Sempre que chove forte aqui no sul de Minas, geralmente à noite, corro para conferir se a calha está ou não transbordando, se as mantas do canil estão se molhando, e se a própria cadela de estimação está protegida do aguaceiro.
Não durmo bem pelo martelar dos pingos por sobre a calha, e pela apreensão em meio ao ribombar dos trovões.
Nessa hora me levanto e vou até a frente da casa, a fim de contemplar o fluxo volumoso da enxurrada a descer a rua inclinada... agradeço por estar ali, rodeado por muita terra, capaz de absorver o temporal.
Problemas muito pequenos...
Mas todo início de ano é assim: após as festividades e desejos de um ano melhor, vêm as tragédias em profusão, associadas às chuvas de verão.
Tenho parentes que residem em metrópoles de puro concreto, com estradas e ruas ladeadas por muros de contenção, e repletas de construções que desafiam a ordem natural: "água morro abaixo ... ninguém segura".
Meu pensamento então voa e se preocupa: quantos àquela mesma hora não estarão encurralados pelas enchentes, deslizamentos, soterramentos. Quantos não perderão a obra de toda uma existência, ou até mesmo a própria vida, em meio à lama, que se não vem da barragem, vem da fúria da natureza, tentando libertar suas águas trancafiadas em canais de tijolo e concreto.
Os mais frágeis, crianças, idosos e animais domésticos, é que pagam pela ausência de planejamento urbano. Pela falta de cultura ambiental e de respeito à natureza, que não fomos ensinados a cultivar. A mortalha de lama enterra os sonhos e a esperança.
Este ano porém, a torrente atingiu em cheio áreas urbanas nobres e centrais, testando a resiliência muito mais frágil de quem não está acostumado a sofrer com as intempéries.
Devemos aprender com isso: o problema é de todos. Não adianta sufocar os leitos de nossos córregos, e abrir mais espaço para centros comerciais e automóveis. Não adianta ter carro importado e desfilar perante a miséria alheia. Corremos o risco de não poder descer, e até mesmo o de ser levado pela enxurrada.
Agora é limpar a lama, enterrar os mortos e se preparar para o carnaval e o reinicio do futebol.
Afinal o povo não é "obrigado a só sofrer", segundo o que disse recentemente um político...
Obs; escrevi este texto em fevereiro de 2020, durante a tragédia das chuvas de verão na cidade de Belo Horizonte. Mal sabia eu porém, o que ainda estávamos por enfrentar, com esta terrível pandemia, a qual iniciou-se um mês depois...
Merci pour la lecture!
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