maxrocha Max Rocha

Como você reagiria à solidão infinita e massacrante em solo lunar? Embarque nesta aventura cósmica. Se tiver coragem...


Histoire courte Tout public.

#corrida-espacial #tecnologia #potências-espaciais #solidão #abandono
Histoire courte
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LUNAÇÃO



Um dia aqui na Lua equivale a duas semanas aí na Terra, assim como uma noite. Há que se aproveitar bem a luminosidade, quando presente, pois no período de escuridão e frio as baterias trabalham a todo vapor. A vantagem é ter aprendido o uso consciente da energia, sem a qual não haveria como se manter o sistema de suporte de vida, controle térmico e geração de oxigênio.


Saibam os senhores: a temperatura lá fora passa de 100 graus negativos até mais de 100 positivos durante o longo ciclo dia-noite. Portanto, as baterias precisam estar plenamente carregadas, até mesmo para simular um campo magnético. Caso contrário eu não passaria de um ovo frito.


De qualquer forma, como estou sozinho por estas crateras lunares há cerca de 2 anos terrestres, não preciso conversar em voz alta nem gastar demandas metabólicas com discussões inúteis. Quanto ao silêncio... ah o silêncio... este é brutal!


Ressalto ainda o fato da gravidade ser menor, permitindo-me atenuar o peso de minhas vestimentas espaciais com uma movimentação mais fluida, em saltos, como um canguru cósmico. Isso quando saio a passeio pelas planícies acinzentadas. Ainda consigo me emocionar com o nascer da Terra e sua coloração azulada, além de ficar maravilhado com os frequentes meteoros a cortar os céus daqui.


Quando estou dentro da estação espacial, sem o capacete, ainda tenho náuseas com o cheiro repugnante da poeira lunar aderida às botas e ao traje. Um misto de ovo podre com um odor rançoso. Assim que me dispo a cada retorno o olfato me castiga, mas aos poucos vai se tornando insensível. É isso mesmo: sou como um rato entocado aqui, neste ambiente assemelhado a um esgoto seco, privado de água e eterno em sua existência.


Como estou no chamado “lado escuro da Lua”, apenas sou capaz de me comunicar com a base do CEIA (Consórcio Espacial Interamericano) a cada período de 29 dias (daí de vocês), através de um convênio com um rover chinês e sua base, estacionados a quilômetros daqui, os quais retransmitem meu sinal a outra sonda oriental em órbita, e desta para os satélites interamericanos no lado conhecido de nosso corpo celeste coirmão. Foi a licença que conseguimos, sob a condição de não poder me aproximar da tecnologia vermelha e seus segredos.


O Consórcio é formado por nações das Américas Central e do Sul apenas. Estamos muito atrás das potências espaciais e temos poucos recursos financeiros. Tipo aquelas corridas antigas de Fórmula 1 lembram-se? Algumas equipes menores corriam teimosamente, mais para compor o cenário. Algumas de nossas unidades federativas, porém tem elevados recursos naturais úteis à produção de baterias, o que nos deu uma chance de participar, ainda que como coadjuvantes à corrida espacial.


Estas condições de submissão e escassos recursos quase fizeram por abortar a missão, mas conseguimos de última hora um financiamento a perder de vista do FEM (Fundo Exploratório Mundial), que diz ter como objetivo maior o estímulo à investigação de vida e recursos geofísicos espaciais, em que pesem minhas dúvidas sobre o que de fato visam explorar...


Fui enviado aqui em missão solitária, pois o CEIA não dispunha de orçamento para mais um tripulante. Minha missão seria explorar algumas crateras mais profundas próximas daqui, chamadas de “buracos de lava”, as quais poderiam abrigar humanos e os proteger das condições adversas de radiação e extremos de temperatura. Infelizmente nosso veículo de exploração lunar que seria enviado numa segunda missão não chegou.


Me parece que algumas empresas fornecedoras de componentes eletrônicos e peças abandonaram o consórcio e não cumpriram seus acordos. A Ford, Mercedes e a Geely foram as primeiras a abandonar o barco.


Desde então o objetivo científico da missão passou a ser o “estudo das reações humanas ao isolamento prolongado e condições meteorológicas adversas”. Envio meus relatórios a cada ciclo de 29 dias não lunares, correspondente aí no céu de vocês leitores ao intervalo entre duas Luas novas, também chamado LUNAÇÃO.


Me chamo Mello. Major Mello. Sou piloto e administrador de sistemas operacionais do CEIA. É minha primeira missão. Dependo da colaboração das agências espaciais internacionais para ser resgatado e retornar ao nosso pálido globo azul. Meu sonho é me inscrever como astronauta voluntário à exploração de exoplanetas. Estamos no ano terrestre de 2046. Tenho 25 anos e sou inexperiente, mas os mais graduados se recusaram a tomar parte nesse empreendimento, considerado de risco por possíveis falhas de logística.


A história é feita de aventuras e cobaias nada inocentes. Me sinto como os primeiros navegadores náuticos lançados ao mar desconhecido, sem certeza da chegada e muito menos da volta. A maioria pereceu, mas não estaríamos aqui hoje, sem seus grandes feitos, movidos por coragem e estupidez.


Amo a Lua e o espaço. Mas confesso me sentir meio abandonado, a conversar com as rochas lunares. Às vezes tenho a sensação de visões e de estar sendo observado, mas admito tudo ser fruto de minha mente muito privilegiada, submetida a condições de ociosidade. O lado bom é poder estar imune aos vírus disseminados no globo terrestre e à sordidez humana.


Gosto de estar só...





Texto originalmente publicado no blog FC BASE LUNAR.


baselunar8.blogspot.com

24 Février 2021 14:24:40 5 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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La fin

A propos de l’auteur

Max Rocha Médico e escritor amador, a procurar nas letras um alento para o cotidiano. Especialização na área do envelhecimento, mas com contato frequente com diversas faixas etárias, familiar e profissionalmente, fato inspirador de diferentes motivações literárias. Interesso-me por ficção histórica e científica, suspense, misticismo e mistério com um toque de humor. Às vezes enveredo pelo tom crítico e motivacional. Escrevo ouvindo música instrumental relacionada com o tema no Spotify.

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Wesley Deniel Wesley Deniel
Excelente, amigo ! Sucinto, imersivo e muito bem escrito. Faz realmente pararmos para pensar no que deve ser o isolamento total em um ambiente assim. Gosto muito do tema, mais ainda se houver horror, como nos games "Alien Isolation" ou a trilogia "Dead Space"... Parabéns por mais um ótimo conto !
March 11, 2021, 08:25

  • Max Rocha Max Rocha
    Obrigado Wesley. A solidão talvez seja o temor maior... April 07, 2021, 02:05
Afonso Luiz Pereira Afonso Luiz Pereira
A propósito, a estreia do primeiro conto exclusivo para o nosso blogue de FC. Que Legal! Olha, sobre o teu jeito de escrever não há muito o que se falar porque o amigo já sabe a minha opinião sobre o assunto, não vou chover no molhado, mas para quem ler este comentário fica aí a informação de que Max sempre tem muito cuidado com cada cria que sai da sua imaginação, principalmente no que se refere ao cuidado com revisões, pois ele gosta sempre de apresentar o seu melhor.
February 25, 2021, 00:33

  • Max Rocha Max Rocha
    Valeu Afonso. Sua presença sempre me alegra. Fico muito sozinho aqui na Lua... April 07, 2021, 02:06
Afonso Luiz Pereira Afonso Luiz Pereira
Gostei demais do teu conto, como já te disse em off, pois me chamou a atenção à solidão que se exprimiu da narrativa do protagonista, como se ele estivesse isolado numa ilha distante (o lado escuro da lua, o que é pior ainda), escrevendo uma carta para colocar na garrafa. Sua experiência solitária naquele mundo silencioso é o destaque deste texto. Parabéns, meu bom.
February 25, 2021, 00:31
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