— Querida, acorde. — uma voz soou perto.
A recém feita ciborgue, Valentina, então despertou.
Confusa, Valentina olhou para si mesma, tentando entender a situação em que se encontrava.
Olhou para si mesma, com uma vaga consciência que era um ser do sexo feminino. Seus membros eram brancos e longos, fios aparecendo em alguns lugares e em sua cabeça não havia cabelo.
Ao olhar na direção de onde a voz soou, Valentina viu uma mulher. De alguma forma, sabia que esse ser era sua Mãe e o homem ao seu lado, seu Pai. O que quer que essas palavras quisessem dizer.
No ambiente, Valentina ainda viu um outro homem. Da mesma forma que soube que seu nome era Valentina e o casal no quarto, seus Pais, a ciborgue estranhamente sabia que o homem era Guilherme Ferreira, famoso cientista brasileiro formado em robótica e inteligência artificial.
Esse homem era o responsável por seu novo corpo.
Mas não sabia por que precisava de um novo corpo.
— Valentina. — disse a mulher. — Querida, sabe quem nós somos? Quem você é?
A ciborgue acenou afirmativamente. Acabara de descobrir essas coisas alguns minutos atrás.
Os olhos da mulher, de repente, ficaram brilhantes e um líquido transparente começou a escorrer pelo seu rosto. O homem ao seu lado rapidamente passou os braços ao seu redor.
Valentina olhou para o homem cientista em busca de respostas.
O homem olhou da ciborgue para a família, agitado.
Ele avançou até sentar na cama ao lado de Valentina e começou a falar com uma voz lenta e suave.
— Senhor e senhora Mendonça, como podem ver, Valentina está perfeitamente bem. Como eu disse, o transplante do seu cérebro para o corpo artificial foi concluído com perfeição.
— O senhor realmente conseguiu, salvou nossa bebe e vai salvar a todos nós. — o homem Pai falou, gaguejando.
— Não seja assim, não faço mais que minha obrigação para com a pátria. — o cientista se levantou e pôs uma mão no braço do Pai.
O Pai se vira para ele, com um braço sobre o ombro da mãe.
— Então, homem? Quando Bianca e eu poderemos fazer o processo de mudança de corpo? — o homem pergunta.
— Bem... — o cientista alonga a resposta. — Você sabe que o presidente ainda tem que tomar algumas decisões referentes a todo o processo e está decidindo como proceder com as mudanças de corpos, afinal são milhões de brasileiros e..
— Deixe disso, homem. Somos Bianca e Jonathan Mendonça, somos as pessoas mais ricas do país, você com certeza pode nos colocar no topo da lista de prioridades. Amanhã você e sua equipe já podem começar, os primeiros dez mil protótipos de corpo já estão prontos, não é? — o Pai puxou um monte de papéis pequenos e começou a escrever em um, para entregar ao cientista.
O cientista paralisou com os olhos arregalados e começou a gaguejar.
— Eu não posso fazer isso, eu.. eu preciso ir... — ele correu em direção a porta, mas foi impedido de sair pelo Pai.
— Vamos com calma, que história é essa? Você não sai até me explicar por que não pode encaixar minha esposa e eu na lista de prioridades. — o Pai falou alto para o cientista.
— Me solte, imediatamente. — o cientista também falou alto e se remexeu tentando sair do aperto do Pai.
— Bianca, leve a Valentina para a sala e deixe ela assistindo algum desenho no SBT. — o Pai ordenou.
A Mãe tentou obedecer e levar a filha no colo até a sala, mas percebeu que a menina agora era muito pesada, então ela falou baixinho com ela para convencê-la segui-la.
Valentina não tinha motivos para ficar, então a seguiu.
Os moços, Pai e cientista, continuaram falando alto atrás delas.
Valentina é colocada sentada em um sofá de frente para uma tela enorme.
Estava passando algo chamado Jornal Nacional. A Mãe segurava uma pequena caixinha preta e estava apontando ela para a tela, quando os moços começam a falar mais alto ainda. A Mãe se assustou com o som repentino e deixou cair a caixinha no chão. Ela dividiu o olhar entre Valentina e a caixa preta de imagens por alguns momentos, antes de decidir simplesmente voltar pelo caminho que elas tinham vindo.
Valentina não se importou, o barulho da sua respiração estava muito alto mesmo e a estava atrapalhando ouvir os sons que saiam do moço na tela.
— Boa noite, a contagem de dias para o fim do mundo está em 25 dias. A população do nosso país está revoltada indo às ruas protestar para que o governo faça alguma coisa para nos salvar. Há boatos de que os laboratórios de todo o país se uniram para criar corpos artificiais para as pessoas. Essa é a única coisa que mantém a esperança das pessoas, viva. Mas quem não gostou muito desse rumor foi a igreja católica, eles também foram às ruas protestar, só que a favor de que a humanidade apenas se ''acalme'', pois segundo eles toda a Catástrofe, desde a destruição crítica da camada de ozônio, a destruição da Amazônia e do Cristo Redentor, tudo isso faz parte dos planos de Deus para nós. — o homem falou tudo bem rápido e olhou para a mulher ao seu lado.
— Ainda hoje a última espaçonave em direção a Nova Terra saindo dos Estados Unidos decolou às 13:30, em Nova York. A nave levou os últimos sobreviventes do país, e assim, o Brasil é oficialmente a única nação restante na Terra. Os outros povos que não foram destruídos na Terceira e na Quarta Guerra Mundial, como estivemos noticiando a meses, já partiram para Terra Nova, ou estão tão espalhados pelo mundo que não mais podem ser considerados povos de uma nação. A situação é realmente desesperadora. Vejam a seguir, o pronunciamento do próprio presidente do Brasil sobre a nossa condição.
Uma voz feminina soltou um grito de algum lugar da casa, mas Valentina não se importou.
— O Brasil não está bem, assim como o resto do mundo, mas estamos unidos! Não temos os recursos para construir um foguete que salve a todos e nos recusamos a partir para outro planeta sem todos os nossos, por isso, ficaremos aqui! Mas não temam, o brasileiro é um povo determinado, que não se deixa abater nem mesmo nas piores situações. — o homem com a faixa no peito, de repente foi interrompido por uma mulher toda de vermelho, que falou algo em seu ouvido. Então, sem titubear, ele continuou a falar com suor escorrendo da testa. — O governo acaba de achar uma solução... milagrosa. Anos de estudo em tecnologia culminaram na solução de todos os nossos problemas. Meu escritório foi contato a meses pelo secretário do cientista e pesquisador, Guilherme Ferreira, para pedir financiamento em sua pesquisa e é com muito orgulho que eu lhes digo que, esta manhã, ele voltou a me contatar para anunciar que seu experimento, algo revolucionário e a única chance de sobrevivência da humanidade, foi um sucesso. A menina, Valentina Mendonça, deficiente física desde o nascimento, teve o cérebro transplantado com sucesso para um corpo mecânico e hoje é a primeira ciborgue bem sucedida. A primeira de muitos! Vamos começar a transplantar os cérebros das pessoas que vivem em áreas mais pobres e necessitadas primeiro para os corpos artificiais. Isso não está em discussão se quiserem viver. Vocês terão mais informações do senhor Ferreira pela manhã. Boa noite.
A tela ficou preta por um momento, antes de mostrar o moço e a moça de antes. Eles ficaram alguns minutos com a boca aberta fitando o nada antes da imagem mudar mais uma vez e algo sobre hidratação de cabelo começar.
Valentina desviou o olhar.
O homem falou seu nome. A Primeira Ciborgue Bem Sucedida.
Um barulho alto e repentino chamou sua atenção. Ela foi na direção dele e se encontrou no mesmo quarto rosa em que acordara. Chegando lá ela viu o Pai e a Mãe no chão deitados de olhos fechados. O moço cientista estava parado perto deles com uma cara estranha.
— Por que eles estão nessa posição no chão? — Valentina o questionou.
O som que saiu de sua boca era estranho, não parecia nada com o tom da moça Mãe, nem do Pai e nem do cientista. Parecia ter um eco ao fundo e vir de algum lugar longe, com leves chiados.
— Estão descansando. — o cientista respondeu.
— Eles não deveriam fazer isso naquele troço? — Valentina apontou para o objeto sobre o qual acordou.
— Eles estavam muito cansados, todos estamos. — ele respondeu e soltou ar pela boca.
Valentina não tinha ar no seu corpo.
— O que eu deveria fazer como Filha deles? — ela o perguntou.
— Me ajude a colocar eles na cama e cobri-los com o lençol. — ele mandou e Valentina obedeceu, sem hesitar.
Levantou a Mãe e a jogou na cama. A cama balançou, mas a mulher nem se mexeu. Também não parecia respirar.
Valentina resolveu perguntar ao homem.
— Ela não respira, mas você respira. Ela parece com você, mas age como eu. O que ela é? — a garganta do homem se moveu ao som da sua pergunta enquanto ajeitava um pano branco sobre os dois.
Cobrindo-os dos pés às cabeças.
— Ela e seu pai queriam ser como você, algo que não anda, come ou respira, então eu os tornei isso. Fiz algo ainda melhor do que o que eu fiz com você. — ele caminhou até o seu lado e a guiou para fora do quarto.
Valentina se viu mais uma vez na sala da caixa preta na parede, agora algo chamado BBB estava passando. O homem continuou seguindo até uma porta e saiu por ela, falando que voltaria para vê-la amanhã, então a deixando sozinha.
Ou foi isso que ela pensou até ver uma forma peluda surgir de um corredor e pular no sofá. A ciborgue analisou a pequena criatura cor caramelo, e um nome surgiu de repente na sua mente.
— Mel. — o pequeno ser saltitante levantou do sofá ao ouvir seu nome e correu em sua direção.
Valentina observou que o pequeno ser vivo ficava tentando escalá-la, então se abaixou de joelhos. Mel e Valentina se encararam por alguns minutos. Valentina gostou de olhar para Mel. Com a língua de fora e os dentes à mostra, ela parecia... feliz.
Mel correu de volta para o sofá e Valentina a seguiu. As duas se acomodaram no sofá e ficaram assistindo a caixa preta falante. Em certo ponto, Valentina descobriu que Mel era um cachorro do gênero feminino. Segundo a caixa preta na parede, sua espécie, que já fora abundante no nosso país, perecerá lentamente até a extinção, uma semana antes dos humanos.
Valentina olhou para o pequeno animal e se sentiu estranha, a ideia de morte não lhe agradava. Ela colocou a mão na cabeça da cadela que estava no seu colo. Imediatamente o rabo do animal começou a mexer em um ritmo rápido, como se dançasse.
A ciborgue achou aquilo belo, e começou a raciocinar.
Segundo a caixa preta, já não havia nada belo no planeta, então isso queria dizer que Mel era rara, isso a tornaria importante. Então talvez houvesse uma forma de manter Mel viva, assim como os humanos.
O senhor cientista poderia ajudá-la, torná-la igual a Valentina. Valentina não queria Mel igual aos Pais, eles não se moviam mais e Mel gostava de se mover.
Valentina então decidiu que iria até o laboratório do cientista. Ela iria pedir para o mesmo a levar até lá quando ele viesse vê-la no dia seguinte. Então ela continuou vendo a televisão, sendo bombardeada por uma enxurrada de informações e assistindo alguns programas que as pessoas chamavam de reprises. Mel dormiu no seu colo e às vezes corria em volta do sofá ou trazia uma bola que sempre que Valentina jogava longe, a cadela trazia de volta.
O cientista chegou às 14:00 horas da tarde. Valentina estava vendo Mel comer com curiosidade. Ele entrou, ficou um tempo no quarto onde os Pais estavam e depois saiu dizendo que a partir daquele dia, ela não deveria entrar lá.
Valentina então fez a pergunta que aguardou horas para fazer.
— O senhor pode transformar a Mel em ciborgue que nem eu? Ela é especial, ela é a última beleza da Terra, precisa ser salva. — Valentina disse.
O cientista olhou de Valentina para a cadela com uma expressão que ela entendeu como confusão.
— O projeto começa hoje, não sei se... — ele começou e imediatamente Valentina avançou nele e fez como o Pai.
Ela agarrou o braço do cientista e sacudiu.
— Salve a Mel primeiro, ela merece mais que eles. Eles destruíram o planeta, não ela. — Valentina apertou o braço do cientista até que ele fez uma expressão de dor, quando ele moveu o outro braço, ela agarrou esse também.
— Me solte, Valentina, ok, eu faço. Me da a cadela, eu a levarei para o meu laboratório e depois a trago de volta para você. — o cientista falou esfregando os braços assim que a ciborgue os soltou.
— Não, eu vou junto para garantir que você não faça errado. Eu quero que ela possa se mover, não como os Pais, eles são ciborgues chatos. — Valentina afirmou.
O cientista a encarou estarrecido! O vocabulário de Valentina tinha mudado tanto que ela quase parecia uma criança real. O cientista pensou se seria possível...
Valentina o encarou até ele começar a se mover.
Ela pegou o animal no colo, que apenas deitou a cabeça no seu ombro. Abraçada a ela, Valentina seguiu pelo caminho que o cientista usou para partir. Ela não queria esperar um segundo a mais.
Ao sair pela porta, Valentina foi atingida pela luz do sol, não feriu ela, mas o cientista se contraiu. Seguiu o caminho de pedras que levavam a imensos portões. Fora dos portões, várias pessoas começaram a gritar assim que a viram.
— É real, ela existe mesmo! O senhor Guilherme conseguiu.
— Monstro!
— A primeira ciborgue funciona e ainda tem um animal de estimação, ela não virou uma máquina sem sentimentos, estamos realmente salvos!
— Isso não é obra de Deus!
— Pensei que ela seria mais bonita!
Valentina manteve o máximo de distância possível deles enquanto caminhava até o carro prata do cientista, ela não tinha tempo a perder.
Nenhum deles teve coragem de se aproximar muito dela, mas seus olhares a seguiram o tempo todo.
Todos pareciam com fome e desesperados, não pareciam ter diferenças de classe, mas alguns deles pareciam insistir em se vestir bem, para mostrar que mesmo que não pudessem gastar seu dinheiro com comida, pois não havia quase nenhuma, eles ainda eram superiores.
A viagem de carro passou em um borrão de vários prédios com aparência abandonada e muito lixo nas ruas. Valentina segurou seu pequeno tesouro com mais firmeza.
Ao entrar no prédio do laboratório, Valentina viu uma multidão de pessoas sentadas aguardando serem chamadas para iniciar o processo de mudança. A fila era muito menor do que ela esperava, sendo que esses eram os últimos nascidos brasileiros em condições humildes. Eles olharam fixamente para Valentina e imediatamente começaram a chorar e fazer preces agradecendo.
Valentina não se importou e passou direto por eles, ela tinha uma missão. O cientista falou com algumas pessoas no caminho, mas sua caminhada não parou até chegarem em uma sala gigante com algo enorme no meio e um teto de vidro que parecia poder abrir completamente quando fizesse muito calor.
A ciborgue colocou a cadela na primeira superfície plana que viu, então acariciou a cabeça do animal, que lambeu sua mão uma vez, antes de se deitar.
Quando Valentina foi se virar para o cientista e exigir que ele iniciasse o processo, era tarde demais para impedi-lo.
A próxima vez que Valentina se viu consciente, ela estava em uma estrutura de frente para um espelho gigante ainda na sala do cientista. Era a primeira vez que a ciborque se via completamente, mas mesmo assim soube que havia algo errado. Seus membros haviam desaparecido e fios saiam de onde eles deveriam estar, mas o mais estranho foi sua cabeça.
A primeira ciborgue do mundo, não era uma ciborgue. Pois, desmantelada como estava, Valentina viu que onde deveria estar o cérebro de Valentina Mendonça, não havia nada.
Então se não era um ciborgue ou uma pessoa, o que eu sou?
Se não tenho um cérebro, por que estou pensando?
Se perguntava a ciborgue.
Ela viu o cientista guiar pessoas muito bem vestidas para dentro da máquina gigante no centro da sala e de algum lugar próximo ouviu tiros e gritos e lamúrias muito similares às que tinha ouvido mais cedo.
Não conseguia entender o que estava acontecendo, mas queria ver Mel.
Tentou se mover, mas falhou.
O cientista vendo-a já desperta, foi em sua direção.
— Você é uma máquina e eu não te devo nada, mas vou te dar um presente. Vou levar seu animal junto com a população que restou, ela vai viver bem em Nova Terra.
Valentina não entendia o que o homem dizia. Ele dizia que o que restou da população estava entrando na máquina gigante, mas ela ouvia sons terríveis de sofrimento por trás das portas do laboratório pessoal dele. Onde estavam as pessoas esperançosas que ela viu mais cedo? Já haviam mudado de corpo? Mas então onde estavam com seus novos corpos robóticos?
E por que estavam indo para Nova Terra, o Brasil conseguiu criar ciborgues, não precisávamos mais sair, não é?
— Não havia como salvar a todos, nós tentamos durante anos criar ciborgues e gastamos todo o investimento financeiro que essas pessoas fizeram, elas merecem isso! — disse o cientista com um tom que sugeria que não havia escolha.
O cientista lhe deu um último olhar antes de entrar na máquina gigante e a porta se fechar.
Uma contagem regressiva de dez segundos começou.
10... os gritos estavam frenéticos em algum outro lugar do prédio.
9... fumaça quente estava começando a sair da parte de baixo da máquina.
8... Valentina queria ter dutos lacrimais para chorar, mas era só uma máquina, então também não sabia muito bem por quê.
7... um latido lamentoso soou, muito longe para a Não-Ciborgue ouvir.
6... os vidros se abriram no teto para revelar um céu azul, sem estrelas.
5... a máquina estava no ar.
4... a Não-Valentina-Não-Ciborgue era uma pilha de pedaços em chamas,
3... assim como as pessoas no foguete quando por um erro imprevisto, ele explodiu no céu.
2... as pessoas na outra sala já não gritavam mais.
1... o Brasil estava morto.
Merci pour la lecture!
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