Já era noite quando o enfermeiro saiu de casa. Um homem chutava um gato sem dono do outro lado da rua e, a fim de evitar confrontações, Herberto pegou o caminho mais longo para o ponto do ônibus que o levaria até o hospital. Apenas um contratempo a mais em sua rotina já desgastante.
Apesar de todos os anos que passara trabalhando no hospital, Herberto nunca se acostumara completamente com a dureza do seu cotidiano. Dormir de dia e trabalhar à noite o destruía e ele tinha o rosto pálido e os olhos fundos dos insones para provar. Ainda assim, nunca fizera esforço para mudar de turno. Até porque seus horários lhe davam a chance de passar as manhãs com o namorado, que vendia sapatos no shopping.
Guilherme tinha sua própria jornada extensa e exaustiva, com apenas um dia de folga na semana. Mais ou menos o mesmo esquema do enfermeiro. O que não era grande vantagem já que raramente o dia livre caía na mesma data para os dois.
No ponto, Herberto aguardava com a impaciência de quem quer o fim antes do começo.Por que os ônibus demoram tanto no sábado?A folga seria no dia seguinte e o enfermeiro, apesar de não ser dado a acreditar em superstições, tinha como certo que a jornada daquela noite não seria fácil. Para ele, era como se houvesse um equilíbrio universal a ser protegido.Se irei colocar os pés pra cima amanhã, devo sofrer mais que um condenado hoje. São as regras,lamentou. No entanto, logo riu de si mesmo e afastou os pensamentos derrotistas. O ônibus se aproximava e ele tinha que acordar para fazer o sinal.
Talvez o dia não vá ser tão ruim,pensou Herberto pouco mais de uma hora depois, ao chegar atrasado no hospital. Ele trabalhava na emergência, mas estava no ambulatório naquela noite. Segundo a chefe, os colegas estavam ocupados com um paciente “especial”. Sendo assim, ela precisava dele ali. Herberto não discutiu.
A rotina menos dura do ambulatório parecia cair bem com o estado de espírito do enfermeiro. O caso mais grave que atendeu foi o de um homem com virose que fora colocado no soro. Uma precaução sem necessidade. E, também, um alívio. Pelo menos foi assim que Herberto, acostumado com a rotina insana da emergência, decidiu ler a situação.Sem loucuras esta noite.Recostado na poltrona, quase deitado, o paciente assistia ao canal de notícias.Apenas tédio.
“É o segundo ataque desse tipo só essa semana”, disse a repórter em frente ao que parecia ser um bar na Lapa. “De acordo com as testemunhas, os dois estavam discutindo quando o homem a agrediu”.
“Ele parecia um cachorro louco espumando pela boca”, disse uma mulher de cabelo azul e voz rouca, depois de um corte na reportagem. “A gente estava discutindo porque ele disse uns negócios aí que eu prefiro não repetir e, do nada, ele me acertou um no peito. Eu fui direto para o chão. Não fosse o meu amigo parar ele… eu nem sei”.
“Só neste mês, foram feitas cerca de trinta denúncias como as de Juliana”, continuou a repórter. “Todas elas relatam o mesmo comportamento violento e a salivação excessiva dos agressores. Esta característica, aliás, tem sido comparada por muitos com os sintomas da raiva em animais como cachorros e gatos. De acordo com o especialista em infectologia Silvio Souza, chamado para auxiliar a polícia nesses casos, os agressores não apresentam os sintomas conhecidos da raiva em seres humanos”.
“Nada leva a crer que esses indivíduos apresentem qualquer problema de saúde”, explicou o médico, sorridente. “Nós fizemos todos os exames e não há indício de doença mental ou outra doença qualquer que seja”.
— Isso aí é gente ruim mesmo. Tem doença nenhuma, não. — disse o paciente, tirando a atenção de Herberto do noticiário. Examinando o acesso venoso no braço, ele perguntou ao enfermeiro. — Amigão, até quando eu vou ficar aqui? Minha esposa deve estar puta com essa demora toda.
— Assim que acabar o soro. — respondeu Herberto aumentando o volume da TV. — Falta pouco.
“A espuma branca na boca dos agressores não pode ser considerada um sintoma?”, insistiu a repórter.
“Uma série de condições podem causar a salivação em excesso”, disse o médico. “Infecções na boca e na garganta, estomatite, gravidez, alguns medicamentos como o clonazepam, pilocarpina,…”.
— Mas falta muito ainda? — questionou o paciente. — Eu tenho que esperar até esse saco todo acabar?
— Sim, senhor. Ordens do Dr. Ivan. Vai ser rápido agora — respondeu Herberto. O homem não era metade da irritação que um paciente pode ser, ainda assim o enfermeiro deu qualquer desculpa para fugir. — Eu vou ali fora dar uma olhada nos outros pacientes e já volto.
— Mas o hospital está vazio! — protestou o homem irritado enquanto o enfermeiro se apressava para o corredor.
Longe do tédio do ambulatório, Herberto buscou por algo mais estimulante para fazer do que servir de babá para homem feito, mas o paciente tinha razão. O hospital estava vazio. Das cinco salas na triagem, de paredes cor de creme e rachaduras na tinta, apenas uma estava ocupada.
Nela, uma paciente parecia esperar para ser atendida. Ela estava sentada como uma criança na cama alta e asséptica. As pernas balançavam para frente e para trás acima do chão impecavelmente branco. A senhora olhou o enfermeiro com olhos de expectativa. Era como um espelho.Babá de homem feito ou babá de velha?
— Licença. A senhora já foi atendida?
— Uma enfermeira mediu minha pressão e ficou de chamar o médico tem uns vinte ou trinta minutos. — respondeu a senhora. A voz era como um carinho feito por obrigação. Suave e dura.
— Eu vou ver o que aconteceu. — Ele respondeu, com um pé no corredor.Babá de médico pelo visto.
— Obrigada, filho.
Herberto foi até a sala de repouso, mas não encontrou um plantonista. Em noites de pouco movimento havia sempre uma meia dúzia deles por ali,observando o teto e jogando conversa fora. O enfermeiro saiu pelos corredores com passos pesados e teimosos para procurar por alguém que pudesse atender à velha. Não havia ninguém. Resignado, o enfermeiro foi ao ambulatório e tirou o soro do homem impaciente.
— O médico não vem me dar alta?
— Assim que ele chegar.
— Isso aqui é uma bagunça — acusou o homem já levantando para sair. — Cadê a porra do médico?
Herberto teve que concordar. Estava fazendo trabalho que não era dele e não havia nenhum médico ou outro enfermeiro à vista.Onde é que está todo mundo?Ele pegou o celular e ligou para todos os colegas na lista de contatos. Ninguém o atendeu. Então, para evitar outra conversa desconfortável, o enfermeiro se escondeu da senhora na triagem e aproveitou a saída do último paciente para assistir televisão. No entanto, quando ele já havia aceitado que passaria a noite de braços cruzados, o celular tocou.
— Onde você está? — sussurrou Ana, do outro lado da linha.
— Onde eu estou? Onde está você? — disse ele, tentando não levantar a voz. — E cadê todo mundo?
— Na ala psiquiátrica. — respondeu ela, quase inaudível. — A gente precisou prender os pacientes. Está todo mundo aqui.
— Prender os pacientes?
— Apareceram dois daqueles que espumam pela boca. Eles infectaram três enfermeiros. Dois deles ficaram violentos. A outra se encolheu no canto e não levantou mesmo depois de levar um chute na cara. Isso está uma bagunça. Os funcionários estão todos aqui. Vem pra cá!
— Não. Manda você um médico vir aqui! Tem uma paciente que está esperando vai fazer hora.
— Você não está entendendo. — Nos anos que trabalharam juntos, os dois tiveram diversas situações urgentes, mas em nenhuma delas a voz da colega soava tão assustada, ainda que fosse notável o esforço dela de controlar o volume da voz. Voltando a sussurrar, ela continuou. — Os médicos se recusam a se aproximar dos pacientes, dois enfermeiros foram infectados e as enfermeiras que ficaram não têm força suficiente para segurar eles.
Herberto não entendia o que estava acontecendo, mas a urgência na voz de Ana era o bastante. Ele correu em direção a ala psiquiátrica o mais rápido que pôde e a encontrou mancando em sua direção. Atrás dela, um sofá bloqueava as portas que levam para a escadaria.
— Eu fechei o caminho para eles não me seguirem. — disse ela entre passos dolorosos, como quem lê mentes.
— O que está acontecendo? O que houve com seu pé?
Ana não estava para conversa. Apenas colocou os braços em volta do pescoço do colega, apoiando o peso nele para diminuir a dor de andar, e pediu companhia até o carro em frente ao hospital. Cada movimento denotava urgência e ela parecia querer dizer algo, mas, ignorando as perguntas de Herberto, ela se manteve em silêncio. Nada se ouvia. Apenas a respiração ofegante de Ana. O som só voltaria alguns minutos depois, quando eles passaram pela triagem onde a senhora ainda aguardava por um médico. Alguém parecia chutar as portas bloqueadas pelo sofá.
— Vai para casa e chama a polícia. — aconselhou Ana, com voz de ordem. — Eles estão se matando. A escada tá fechada, mas o elevador ainda está funcionando. A gente tem que ir agora!
Confusa, a senhora buscou em Herberto alguma explicação. As pernas, agora inchadas, já não balançavam mais. O enfermeiro não tinha a menor ideia do que deveria dizer e, muito menos, do que estava acontecendo. As batidas continuavam e cada chute era o badalar de um relógio que anunciava uma tragédia desconhecida enquanto os três perdiam tempo. Tudo que Herberto fez foi encarar de volta. Sem resposta, a paciente aceitou o conselho.
A senhora se levantou, rápida e orgulhosa, sob o protesto de suas pernas. Primeiro elas se recusaram a reconhecer que já tocavam o chão, mas logo se radicalizaram com um formigamento desesperador. Sem equilíbrio e com as pernas doloridas, ela aceitou, a contragosto, o apoio de Herberto. Ana, agitada, liderou o trio em fuga.
No estacionamento, a enfermeira apontou o carro para Herberto e apertou o passo. Ele queria acompanhar, mas a senhora protestou calada. Insistia para caminhar sozinha. Sem tempo de pensar, ele abandonou a paciente e apoiou a colega em sua fuga dolorosa e constante até o veículo.
A meio caminho do carro, do outro lado do longo pátio, Ana estancou os passos mancos com toda a pouca força que ainda tinha e forçou Herberto a parar. Logo adiante, recostado em um sedã prata ao lado do Peugeot, um homem com um curativo no braço balbuciava frases inaudíveis. A boca jorrava espuma.
— Vamos! — disse Herberto. Ana, no entanto, não se movia.
— Ele está infectado. — sussurrou ela.
O homem se virou para Herberto e Ana e a enfermeira estremeceu ao vê-lo caminhar em sua direção. Como quem se prepara para um ataque, ela vestiu a máscara cirúrgica que trazia pendurada no pescoço e empunhou um bisturi que trazia escondido na barra das calças. Herberto a encarou com olhos de juiz. Ela devolveu o olhar e agarrou seu braço quase tão forte quanto segurava a sua arma. Não funcionou. Derrotada, ela guardou o bisturi.
— Já encontrou a esposa? Ela está aqui? — perguntou Herberto, desatento à colega se afastando dos dois com passos lentos e calculados.
— Eu estou procurando é pelo médico que vai me dar alta! — ele disse enquanto saliva voava da boca. — É essa aí?
— O senhor está bem? — O enfermeiro tentou se aproximar, mas o homem o empurrou.
— Ela é médica? — perguntou o homem, empurrando-o mais uma vez.
Herberto levou um tempo até responder e o paciente se aproximou de seu rosto com os olhos espremidos entre as pálpebras e a boca entreaberta como se lhe faltasse o ar. O enfermeiro deu a negativa enquanto o homem se dirigiu para Ana. Por instinto, Herberto se colocou entre os dois e Ana fugiu para o carro.
— Onde estão os médicos? — disse o homem, contrariado.
— Você não parece bem. — disse Herberto. — A gente pode te levar para casa e…
— Você não é médico. — acusou ele, soltando um suspiro irritado sobre o rosto de Herberto antes de ignorá-lo e seguir caminho para o hospital. — Eu preciso de um médico.
— Não vá para o hospital. — gritou Herberto, limpando a saliva no rosto. — Não é seguro.
— Eu vou achar um médico! — rosnou o paciente. — Eu quero ir embora!
— Deixa ele, Beto! — gritou Ana, já no carro. — Eu não consigo dirigir com o meu pé desse jeito. A gente tem que ir. Agora!
O ruído de vidro quebrando ressoou pelo estacionamento. Com o barulho, Ana se encolheu abruptamente, assustada, e bateu o tornozelo no carro. Pelos olhos fechados, ela assistiu ao show de fogos de artifício em suas pálpebras e gritou por Herberto. O som vinha do hospital. Ela olhou pela janela e o colega estava encolhido a poucos passos do paciente.
Herberto olhou para cima, por entre os braços que levantara para se proteger dos cacos de vidro. O barulho vinha do segundo andar. Longe dele, mas logo acima da senhora das pernas inchadas. O enfermeiro gritou pela paciente. Ela nada fez. E nesse meio tempo, o primeiro homem caiu.
O corpo, por muito pouco, não acertou a velha, mas ela parecia petrificada. Ali ela ficou, sem mover um músculo, com os olhos vidrados e os lábios moles e úmidos. Uma pequena mancha escurecia o tecido rosado do vestido sobre o peito. Sobre ela, uma linha de baba desafiava a gravidade conectando o tecido à boca aberta.
O segundo corpo não caiu. Foi jogado. Herberto correu em sua direção. A altura não era o suficiente para matar alguém e o enfermeiro talvez pudesse prestar ajuda.Apesar dos olhos fixos no nada, os dois homens caídos ainda respiravam. Nenhum dos dois gritava ou exibia qualquer sinal de dor. Em suas bocas não havia espuma, mas eles salivavam o suficiente para molhar o concreto e o vidro sob eles.
— Herberto! — gritou Ana tentando correr em sua direção enquanto o tornozelo tentava convencê-la a voltar para o carro.
Ana alcançou Herberto, mas ele tinha toda a atenção voltada para o segundo andar do prédio. Os médicos e pacientes, com roupas rasgadas e sujas de sangue, gritavam e espalhavam a espuma de suas bocas para todos os lados. O mais corajoso entre eles, o Dr. Ivan, subiu a janela e se preparou para o pulo. Com essa visão e um puxão repentino de Ana, o enfermeiro desistiu dos pacientes e correu junto à colega para o carro, secando a boca com as costas da mão. Atrás deles, o homem de jaleco foi empurrado por rostos risonhos e barulhentos.
Ivan chegou a se levantar e a correr na direção de Herberto e Ana, mas eles já estavam longe. Mais rápido, o homem impaciente alcançou Ivan. Agarrando-o pelo jaleco branco, o homem lhe perguntou quando iria receber alta. Ivan, no entanto, respondeu com um soco, derrubando o paciente que, do chão, empunhou um caco de vidro e se levantou trôpego pelas costas do doutor. Este, por sua vez, comemorava o golpe bem dado junto à plateia da janela.
— Esse aí não serve. — justificou o paciente com um grito ao apunhalar Ivan pelas costas.
Ao ver o médico caído no chão, o homem voltou a caminhar em direção ao hospital em sua busca por quem lhe desse alta. Em frente a porta, a senhora ocupava a passagem com sua expressão vazia. Ele a derrubou com um empurrão e seguiu hospital adentro. Quase caiu por conta do passo mal calculado sobre o peito da velha petrificada. Para não deixar barato, ele a chutou na cabeça, fazendo o rosto dela se virar para o estacionamento. Apesar da distância, tanto Ana quanto Herberto tinham certeza de que não viram a menor expressão de dor. Tudo o que viram foi a baba e o sangue que escorriam pela boca dela, pintando de vermelho o piso do hospital.
— Sai com o carro! — pediu Ana.
Herberto, no entanto, estava ocupado assistindo Ivan se arrastar pelo chão com um pedaço de vidro preso em suas costas. O médico escalou os degraus em frente ao prédio, passando por cima do corpo da senhora como se esse fosse o último degrau a ser superado. Ana implorou, uma vez mais, para que fossem embora. E assim ele fez.A rua, escura e deserta, era um gatilho hipnótico que levava Herberto de volta à realidade. O carro cambaleava entre as faixas. Para ele, Ana reagira melhor a tudo o que houve no hospital e, por isso, ele tentava guardar para si mesmo o impacto daquela noite. Sinais vermelhos eram sugestões a serem ignoradas.
Ana, por sua vez, fingia ter a atenção ocupada com o tornozelo machucado enquanto buscava em Herberto por qualquer sinal da doença. Depois de assistir aos colegas saírem da frustração comum de tratar um paciente com uma condição desconhecida, para a raiva de um animal que rosna e espuma pela boca; era um alívio ver em Herberto nada além de uma leve palidez no rosto e suor frio na testa.
O enfermeiro estacionou o carro junto ao corpo do gato morto e ajudou Ana a descer e a atravessar a rua. Ao pegar a chave de casa, ele notou que o portão estava emperrado,de novo, e xingando a si mesmo por ainda não o ter consertado, Herberto chutou o muro e gritou por Guilherme, que os atendeu vestindo uma samba-canção.
— Você chegou cedo — disse ele, esfregando o rosto inchado. — Oi, Ana! O que aconteceu com você?
— Eu torci o tornozelo correndo — resumiu Ana, para a irritação de Herberto.É essa a história?
— Gui, todo mundo enlouqueceu. Os médicos, os funcionários, os pacientes… — Herberto não sabia como contar a história sem soar como quem perdeu a cabeça. Ele buscava no rosto do namorado algum indício de expressão que o ajudasse, mas Guilherme só o olhava. Não parecia escutar. — Eles espumavam!
— Eu vi isso na televisão — respondeu. — Um homem foi morto no ponto de ônibus no final aqui da rua. A vizinha do lado disse que quando os policiais chegaram o casal que atacou o tal lá do morto estavam espumando pela boca e rindo, mas que não resistiram à prisão — comentou enquanto entrava em casa. Depois de um longo bocejo, ele concluiu. — Loucura.
— A gente devia ligar para a polícia.
Concordando com Ana, o enfermeiro pegou o celular no bolso. Guilherme não parecia ter interesse na conversa com a polícia e apenas foi para o quarto depois de dar um beijo no namorado. Enquanto Guilherme se retirava, Ana encarou Herberto. O enfermeiro nada disse, só tratou da tarefa em mãos. Do outro lado da linha, atenderam ao telefone.
— Polícia Militar. Qual é a emergência?
— Teve um… um ataque ao hospital…
— Em Cascadura? — cortou a atendente.
— É — respondeu Herberto confuso com a pressa da mulher. — Eu…
— O senhor está dentro do hospital?
— Não, eu estou em casa. Acabei de sair…
— Fique dentro de casa. A polícia já está no local.
— O que disseram? — perguntou Ana.
— A polícia já está lá.
— O senhor precisa de mais alguma ajuda? Está ferido?
— Não. A minha colega, ela…
— Então fique em casa e não vá para o hospital.
— Que houve? — perguntou Ana vendo a confusão no rosto de Herberto.
— Ela mandou a gente não sair de casa.
— Ela desligou?
Não era preciso responder. Com a denúncia feita, Herberto podia cuidar do tornozelo de Ana. Foi até a cozinha e encheu um saco plástico de gelo. Lá, buscando por uma desculpa para evitar a conversa que os olhos de Ana prenunciavam, ele procurou por algo mais para fazer. Não encontrou. O maço de cigarro de Guilherme estava jogado sobre o balcão. Ele pegou o Camel e observou a caixa. “Você morre”, diziam as letras escuras e em caixa alta sobre a foto de uma mulher triste acariciando uma mulher morta.
— Eu não sabia que você fumava. — disse Ana apoiada na porta e equilibrando o corpo sobre o pé bom.
— Não fumo. — respondeu ele, jogando o maço de volta ao balcão.
— Guilherme está dormindo. Acho até que eu ouvi um ronco.
— Ele trabalha bastante.
— Ele parecia bem calmo.
— Pois é! — disse Herberto ao jogar o saco de gelo sobre a mesa. Ele inspirou profundamente e, controlando a voz, continuou. — Acha que ele pode ficar violento?
— Não. — respondeu ela, segurando o gelo no pé inchado e roxo. — Estou mais preocupada com a nossa contaminação. A gente não sabe como funciona.
— Depois do que vimos no hospital…
— A incubação é rápida.
— Se for o caso do Guilherme… — o enfermeiro tirou um tempo para engolir em seco e limpar a garganta. — O que podemos fazer?.
— Não sei.
Herberto foi até a geladeira pegar água e serviu dois copos que eles beberam em silêncio. Incomodado com a calmaria, Herberto ofereceu o sofá para Ana passar a noite. Ela agradeceu e voltou para a sala, se equilibrando nos móveis e eletrodomésticos no caminho. Sozinho na cozinha, Herberto não sabia se deveria dormir com o namorado e arriscar uma contaminação — dele ou sua — ou se deveria ir para a sala e se deixar cair em uma das poltronas próximas à Ana. Indeciso, sentou-se à mesa de jantar e adormeceu sobre os braços cruzados. Acordou com o cheiro de café que Guilherme preparava. Ana, sentada ao seu lado, comia pão francês.
— Ele parece bem. — sussurrou ela ao vê-lo abrir os olhos.
Herberto não estava completamente desperto quando finalmente compreendeu o que ela dizia e, ainda que a intenção fosse reconfortá-lo, o “ele parece bem” era como a prova de que o risco era real.Os que espumam pela boca não foi um sonho.E com o choque dessa constatação, ele acordou.
— Quer café? — perguntou Guilherme.
— Não. — respondeu ele, ainda enjoado, mas desperto o suficiente.
— Não é saudável passar a manhã toda sem comer. — insistiu Guilherme, parafraseando um dos discursos matinais prediletos do próprio Herberto, que aceitou o café com uma risada envergonhada.
— Ligaram do hospital. — disse Ana entre goles na caneca que Guilherme comprara para ela alguns anos antes. — Disseram que precisam de enfermeiros hoje. Muitos não apareceram para trabalhar.
— Quem ligou? — perguntou Herberto, que logo percebeu o absurdo da própria pergunta. — E os infectados?
— Ela não falou. — disse Ana repousando a caneca sobre a mesa.
— Você perguntou?
— Claro! — respondeu irritada.
— E o que ela falou?
— Ela disse para eu não acreditar em tudo o que me dizem.
— A gente estava lá!
— Eu sei! — disse Ana, ouvindo dele o que ela própria dissera ao telefone. — Quem ligou foi a Tânia do RH. Eu não acho que ela esteja bem. Ela soava infectada.
— Como assim?
— Gentil demais. — quis concluir. — Ela não é assim.
— Eu não vou. — disse ele, levantado o corpo dolorido.
— Eles estão demitindo quem não aparece para trabalhar. — ele não respondeu. — Alguém tem que parar eles. Quem mandou a Tânia me ligar? Essa pessoa pode saber como resolver essa… situação. A Tânia, por ela mesma, não me ligaria. Muito menos infectada. Você viu a paciente ontem. Ela nem se mexia.
Herberto encarou Ana e ela o encarou de volta. Por alguns segundos isso foi tudo o que fizeram até que ela terminou o café e se levantou. A colega passou por ele e entrou no banheiro, depois de perguntar se podia tomar banho. Ao sair, ela reclamou do uniforme sujo que vestia. Na cintura da calça, sobre a camisa, Herberto viu o bisturi.
— Se quiser carona para o hospital, me liga. — disse ela, abrindo a porta da sala. — Vou passar em casa. Dá tempo de você se arrumar.
— Você parece bem! — comentou. — Está até andando.
— Encontrei uns analgésicos no banheiro. — justificou. E, batendo a porta ao sair, completou. — Espero que não se importe.
Herberto se sentou no sofá, mas o corpo dolorido reclamava das almofadas moles demais. O ouvido zumbia contra o silêncio. Tudo o que se ouvia era Guilherme lavando a louça. O pé esquerdo no joelho direito e o pano de prato pendurado no ombro. Era como se o mundo lá fora não existisse.Nada a declarar sobre a briga, Gui?Ele se levantou para ajudar com a louça, mas mal entrou na cozinha e Guilherme já disse estar terminando e o mandou de volta para a sala. Indignado, Herberto ligou a televisão.
Na tela, um repórter cobria o trânsito. As ruas estavam engarrafadas, como sempre, mas algo fugia ao normal. Alguns carros tentavam forçar os outros a se mover colando na traseira do automóvel da frente. Eles aceleravam ruidosos. Os pneus cantavam e fumaça subia. O jornalista, com o microfone na mão e baba na boca, listava as ruas engarrafadas e dava dicas de caminhos alternativos. Com os cotovelos sobre os joelhos e os olhos vidrados, Herberto gritou por Guilherme.
— Você está vendo isso? — perguntou Herberto. Guilherme abandonou a louça por lavar e foi para a sala. — Está em todo lugar!
— O quê?
— A raiva! — gritou. — Você não vê?
— Ele parece calmo.
— Ele está babando!
— É verdade! — disse Guilherme, com um riso contido. — Nojento.
— Você está bem? — perguntou Herberto se aproximando do namorado. — Você se sente diferente? Você sente alguma coisa?
— Não — respondeu.
Na televisão, os motoristas inconformados com o trânsito parado desceram dos carros e formaram uma massa de revolta à tudo ao redor. Alguns, com as mãos nuas, esmurravam os vidros dos automóveis que bloqueavam a sua passagem. Outros chutavam os próprios carros e gritavam ofensas de bocas cheias de espuma. Um deles, com as mãos sangrando por conta das porradas no para-brisa, andou em direção à câmera e gritou.
— Isso tem que acabar!
Insatisfeito com a mensagem, outro homem arrancou o microfone das mãos do jornalista e acusou a violência do agressor de automóveis com o dedo em riste e um soco na orelha. Espuma voava a cada rugido de palavra de ordem, mas o recado não estava claro o suficiente. Ele teve ainda que derrubar o repórter com um chute no estômago. Como quem pontua uma frase. O jornalista, por sua vez, nunca tirou os olhos da câmera e descreveu toda a cena do chão, mas logo ela também caiu e a transmissão terminou. Do outro lado da tela, Guilherme assistia a tudo com olhos mortos e baba na boca.
Herberto tentou ligar para Ana, mas ninguém atendeu. Ele queria levar Guilherme ao hospital, mas não tinha carro. Ônibus estava fora de questão.É dar chance demais para o azar.O enfermeiro, então, chamou um Uber pelo celular e socou as paredes por não ter nada para fazer enquanto esperava pelo motorista. Umas duas ou três vezes, ele procurou em seu celular por pistas na foto, no nome e na placa do carro que pudessem indicar qualquer alteração comportamental, fosse baba ou espuma, mas nada encontrou. Era inútil. Teria que esperar.
Quando o Uber chegou, Guilherme, obediente e apático, entrou no carro sob os olhos frenéticos e apreensivos de Herberto. O motorista se virou para os dois e os cumprimentou. De sua boca, a baba escorria pelo queixo, pescoço e peito do homem. O tecido fino da camisa, molhado e transparente, deixava entrever a tatuagem, preta e geométrica, no peito escuro do motorista que lhes oferecia bala.
— Não, obrigado. — respondeu Herberto impaciente. — Eu estou com um pouco de pressa…
— É pra já! — respondeu o motorista solícito.
Apesar da resposta, o motorista dirigiu com a cautela e paciência de quem passeia. Os sinais amarelos eram como sinais vermelhos e todos os outros motoristas pareciam ter a preferência. Um deles, inclusive, incomodado com um sinal especialmente generoso com as pessoas que atravessavam a rua, enfiou o carro entre as duas filas que se formaram de frente para a faixa de pedestres e furou o sinal vermelho depois de esfregar a lataria nos veículos dos motoristas mais pacientes. O assobio doloroso e metálico chegou a incomodar o homem que babava no banco em frente ao de Herberto.
— Pra que isso?
Em frente ao hospital, Herberto e Guilherme assistiram ao carro fazendo o retorno com a lateral arranhada de farol a farol. Do outro lado, um carro vinha à toda e se chocou contra a lateral, já danificada, do Uber. Quatro homens desceram do carro com a frente fundida na lateral do outro. Eles tinham espuma nas bocas e pareciam decididos a tirar satisfação com o motorista. Este, no entanto, sangrava com a testa colada no vidro fechado.
Guilherme via tudo aquilo como quem assiste à uma novela que parece nunca chegar em lugar nenhum. Herberto, por sua vez, tinha os cotovelos para o céu e os dedos embrenhados no cabelo.
— O trânsito anda muito perigoso ultimamente — disse Guilherme para o namorado, com a mão em suas costas.
— Tem razão. — respondeu Herberto, chocado com a própria resposta. Ele empurrou o cabelo em direção a nuca e beliscou os lábios secos e reconfortantes. Dando graças, decidiu. — Vamos para o hospital.
Com a mão direita, Herberto ligava para Ana e, com a esquerda, puxava Guilherme. Ninguém atendia. Do outro lado da porta de vidro do hospital, ele viu a recepcionista com o cabelo apertado em um coque que parecia esticar todo o rosto que, ainda assim, parecia flácido e caído. Tudo nele apontava o chão: os olhos pesados, os lábios moles e a baba transparente e brilhante.
Os pacientes pareciam animais. Um deles carregava uma televisão sobre a cabeça, outros estavam em pé nas cadeiras, uma minoria se encolhia pelos cantos esperando a vez de serem chutados pelos cinco rapazes que ainda não haviam cansado de bater no corpo de uma senhora que enchia o cômodo com cheiro de podre. Havia, ainda, aqueles que babavam e sangravam esperando pelo atendimento médico.
Herberto entrou no hospital e correu para o corredor da triagem segurando com força o pulso de Guilherme que tropeçava ao seu lado. O enfermeiro ligou uma vez mais para Ana enquanto procurava pela colega em salas ocupadas por corpos tingidos de sangue. Em uma delas, um médico com as costas vermelhas chutava uma mulher de olhos vazios que pareciam fitar Herberto.
— Os pacientes devem esperar na recepção até serem chamados. — Comentou Ivan ao se voltar para Herberto e Guilherme e correr na direção dos dois.
Com um chute no estômago, Herberto derrubou o colega e tentou fugir da sala. Não era capaz. Ao ver Ivan quase conseguir se colocar sobre as duas pernas novamente, o enfermeiro o chutou mais uma vez e empurrou o namorado para fora, fechando a porta atrás dele. Herberto pisou no colega e arrancou o pedaço de vidro preso em suas costas. O médico rugiu, mas já não resistia. Com cuidado, Herberto tirou o pé de cima de Ivan e se posicionou do outro lado da sala. Queria ver o rosto do colega. Já não havia espuma. Apenas baba.
Lá fora, alguém parecia ter encontrado Guilherme. Eles gritavam ofensas e rugiam para que ele voltasse para a recepção. Herberto abriu a porta e puxou Guilherme para dentro. O coração estava à mil e suas mãos suavam. Ele gritou com Guilherme querendo gritar consigo mesmo. O namorado, no entanto, não parecia se importar.
— Não é melhor esperar lá fora, Beto? — perguntou Guilherme.
Herberto fez um curativo nas costas do colega e o ajudou a se levantar. Uma das funcionárias batia com força na porta. Eles tinham que sair. Beto segurou Guilherme pelas mãos e empurrou a porta. A funcionária sentiu a porrada e saiu do caminho, abrindo espaço para Herberto e Guilherme fugirem.
A mulher ainda não havia se dado por vencida e atirou uma vassoura que carregava consigo nas pernas de Herberto. O enfermeiro caiu no chão, derrubando o namorado. Uma dezena de funcionários e médicos os alcançaram. Com socos, arranhões, mordidas e puxões, eles tentavam levar Herberto e Guilherme de volta para a recepção. Um dos médicos chegou a dar um soco na boca de Guilherme, abrindo o lábio para um jorro lento e escuro.
Logo à frente, a porta para a escadaria estava entreaberta e, agarrado ao namorado, Herberto se segurou na maçaneta e puxou o próprio corpo. Ainda se apoiando na porta, ele puxou Guilherme para fora da massa que o segurava e fechou a porta. Do outro lado, ele mantinha a passagem fechada com dificuldade. Nem mesmo todo o peso de seu corpo era capaz de impedir os chutes e socos de chacoalhar a porta. As dores da surra que levara quase não eram sentidas, apenas as pernas bambas que a cada segundo ameaçavam abandoná-lo à própria sorte eram dignas de sua atenção.
Quando a dor começou a se fazer sentir, as pernas estabilizaram junto com o fôlego. Herberto secou a boca para se preparar para a corrida escada acima e ignorou a espuma em sua mão. Quando soltasse a porta, eles viriam atrás dele. Ele tinha que correr.
— Quando eu disser, a gente vai subir a escada o mais rápido possível e fechar a porta do próximo andar. — disse para Guilherme. — Escutou?
Enquanto se preparava para a corrida, Herberto olhou pela janela de plástico da porta e, ainda que ela estivesse arranhada e quase opaca de poeira, ele viu um dos médicos tentar atacá-lo com um bisturi pela janela. Herberto virou a cabeça de volta para a escada, quase se desequilibrando. Uma fresta se abriu e dedos agitados tentavam inutilmente puxar a camisa.Esse não é o dela,pensou.É um hospital. O que não falta é bisturi.Era inútil. A imagem de um infectado atacando Ana com o bisturi que ela própria roubara já estava marcado em sua mente. Ele tinha que correr.
— Agora!
O enfermeiro correu escada acima puxando Guilherme pelo braço e abrindo a porta atrás deles. Um médico e uma enfermeira caíram no chão e atrasaram a perseguição dos outros que vinham logo atrás. No segundo andar, Herberto estava com as costas coladas na segunda porta. O coração esmurrava o peito e o suor escorria pela testa para arder os olhos. Ainda assim, ria. Eles estavam vivos. Era uma vitória.
Preso à porta, Herberto pediu a Guilherme que lhe trouxesse algo para trancá-la. O namorado lhe trouxe um rodo e Herberto o colocou nos puxadores. Atrasando a passagem da massa, mas não por muito tempo. Incapaz de subir ou descer, Herberto torceu pela sorte de encontrar a colega naquele andar.
— Agora a gente só tem que achar a Ana. Eles ligaram para ela. Eles não a chamariam para nada, certo? Alguém deve ter achado uma cura, um jeito de te fazer ficar bem de novo. Alguma coisa…
— Não é ela ali? — Guilherme apontou.
No fim do corredor, um corpo estava abandonado de barriga para baixo e com a cabeça sobre uma enorme poça escura. Herberto se aproximou tentando ignorar o que o uniforme de enfermeira e a cor e corte do cabelo já lhe indicavam. Ao virar o rosto dela para si, ele encontrou um bisturi afundado no olho esquerdo da enfermeira. Era Ana.
Herberto sentou ao lado do corpo e colocou a cabeça da colega em seu colo. Guilherme caminhou até o namorado e se juntou a ele no chão. O enfermeiro olhava para a outra ponta do corredor, que dava para uma janela pela qual, dali, só era possível ver o céu azul e alguns galhos de uma árvore. Em sua mão direita, o sangue de Ana o incomodava. Enfurecia. Em sua boca, um pouco de espuma voltava a escapar.
Guilherme deitou a cabeça no ombro de Herberto. Ele estremeceu. Queria gritar, mas o namorado parecia calmo. Não queria atrapalhar. Herberto, então, cuspiu a espuma e deixou um pouco de baba escorrer pelo queixo. Não era incômodo, nem vergonhoso. Apenas era. Como se sempre tivesse sido. Ainda assim, secou a boca com a mão limpa e encarou o líquido viscoso e transparente.
— Guilherme, você está de folga hoje, né? — Ele disse limpando a mão com sangue na própria calça e deixando um pouco de baba escorrer de novo pelo queixo. Quando o namorado respondeu, a baba já havia alcançado a camisa.
— Estou. — respondeu sorrindo como se esperasse por aquela pergunta o dia todo. — Quer ir ao cinema?
Os dois levantaram e foram até a escada. Ao abrir a porta, uma dezena de colegas e estranhos os atacaram até perder o interesse. Inchados e sangrentos, eles levantaram do chão com os rostos vazios e caminharam devagar até a rua. Lá, chamaram um Uber para o shopping mais próximo.Domingo é dia de descanso!
Merci pour la lecture!
Nous pouvons garder Inkspired gratuitement en affichant des annonces à nos visiteurs. S’il vous plaît, soutenez-nous en ajoutant ou en désactivant AdBlocker.
Après l’avoir fait, veuillez recharger le site Web pour continuer à utiliser Inkspired normalement.