Para a maioria das pessoas, viagens inesquecíveis, dignas dos álbuns de fotografias, costumam significar lugares agradáveis, exóticos ou divertidos como a Disneylândia e um passeio pela Universal Studios; quem sabe uma temporada através da Europa ou talvez uma semana em alguma praia ensolarada das Bahamas. As grandes capitais do mundo também são o destino preferido de muita gente.
Já para Jun e Reyko Igarashi, a romântica Cidade das Luzes, Roma ou frenesi algum de Nova Iorque chegaria aos pés de uma cidade fantasma no deserto do Arizona ou um sanatório abandonado nas matas da Nova Inglaterra; a não ser que se tratasse de alguma velha rede de túneis condenados de metrô sob Manhattan, das tumbas dos centuriões ao longo da Via Ápia ou então das labirínticas catacumbas medievais bem abaixo de Paris.
Era Reyko quem sempre os arrastava para essas aventuras soturnas, graças à constante caça por material inédito para o canal de vídeos voltados para os mistérios do sobrenatural que mantinha no Youtube.
Conheceram-se justamente durante uma dessas suas viagens insólitas. Os dois haviam se hospedado no mesmo lugar, um velho estaleiro transformado em albergue no porto sul de Portland onde, a menos de cem metros, um legítimo galeão espanhol do século XVIII restaurado estava ancorado e aberto à visitação. Encontraram-se na metade do tour, duas almas nascidas do outro lado do mundo, reunidas ali, como por capricho do destino.
A embarcação era tida como assombrada pelos espíritos da tripulação que, por alguma razão, enlouquecera e terminara se canibalizando. E se aquilo não era um belo motivo para Reyko (que já havia ido muito mais longe por histórias menos interessantes), deixar o Japão e voar para o extremo leste dos Estados Unidos, o que mais seria?
Caramba, só aquelas fotografias do caldeirão cheio de ossos que alegavam ter encontrado no convés e da recriação da cozinha – com pernas, braços e troncos feitos de cera dependurados em ganchos – já valeriam a pena! Se ela conseguisse (e quase sempre conseguia) uma filmagem particular do interior do navio, seus aposentos, os porões repletos de correntes e grilhões, mesmo que não captasse uma única sombra suspeita ou um zumbido de mosquito, seria material para um vídeo de pelo menos 50 mil visualizações.
Jun – ou Junno, como era chamado pelos amigos e os avós maternos, com quem morava em Moncton – tinha uma razão um pouco mais normal para estar lá naquele final de semana: a esperança de conseguir um autógrafo de seu escritor de suspense e terror favorito, Stephen King, que estaria promovendo seu novo romance num evento próximo dali e que havia dito numa entrevista querer visitar o 55º Festival da História Marítima – em especial o Galeão dos Horrores.
Jun vinha viajando em seu carro novo pelos litorais de Nova Brunswick e do Maine fazia uma semana, como parte de seu presente de formatura e despedida dado por seus avós. Ele e seus dois melhores amigos da universidade, Walt Rafferty e Jenny Grimmes, tinham planos de chegar à costa de Rhode Island – ou até aonde o dinheiro destinado à farra permitisse – antes que voltasse para a sua casa, em Tokyo.
Na parte da visitação em que era permitido subir até a gávea do galeão, agora reposicionada em uma altura mais segura, Reyko sorrira para Jun (a quem já havia notado há algum tempo admirando-a mais que ao próprio navio) e lhe perguntara se poderia fotografá-la lá em cima. Jun o fizera com gosto, tendo ela depois retribuído o favor. No deque superior, tornaram a se esbarrar e então bateram fotos um do outro posando ao lado de um indefectível baú de tesouro exposto no gabinete do capitão.
Terminaram o passeio juntos, conversando e rindo como se já fossem velhos amigos. De lá, seguiram para uma taverna próxima (a bem da verdade, era apenas um barzinho cujo proprietário havia enfeitado com motivos piratas para as festividades) e desde então, nunca mais se separaram.
Jun conseguira seu autógrafo – e também uma foto com King –, e Reyko a sua visita particular pelo El Mensajero del Rey. Jun a acompanhara naquela madrugada, quando os organizadores do evento se dispuseram a mostrar-lhe inclusive as áreas de acesso restrito. Ela filmava tudo, enquanto ele fotografava e registrava notas em um gravador de voz portátil.
Passaram o dia seguinte no living do albergue, editando vídeos e descobrindo mais um sobre o outro. Por incrível que parecesse, a família de Jun vivia a menos de uma hora do apartamento de Reyko, em Mitsuzawa, Yokohama, e nenhum dos dois discordara quando Jenny, toda esotérica e maravilhada com aquele encontro, dissera que o que tinha de rolar, simplesmente rolava.
— Quem sabe não lhe renda um ótimo livro — aventara Walt e, apesar de Jun ter achado graça na hora, foi exatamente o que aconteceu, quatro anos mais tarde.
Na terça, Reyko voltara para Yokohama, já como namorada de Jun. Ficaram tão tristes em se separar no aeroporto de Portland onde ela pegaria a conexão para Nova Iorque e de lá para o Japão, que parecia estarem se despedindo para sempre; o que não era verdade: em menos de dez dias Jun também estaria pegando aquele mesmo voo para voltar para casa – e agora, para ela.
...
Reyko e Jun iniciaram sua história no final do outono de 2014, e pelos próximos anos só se apaixonaram mais a cada dia. A vida era boa.
O canal de Reyko, criado num tempo em que as celebridades da internet eram quase inexistentes, e o compartilhamento de vídeos ainda não era parte do cotidiano, cresceu, e agora ela contava não com 50 mil visualizações por episódio, mas no mínimo meio milhão.
Os livros que permeavam a imaginação de Jun também haviam deixado de ser um sonho para tornarem-se realidade, inclusive com ‘Dois Corações nas Trevas’, seu segundo romance, que contava a história de seu encontro com Reyko e os primeiros contatos com o sobrenatural (ainda que disfarçados em outros personagens) tendo se mantido entre os 20 Mais Lidos do Times em 2018.
Não raramente, havia quem os comparasse a famosos casais de caçadores de fantasmas, como os Warren, por exemplo, embora os dois nunca tivessem se metido a invocar ou exorcizar demônios. Os fãs de seu trabalho gostavam de chamá-los de ‘Os Warren J-Pop’, o que, obviamente, eles recebiam como uma grande brincadeira.
Enquanto Reyko levava semanalmente aos 4 milhões de inscritos em seu canal o mais puro terror visual através de matérias e visitas aos cantos mais obscuros da Terra, Jun o traduzia, sempre com angustiante eficácia, em palavras.
Sim, a vida era realmente boa. Mas, infelizmente, histórias assim tendem a não durar muito.
Havia algum tempo, vinham passando por uma fase difícil, desde que Kenshi, o irmão mais velho de Reyko, tirara a própria vida. Aquilo a afetara mais que qualquer outra coisa. E se até então ela sabia tirar de letra o que viesse, atualmente sentia-se perdida e travada.
Jun a compreendia: nunca foi fácil perder alguém – ainda mais de maneira tão trágica –, só que pelo menos antigamente os dois conversavam, ela se abria para ele e, de um jeito ou de outro, acabavam se resolvendo; enquanto hoje, Reyko evitava falar de suas preocupações que pareciam aumentar a cada dia.
Sem que nada pudesse fazer a respeito, Jun a via afundar-se numa melancolia que se enraizava sombriamente, drenando a costumeira tranquilidade e o bom humor da esposa e empalidecendo sua fisionomia.
Por mais que Reyko tentasse fugir daquilo, botar as coisas ruins que haviam acontecido numa caixinha chamada ‘passado’ lá no fundo da mente, aquela sensação de estar sendo arrastada para a escuridão persistia.
Quando, numa noite de maio, durante uma viagem lá mesmo no Japão, como ela mais gostava de fazer, Reyko lhe revelou estar cansada, com medo demais e pensando em encerrar seu canal, Jun não conseguiu evitar pensar que o tempo ruim estivesse para se tornar uma tempestade.
Merci pour la lecture!
1 - A vida antes da tempestade
Impressionante como o autor faz a leitura ser divertida e assustadora ao mesmo tempo! Muito bem escrita, detalhada, você se sente lá naquele lugar bizarro. Merece muito o sucesso. Horror com fantasmas japonês é sinistro. Parabéns ao autor. Deixo aqui minha indicação!
1 - A vida antes da tempestade
Fantástico!!! Incrível como o autor consegue nos amedrontar com qualquer tema, talvez até com os Teletubes se ele colocar na cabeça a ideia rsrsrsrs Adoro terror asiatico e esse aqui é de arrepiar. Muito bom! Quem gosta de histórias com medo, drama e fantasmas, precisa ler Aokigahara!!!
1 - A vida antes da tempestade
Que maneiro mano! O universo do horror japonês é muito bom e o autor não esquece nada. Está tudo ali pra quem ama passar medo. Muito bem escrito, contado e detalhado pra vc se sentir lá na floresta dos suicidas com o personagem. Muito bom!!!! O estilo é o melhor, como sempre podemos esperar do autor. Só leiam!
1 - A vida antes da tempestade
Sou apaixonada pela cultura japonesa e principalmente duas lendas, e aqui fui envolta nelas e todos os mistérios que a floresta dos suicidas reserva aos que a enfrentam. Leitura pesada, com temas que causam incômodo, mas muitíssimo bem escrita, como sempre, pelo autor. Acaba sendo algo mais surpreendente que só medo, pois lida com todo tipo de questionamentos sobre a vida. Como já esperava, foi um arraso!
1 - A vida antes da tempestade
Uma experiência arrepiante, com todo o respeito ao cenário do terror japonês, com as lendas e fantasmas, além de nos fazer refletir a vida. História muito bem escrita, com um estilo incrível e agradável, bem conduzida até um final digno de filmes ou jogos do gênero. Um autor que seguirei de perto! Recomendo muito!
1 - A vida antes da tempestade
Meus parabéns e minha super recomendação para essa que foi uma das histórias mais pesadas de fantasma, morte e suicídio que já li, ainda que o Wesley Deniel a entregue com seu estilo único e envolvente do início ao fim! Terror japonês sem igual! Monstros, lendas, espíritos, gore e humor, tudo com ótimas descrições e qualidade única. Parabéns!!!!!
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