(esta é uma fanfic baseada na novela "Perfume Cadavérico", cuja primeira parte consta neste site.)
Para quê preocuparmo-nos com a morte?
A vida tem tantos problemas que temos
de resolver primeiro.
estou Confúcio
Stairway to Heaven tocava nos autofalantes arredondados no canto superior da sala. Mais uma vez a música como a grande e única companheira do homem naquele ambiente mórbido. Uma música que trazia algo especial, uma memória.
E também uma ironia.
Albert passou pela pesada porta da sala de necropsia dirigindo-se ao laboratório. Tinha uma dúvida e precisava consultar alguns papéis, o som da canção do Led Zepelin ficando para trás como a lembrança de um tempo feliz. O homem continuou a música num canto qualquer na mente do qual nada além daquela canção tinha lugar. Olhou as escadas que levavam ao pavimento inferior. Sorriu e meneou a cabeça com a ironia da vida.
Solidão. Às vezes pensava sobre este aspecto de seu trabalho. Quase sempre ele gostava disso. Quando se tem mais de meio século de vida, as pessoas parecem repetição de filmes antigos que um dia foram interessantes, mas agora o máximo que podem conseguir é serem clássicos.
Clássico é algo velho que perdeu a capacidade de nos surpreender, mas nós respeitamos porque achamos digno de certa reverência. O homem se olhou no espelho do laboratório e não gostou do que viu. O queixo quadrado, os cabelos grisalhos, a aparência cansada e... os demônios... daqueles que cada um cuida do seu, ali, escondidinhos por detrás daqueles olhos. “Eu sei coisas sobre você, Albert...” – sussurrou aquela vozinha desgraçada que sempre estava lá; aquela voz que ele nunca conseguiria calar. O espelho nunca mentia. Fosse ele quem fosse, o espelho sempre diria a verdade.
O silêncio gélido que gritava entre as paredes brancas do local foi subitamente rompido pelo ranger de uma porta. E o toc toc toc dos calçados de alguém. Albert imediatamente se recompôs e saiu da frente do espelho. Gostou de ser salvo do pântano de seus pensamentos, quase se afogara ali, como o garotinho daquela lagoa, naquele caso que ele nunca esqueceu. Ele foi até as gavetas, pegou os papéis e conferiu as informações de que necessitava. O som dos passos foi gradativamente diminuindo e então ele se deu conta do perigo que aquilo representava. “A sala de necropsia... a mesa 8!” – precisava se apressar. Aquele era um problema dele, cedo ou tarde teria que enfrentar. Pior que isto, era se outra pessoa enfrentasse.
Correu até a porta do laboratório e olhou de um lado e de outro. Um vento frio lhe percorreu a nunca e os braços, como uma assombração. Não era definitivamente nada sobrenatural, ele sabia o que era e isto não era bom.
Estava sozinho. E o branco gelo do corredor pareceu até sorrir sadicamente dos segredos do homem.
Voltou para a sala de necropsia. Se você tem um fosso no quintal dos fundos da sua casa de onde você sabe que algo terrível sai toda madrugada, é melhor que você mesmo mantenha a guarda no local.
Se não todos vão saber do seu fosso. E dos cadáveres que você guarda lá.
***
O sempre prestativo jovem Breno Marques é um dos maiores exemplos de que bondade não é garantia de nada nesta vida. Um ringue, é isto que é a vida. “Fique de guarda”, diria o pai. Mas ele sempre ignorou. Achou que sorrisos ganhavam a luta da vida.
Naquele dia acordou cedo, pegaria no necrotério no turno da tarde para a noite, tirando o serviço do colega que teria uma entrevista importante – “Temos que ajudar uns aos outros a saírem daquela lama fedida de emprego! Tomara que o cara consiga”. Ele nunca teria aquela resposta.
Próximo dali, um homem velho com as costas cheia de dores e segredos desceu do ônibus, o coração carregado de mágoas e uma necessidade muito grande de ver Breno. Ele sabia o quanto precisava do rapaz.
Atravessou a rua quase sendo atropelado pela Palio azul, recebeu os xingamentos do motorista e ignorou a cena. Não havia espaço para o mundo ao redor, quando o interior gritava tão alto. Era a primeira vez naquele bairro, mas sabia exatamente onde o jovem Breno morava sozinho, longe da família e, apesar de muito querido pela vizinhança, ainda assim uma pessoa irremediavelmente solitária.
Breno saía do banho e se dirigia para o quarto quando a campainha tocou. Ele franziu o cenho, estranhando aquilo. Apesar de querido por todos, ninguém o visitava e ele até gostava disso. Passou pela porta da sala e atravessou o pequeno quintal de chão cheio de limo e ervas daninhas e chegou ao portão. Estranhou a visita:
- Albert? – inquiriu sobressaltado.
O homem não respondeu, parecia doente ou tomado por algum tipo de desespero. Breno abriu a porta e convidou o velho a entrar.
Algumas horas depois a polícia chegaria ao local. Um homem idoso e doente jazia no chão da sala daquela casa, o corpo murcho como uma uva passa, a carne do corpo transformada em água formando uma grande poça no piso verde.
O dono da casa, desapareceu desde então.
***
Não estava mais dando tão certo. E Albert sabia disso. Era como se com o decorrer do tempo o remédio fosse perdendo efeito, necessitando de doses cada vez maiores.
E a doença se tornando mais grave, mais voraz. Implacável em lhe devorar o corpo e a mente.
Ele voltou para a sala de necropsia. Agora não havia mais música, mas lá estava a caneta, outra vez, erguendo-se sobre o papel como um cadáver se levantando por debaixo do lençol e de repente mostrando sua face cadavérica para quem ainda dá o azar de estar vivo ali. Estava acontecendo de novo. Estava se tornando cada vez mais difícil manter os pés firmes no chão. A alma estava cada vez mais tênue no mundo, facilmente se dispersando no ambiente como gás fugindo de um balão. E agora ele não sabia mais onde olhar, sentia-se um polvo, havia vários pontos de vista, como se fosse mais de uma pessoa ao mesmo tempo.
Estava em pé, no meio da grande porta rangente da sala de necropsia, olhando as fileiras de corpos de um lado e de outro, quase todas as histórias contadas por eles lhe sobrevindo à mente como numa avalanche de possibilidades humanas bizarras.
Estava sentado, diante da mesinha, escrevendo as Guias de Encaminhamento de Cadáveres, anotando informações pontuais, frias e mecânicas, o mesmo trabalho que vem fazendo nas últimas três décadas.
Estava lá no fundo da sala... Diante do cadáver da mesa 8. O perfume ameaçando afogar a sanidade do homem. Ele tirou os olhos dali e virou na direção da porta. Teve a impressão de algo ter se movido sobre a mesa. E a lembrança de alguém pareceu uma mão apertando seu pescoço e o impedindo de respirar. Não olhou, saiu dali. Escolheu estar sentado na cadeira, escrevendo as sempre frias e seguras GECs.
Sumiu da porta, sumiu da mesa 8.
Mas não escreveu nenhuma GEC. “Não está mais funcionando e você será devorado pelo espelho”, dizia os garranchos tortos e intensos, que quase rasgavam o papel. Não conseguia controlar mais nada, nem o corpo, nem o espírito, que parecia querer de vez dissipar-se daquele corpo.
O susto fez Albert se jogar para trás, a cadeira desabando sobre o chão. Na sua descida ao inferno da insanidade, tentou se agarrar na mesa mais próxima, descobrindo o cadáver que sob o lençol se escondia do mundo. Ele achou ter visto a mão ossuda se estender para cumprimenta-lo. Bateu com a cabeça no ferro da cama, fechou os olhos. E buscou sanidade na escuridão.
Mas lá, encontrou outra coisa. Encontrou alguém.
***
Na porta da frente do necrotério uma moto parou e um rapaz retirou um lanche de dentro da mala. A cara de cansado de depois de um dia inteiro rodando por aquela cidade cheia de buracos e sujeira, ele olhou o lugar e pensou que um dia talvez ali fosse o ponto final de sua vida. Mais uma coisa ruim de estar vivo: ainda ter que morrer – pensou.
Buscando livrar-se daquele lugar tétrico o mais rápido possível, o rapaz foi até a guarita do vigilante e entregou o pacote. “O nome tá na nota, alguém daí pediu. Pede pra dar um joínha pra mim no aplicativo, pode ser?”
O vigilante apenas assentiu com a cabeça, não gostava muito de falar. Pegou a sacola de papelão, olhou o nome na nota e pôs-se a subir as escadarias do prédio, assobiando “O Mundo é um Moinho”, uma canção antiga do seu tempo de menino, se deliciando com o modo como ela ecoava no silêncio do local, preenchendo todo o vazio com o som da infância.
No último degrau que desembocava no interminável corredor que conduzia à sala de necropsia, o homem ainda tinha fôlego para continuar assoviando, mas não tinha vontade. Estava mal humorado. Era uma pessoa de idade avançada, não devia subir até ali para levar aquele lanche. “Mais uma das pequenas injustiças cotidianas, mais um desgraçado me explorando”. Dessa vez, contudo, ele não deixaria barato. Seria assertivo e diria a verdade.
Ele caminhou até o fim do corredor e empurrou a porta. Do outro lado, apenas uma grande bagunça, mesas e cadeiras tombadas, sacos mortuários pelo chão e papeis de GECs espalhados por toda parte. Das quatro lâmpadas que iluminavam o recinto, três estava queimadas – uma delas com o fio exposto e faiscando – e a quarta piscava frenética como alguém à beira de um surto. A quarta era a luz sobre a mesa 8. E alguma coisa fazia muito barulho por detrás do biombo, como se uma criatura buscasse se libertar de uma jaula. O vigilante estranhou, mas caminhou até lá.
- Senhor Albert!
E o ruído estancou.
O homem afastou a cortina que separava sua rotina monótona da cena que o roubaria o sono por quase uma semana. Albert estava jogado sobre o cadáver da mesa 8, o saco que envolvia o corpo rasgado de modo furioso, o instrumento cortante nas mãos pingando a substância viscosa que um dia foi um ser humano. Ele remexia o conteúdo, como que cavando em busca de algo que lhe pertencesse. Subitamente parou e olhou o homem que lhe interrompera a busca insana, os olhos côvados, o cabelo eriçado e a boca babando alguma coisa que o vigilante torceu para que fosse apenas a baba de um homem insano.
- O que é isso, Seu Albert? – perguntou o homem assustado.
E da escuridão daquela boca uma voz vinda de outra dimensão que não era a dos corpos que perecem em necrotérios, respondeu com ódio:
- Meu nome é Breno Marques. E eu quero meu corpo de volta.
Merci pour la lecture!
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