marcelazuos Marcela Souza

Sou feita de memórias. Um pouco de cada ser humano que cruzou o meu caminho e dividiu sua própria existência comigo; uma figura que se fez a partir dos fragmentos de cada amor, cada paixão que não deu certo, e apesar das minhas rachaduras ainda muito palpáveis, me sinto mais inteira do que nunca. Então, se me sinto completa, por que me apagar?


Histoire courte Tout public.

#conto-original-meetmeinmontauk
Histoire courte
4
6.7mille VUES
Terminé
temps de lecture
AA Partager

Meet me in Montauk

Eu não sou boa com despedidas, penso, enquanto o ônibus passa por uma daquelas ruas esburacadas da cidade.

O que eu deveria dizer?

Até logo”? “Te vejo por aí”? “Até mais”?

Definitivamente, sou péssima com despedidas.

O motorista faz uma parada brusca, e algumas senhoras reclamam ao fundo. A agitação da cidade faz meu coração pulsar à medida que penso no fim inevitável de todas as coisas, mas também acredito que nada tem essa duração eterna que nós tanto sonhamos.

Certa vez, após assistir a Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, pensei que haviam finalmente encontrado a solução: uma máquina que apaga as pessoas da sua mente. Simples assim. Você não precisava dizer adeus, bastava livrar-se de todas as memórias com aquela pessoa.

Pensei que aquela fosse a solução mais prática. Eu não precisaria me despedir de alguém que eu não conhecia. Mas valeria a pena?

Apagar memórias. Experiências. Esquecer.

Quem eu seria hoje se não tivesse vivido todas essas coisas?

Sou feita de memórias. Um pouco de cada ser humano que cruzou o meu caminho e dividiu sua própria existência comigo; uma figura que se fez a partir dos fragmentos de cada amor, cada paixão que não deu certo, e apesar das minhas rachaduras ainda muito palpáveis, me sinto mais inteira do que nunca.

Então, se me sinto completa, por que me apagar?

Uma pequena discussão se inicia à minha frente. A senhora reclama que o motorista não é cuidadoso, e ele a manda se danar. Deixo um sorrisinho tímido escapar.

Apagar alguém da memória é extremamente doloroso. Como Joel, eu sofreria com cada lembrança eliminada. Não sei lidar com despedidas, e apagar alguém é dizer adeus para sempre.

Costumo esquecer de coisas do cotidiano. Apagar a luz da cozinha, trancar a porta, desligar o ventilador. Às vezes, até esqueço de algumas pessoas. Quem é que não se esquece, na correria do dia a dia?

Mas essas pequenas recordações costumam reaparecer após longos períodos, e cada memória reacendida em um momento silencioso é como um punhal no peito. Me faz recordar de quem eu era. De quem eu não sou mais.

Eu não sou boa com despedidas. E não sei se consigo dizer adeus agora. Nem se quero.

Se pudesse, eu fugiria. Agarraria nossas lembranças e as levaria para longe; para algum lugar distante de tudo. Passaria dias, meses, anos as protegendo do fim. Construiria um universo só nosso, onde pudéssemos ser nós mesmos, sem medo. Mas sei que as coisas não funcionam desse jeito. O fim chegaria, de qualquer forma.

Puxo a cordinha do ônibus.

Tenho medo de que você me esqueça na próxima parada. Que eu me transforme em memória, até um dia não ser mais nada. E temo que você desapareça. Que o meu cérebro, de memória péssima, te apague.

Mas, se de alguma maneira, isso acontecer, eu peço:

Meet me in Montauk.

23 Avril 2022 15:59 3 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
6
La fin

A propos de l’auteur

Marcela Souza 25. Escritora em evolução. https://marcelazuos.medium.com/

Commentez quelque chose

Publier!
Hillary La Rocque Hillary La Rocque
Olá! Faço parte da Embaixada brasileira do Inkspired e estou aqui para lhe parabenizar pela Verificação da sua história. Só de ler a sinopse e o título, corri em busca de um fundo musical adequado para acompanhar a leitura! Nossa... Posso dizer que viajei em cada linha, cada reflexão e referência, e foi uma experiência maravilhosa. Aqui a narrativa em primeira pessoa possui tanta naturalidade que era quase como se estivesse ao lado da protagonista enquanto ela compartilha um pouco dos seus pensamentos. A alternância suave das reflexões, lembranças e descrições do que ocorre no ambienta em que ela está, estão em perfeita sintonia. O texto é maravilhosamente fluído e agradável de se ler. Realmente... As vezes seria bom poder esquecer alguns eventos e até pessoas, todavia concordo plenamente com a protagonista. Nossas vivências, nossas lembranças assim como a de cada pessoa que fez parte da nossa história, são uma parte nossa, e o seu conjunto e a forma como absorvemos tudo isso são partes que formam o nosso próprio eu. Sem isso, seríamos outra pessoa. Totalmente diferentes. Vai de cada um decidir se é um fato bom ou não, e o que fazer com a ciência dele. Sua escrita é um verdadeiro primor, e não tenho apontamentos a fazer. Ainda assim, gostaria de convida-la a acompanhar o nosso blog do Esquadrão da Revisão, que está cheio de dicas valiosas que poderão ser de grande contribuição; e também o nosso Guia de Etiqueta, onde estão esclarecidas detalhadamente cada regra e suas aplicações adequadas, sobre as quais é sempre bom estarmos cientes. Por aqui eu me despeço, lhe desejando sucesso com seus projetos e que siga compartilhando conosco mais da sua criatividade, visão e escrita maravilhosos. Um grande abraço e até a próxima!
July 27, 2022, 21:27
Janaína Baraúna Janaína Baraúna
Nossa senhora, é assim mesmo. Digo por experiência própria, houve uma época que eu chorava pra Deus para eliminar certas memórias, não sei, talvez tenha acatado, mas tô esquecendo o que nem devia esquecer, é uma sensação horrível. Hoje em dia já penso diferente, sejam memórias boas ou ruins, elas fazem parte da gente e da nossa história. Sei que fui presente na vida de alguém, assim como esse alguém já foi no meu, hoje somos meras memórias, pode até doer, mas infelizmente isso não depende só da gente. O seu texto é muito reflexivo, gostei do fato que a personagem estava dentro do ônibus pesando sobre a vida, é algo que nós fazemos mesmo, principalmente do fato de mencionar uma discussão do motorista com a senhoria, pode ser até algo efêmero, mas lá para frente pode se tornar uma lembrança de "situações vividas no busão" KKKKKK Como sempre arrasando, mana. 🥰♥️
April 24, 2022, 19:09

  • Marcela Souza Marcela Souza
    Ai, mana, muito obrigada! Que alegria ler esse comentário... Fico feliz que tenha gostado! E sim, cada memória faz parte da gente, seja ela boa ou ruim, e não dá pra apagar aquilo que auxiliou na nossa construção pessoal. Que sejamos sempre uma lembrança boa na vida dos outros! Obrigada pelo comentário. <3 April 25, 2022, 21:34
~