Acordei de um longo sono, não sei precisar o tempo que se
passou, senti a mesa gelada na escuridão total e tentei me levantar, sendo
inútil o esforço percebi que estava preso em uma espécie de caixa muito fria e
estava nú.
Fiquei oscilando entre o desespero e a calma por longas
horas até escutar vozes abafadas, uma me trouxe um pouco de alento, era uma voz conhecida.
O som de uma trava sendo acionada, a intensa luz e a
sensação de estar deslizando para trás me causam náuseas, continuo inerte
apesar de agora estar fora da caixa, não tenho controle sobre meu corpo.
Um rosto conhecido se debruça sobre mim, é minha esposa.
- Sim, é ele. – diz ela ao senhor que a acompanha e
virando-se rapidamente sai do meu campo de visão.
Tento falar com ela, pedir ajuda, mas é inútil, sinto o
horrível deslizar e subitamente estou na completa escuridão novamente.
O silêncio toma conta e tento entender o que está
acontecendo, minha última lembrança é de estar sentado em meu escritório
realizando algum trabalho no computador quando o telefone tocou, apenas isso,
nada mais.
A espera não foi longa, novamente o som da trava, a luz e o
deslizar, desta vez fui colocado em uma maca por um homem e uma mulher, agora
consigo ver melhor, estou em um necrotério.
Meu corpo inerte é colocado em uma mesa toda em metal, fico
com a cabeça apoiada em uma espécie de travesseiro duro e frio. Nada nesse
mundo poderia me preparar para a cena que se seguiria, a mulher se aproxima com
uma serra circular enquanto o homem segurando minha cabeça faz um corte em
torno do meu crânio.
A dor é lancinante e num ímpeto contra todas as forças que
me prendiam aquela mesa me levanto em um salto, porém meu corpo continua lá,
sendo despedaçado por aquelas pessoas.
O homem tira meu escalpo dando espaço para que a mulher
possa serrar meu crânio expondo meu cérebro para que ele possa pega-lo, analisa-lo,
pesa-lo e colocá-lo novamente no lugar.
A cena brutal se repete agora em meu torax, ele o abre com
um bisturi revelando minhas costelas
onde ela com a mesma serra e sem pensar, abre meu peito, minhas vísceras
expostas sendo analisadas por dois estranhos que da mesma forma vão tirando
órgão por órgão, cortando, pesando e jogando novamente dentro do meu peito.
Não consigo suportar e caio ao chão perdendo os sentidos,
quando acordo novamente estou sozinho na sala, meu corpo está todo costurado
toscamente e ainda nú coberto apenas por um fino tecido branco.
Uma senhora entra e começa os preparativos, vou ter ao menos
um enterro digno, meu corpo é vestido, com um terno barato, maquiado e deixado
de lado para que dois auxiliares coloquem meu corpo rígido em um caixão.
Adormeço encolhido em um canto da sala, e quando desperto o
cenário é outro, uma sala iluminada apenas por quatro velas, uma em cada canto,
estou sozinho e o único som vem do tic-tac do relógio acima da porta que marca
03h33min, ninguém vela por mim.
As horas escoam e os primeiros raios de sol entram pela
janela e com eles minha amada esposa, tento me aproximar mas sou repelido por
uma força estranha, sinto nela um ar de felicidade e alívio, como se minha
morte estivesse sendo para ela uma libertação.
A sala se enche de pessoas frias, não há sentimentos ali,
todos estão apenas cumprindo suas obrigações sociais. Tento me afastar mas é
impossível, algo ainda me prende ao meu corpo.
Sim, sempre fui muito ligado às aparências, ao dinheiro e a
minha posição social e nunca dei amor a ninguém ou me preocupei com minha alma,
a igreja era frequentada apenas como mais um jogo social onde negocios eram
feitos e o vultuoso dízimo pago sobre o altar para que todos vissem.
Então esse era o preço a ser pago!? Ver que não era amado
porque nunca amei e que nem ao menos minha esposa nutria algum sentimento por
mim além dos interesses financeiros!?
Talvez essa fosse a resposta e nesse frenesi de sentimentos
tentei rezar, mas nem isso eu sabia, todas as rezas decoradas não tem poder
nesse novo mundo em que me encontro.
Em um canto escuro da sala me refúgio envergonhado, não
quero encarar essas pessoas que agora, sem as máscaras, são estranhas para mim.
As horas passam e o caixão é fechado para minha última viagem até o campo
Santo.
Não há lágrimas sinceras, apenas o velho teatro que em vida
fui um dos melhores atores. Meu corpo é baixado na sepultura e a multidão se
dispersa em poucos minutos, me deixando sozinho em um lugar estranho, úmido e
frio.
O tempo agora não faz mais sentido, não existem horas, dias
ou meses, é uma sequência infinita onde noite e dia desaparecem num ciclo
infernal.
Sinto os vermes se alimentarem da minha carne que aos poucos
vai se desprendendo dos meus ossos até não existir nada mais a ser consumido.
Desesperado e sem forças espero apenas que a terra se abra e
o inferno reclame minha alma. Estou acabado, do homem que fui em vida nada mais
resta e nesse desalento, como um bálsamo o pranto de arrependimento vem lavar
meus pecados e uma luz fulgurante surge em minha frente, não foi o inferno, mas
sim os céus que vieram em meu socorro.
Não consigo distinguir o ser celestial que se apresenta, a
luz é muito intensa para meus olhos acostumados a escuridão e assim, me
agarrando apenas à fé eu sigo, deixando para trás uma existência desperdiçada e
indo ao encontro de um futuro incerto.
Merci pour la lecture!
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