primeira vez contra si, o projétil atravessou-lhe o crânio e a paz encontrou.
Ficou por um tempo desacordado saboreando um sono intangível, acordando apenas com uma profunda dor de cabeça e com a certeza de que seu fim não estava próximo.
Repetiu o ato a exaustão, variando a cada feito o alvo, porém tendo o mesmo destino, acordar... Em outra tentativa imitando seu avô cravou em si um punhal, desta feita ficou dias desacordado recobrando a consciência ainda com a arma em seu peito.
Nada que fizesse poderia matar seu corpo, enforcamento e afogamento nem ao menos o sono vazio lhe proporcionavam, inanição foi a última tentativa, meses sem comer o levaram a se transformar em um esqueleto errante, contudo a tão sonhada morte não vinha.
Como um andarilho vivia agora seus dias, não tinha mais audácia em sua alma e de cabeça baixa evitava o olhar de todos, não tinha mais nome e o passado ele tentava esquecer consumindo as mais variadas drogas ainda na esperança delas os levarem.
Mais de um século transcorreu, ele não contava mais a passagem do tempo era apenas uma sombra se escondendo nos becos de uma grande cidade, se alimentando do lixo e vivendo no esgoto em meio a imundície. Em delírio uma noite rogou ao ser que o havia amaldiçoado pedindo em prantos que levasse sua alma para o inferno.
Em meio a sujeira uma tênue luz fez-se visível e após tanto tempo o ancião reaparece e desta vez com um sorriso estampado em seu rosto.
- Então o "dom" que tanto almejavas te causa sofrimento agora!?
- Sim, você me condenou a essa aflição eterna, peço-te que desfaça o acordo.
- Impossível criatura tola, o pacto foi firmado e a sua escolha feita, aquela pobre alma pela sua vida, dei-te mais do que pediste e ainda não estás satisfeito!?
- Quero a morte, o descanso ou a danação eterna, qualquer destino é melhor que isso.
- Até a morte jovem? Sem nada ter conhecido da vida?
- Sim! Sim! Seja qual for a desdita melhor será que essa eternidade funesta, que vós em sua maldade me acorrentaste.
- De acordo, todavía a maldade não vieste de mim e sim da sua ganância, no entanto já sofreste por demais e assim sendo dar-te-ei uma segunda chance. Findando com estas palavras a escuridão caiu sobre o rapaz e em um turbilhão de memórias ele foi vagueando até adormecer...
"... Eram feitiços, invocações, magias e rituais, alguns bem simples e outros bem elaborados, seria um leitura interessante."
Acordou em sua cama sobressaltado com a sensação de mil vidas, em suas lembranças vagamente recordava do dia anterior, havia adormecido lendo o amaldiçoado livro e um louco sonho teimava em voltar a sua mente, o "suicídio" de seu avô dando lhe a saúde e a juventude eterna, sofrimentos alucinantes, fome, imundice e a nítida vontade de morrer e não conseguir, por horas revirou-se na cama tentando lembra-se ao máximo do fantasioso sonho, concatenado as lembranças tentava formar um cenário do que realmente havia acontecido, se tudo não passava de um sonho ou teria acontecido realmente.
Seu avô preocupado com sua demora em levanta-se vai ao quarto e encontra-o em prantos.
- O que houve meu filho?
- Nada, apenas um sonho ruim.
- Não lestes o livro?
- Não sei ao certo, penso ter estado a ler e adormecido, porém não o quero mais.
- Você é muito fraco para certas decisões, eu o levarei, no entanto se desejar tê-lo novamente eu o trarei.
- Obrigado.
A morte tão sonhada não tarda a visitá-lo e na mesma noite o leva, terminando assim sua desdita. Na manhã seguinte o avô ao chamá-lo para o desjejum encontra seu corpo álgido prostrado sobre a cama.
- Jovem tolo, perdeste a última chance. Balbucia o velho entre lágrimas.
Merci pour la lecture!
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