aarvyk Gabriella

Ashtar Severin, proveniente de uma das famílias mais ricas do mundo e com dons genuinamente estranhos, sai em busca de respostas para suas crises existenciais em uma Indonésia futurista cheia de mistérios e perigos. Sua consciência é um emaranhado de perguntas e questões, nem sempre Ashtar consegue controlá-la. O que a faz ser tão distinta em um mundo de tecnologia em que tudo é possível? "Como a poeira cósmica de um oceano, ela foi engolida por aquele mundo. Não havia uma saída e nem uma esperança para a matrix. A mente dela era uma constatação tenra de que ninguém havia evoluído naquele planeta."


Science fiction Déconseillé aux moins de 13 ans.

#distopia #Indonesia #futurista #tecnologia #cyberpunk #sudeste-asiático #consciência
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PARTE I


Ashtar seguiu em frente. Não como quem caminha avante ou vai em direção ao céu. Não havia um sol tão bom a esse ponto em Java, que fosse suscetível ao apreço e contemplo. Era sucintamente uma cidade de corpos vazios vivendo na refinada hightech pós-moderna em meio ao Oceano Índico. Era difícil caminhar adiante pensando nisso. Em uma Indonésia tecnológica e cada dia menos decente à maneira de Ashtar, os passos dela eram movimentos vagos em busca de algo inominável.

Essa era sua terceira tentativa de buscar algo que valesse a pena, algo decente. Algum resquício de civilizações passadas, alguma crença legítima dos velhos tempos da humanidade ou qualquer coisa. Se achasse Kirtya naquele momento, provavelmente seu cérebro e coração explodiriam em fogos coloridos, e não sobraria mais sentimentos negativos para serem sentidos.

Dobrou duas esquerdas, rápida e silenciosa. No fundo, havia muito mais do que isso em seus movimentos. Ela gostava de deslizar os pés por alguns becos e ir mais devagar em outros, às vezes alguma árvore verdadeira ou um fumante ansioso eram dignos de sua contemplação por aqueles lados da cidade. Incrível. Nicotina cubana era mais antiga e clássica do que muitas ruínas de Java. Não importava a época, as pessoas pareciam sempre permanecer as mesmas de alguma forma.

Deu passos lentos ao escutar algum barulho romper sua sutilidade. Como um flash rápido e entorpecente, duas crianças passaram correndo, Ashtar ficou um pouco assustada ao ser pega de surpresa em seu trajeto secreto. As roupas esfarrapadas e rasgadas diziam que eram meninos refugiados, a bola de vôlei de outra década confirmava e ainda mostrava que eram cubanos igual a nicotina, eles estavam por toda parte, como ratos nos esgotos. As expressões felizes eram nonsenses e os defeitos físicos de rostos feios eram gritantes. Párias. A última casta da sociedade global, aqueles que simplesmente morriam, abaixo até mesmo dos grounders, a tosca maioria que trabalhava e depois padecia, mas nunca chegando nem a sair da Terra. Deprimente.

Ashtar sentiu o roçar daquela pele morena na sua. Calor. E, como se um plug in tivesse sido ligado, ela constatou uma enorme sensação estranha dentro de si. Isso a fez ter uma química mental intensa, a ponto de confundir um pouco a declividade do chão e perder o equilíbrio por alguns milissegundos. Os pequenos párias tinham passado tão rápido com seus sorrisos nonsenses que foi difícil para as lentes da garota perceberem todo o movimento. Ela raramente tinha contato com o mundo exterior dessa forma, e quando tinha, em suas calculadas fugas, era sempre daquele jeito estranho e meio assustado.

— Perdón, perdón... – disse uma voz rasgada de sotaque nojento.

Era um pária refugiado mais velho, as feições eram feias como as de todos os outros, assim como as roupas farroupilhas. No entanto, aquele ali parecia ter uns 17 anos, praticamente a idade de Ashtar. Ele tinha olhos castanhos escuros e cabelos igualmente ruins em coloração. Era difícil ver alguém mantendo aquelas cores, normalmente apenas os párias e os mais pobres grounders se rendiam a essa falta de opção estética. Ashtar, por outro lado, possuía longas madeixas negras como o extinto petróleo, com duas tranças finas do lado esquerdo e uma grossa mecha branca do lado direito, que por vezes parecia prateada na luz pálida do sol de Java.

Ao contrário do que se esperaria, a garota observou com deslumbramento aquele ser, passando sua íris verde escura por toda a extensão do corpo dele. O menino parecia hipnotizado com a visão dela, havia ficado congelado em seu estado de perdão. Não era culpa dele, Ashtar, em qualquer lugar da galáxia se sobressaia de alguma forma, algo complexo e intenso sempre emanou da presença dela. Mentalmente, a garota analisava até os mínimos detalhes daquela aparência robusta e suja, buscando algo que pudesse fazer sentido no emaranhado de questões ultrajantes que detinha em si, cada vez mais efervescentes com o passar dos acontecimentos. Parecia um computador prestes a explodir, fazendo cálculos probabilísticos de uma sociedade fadada ao fracasso e que se recusava a cair.

Um pária nunca havia dito nada a ela. E, como se passasse por um holograma brilhante de propaganda, ela sentiu uma coisa estranha tomando conta de seu peito ao avistar um colar pendurado no pescoço do refugiado. Era feito de miçangas de madeira e com um elefante prateado de pingente. Contraste. Ela amava prata, mas sentiu que aquilo não podia ser dele. Não combinava com o todo. Simplesmente não estava certo.

Uma dor de cabeça fugaz a afugentou. Esticou o braço para alcançar, como se tivesse sido programada para aquilo, ainda assim havia algo de lento em seu movimento meio robótico. Quando faltava pouco para alcançar o pequeno elefante, um pano preto caiu no chão, o pária tomou consciência e parecia ter entendido a ação da garota, ele não pode deixar de notar o bracelete prateado contornando o pulso branco e fino dela. Havia o sinal da SinSeverin ali, a estrela de sete pontas, uma marca que diria a qualquer um a altivez de Ashtar em relação a todos os outros no Universo. Kaya. Ela era um kaya, a casta mais incipiente de todas, que qualquer um gostaria de estar.

Muito mais do que isso, ela era uma Severin, representava a segunda corporação mais rica do Sistema Solar, SinSeverin, com sua estrela de sete pontas, perdendo apenas para a Tessier-Sarrou e o símbolo do quadrante de um astrolábio. Praticamente uma lei entre os kaya, cada grande família e corporação representavam quem eram com um adereço permanente em seus corpos, sempre com o símbolo respectivo. O bracelete era como uma cicatriz irreversível, aquilo estava ali desde que ela havia nascido, a prata de nanotech só atendia ao DNA dela, se adaptando conforme o corpo ia crescendo.

Informações em demasia para o pária. Ele sentiu medo ao extremo. Aquele bracelete valia mais do que a vida de milhares deles.

Ashtar não conseguiu acompanhar os movimentos do refugiado com suas lentes, ele havia saído em disparada a qualquer outro lugar. Ela permaneceu incrédula por vários momentos, como um holograma travado, com a imagem do elefante prateado fixa na mente. Depois de um certo tempo, pegou o pano do chão, enrolando-o no pulso, a fim de esconder tudo o que ela era. Quando se certificou de que o nó dado era mais forte do que o anterior, prosseguiu sua silenciosa caminhada, anotando em sua mente que uma capa seria bem-vinda na próxima incursão secreta que fosse fazer em buscas de respostas ilógicas. Se é que conseguiria fazer mais uma fuga daquelas, estavam todos cada vez mais atentos em relação a cada movimento seu.

Sawyer não iria gostar nada daquilo. Ela sabia que nada de bom viria nas consequências impostas por um código de evasão, provavelmente seria privada de ver Kumush por um tempo e teria que fazer uma série de trabalhos no Vox Experimental da SinSeverin de Chiba, assim como aconteceu da última vez. Ashtar odiaria. Por mais que achasse a Indonésia ruim, o Japão era ainda pior para ela, a sensação de pleno sufocamento naquele país e o ar desagradável davam a ideia de prisão, aquela sociedade já havia perdido toda a maestria do passado incrível que Ashtar leu sobre.

Um calafrio percorreu sua espinha. Tentou não pensar mais com tanta minúcia em tudo e deixou seus desejos excêntricos de lado. Logo em seguida, desceu rapidamente por alguns morros, fingindo não se importar com o cheiro fétido daquela região periférica. O Leste Fantasma de Java, era assim que todos conheciam aquele lugar, prédios feios e árvores verdadeiras que morriam cada dia mais pela poluição das áreas periféricas eram tudo o que havia por aquelas bandas, mesmo assim, de um nobre ponto de vista, parecia fantástico. Os Severin possuíam espaços de luxo, a pobreza era algo que Ashtar só imaginara no Vox, criando suas próprias realidades virtuais para tentar entender o mundo.

No meio das observações minuciosas que as lentes de Ashtar conseguiram fazer naquela verdadeira realidade, a garota acabou tendo que parar subitamente assim que terminou de passar por uma viela estreita com cheiro de mijo e químicos. Ela havia encontrado ruínas laranja que contrastavam com o resto da área decadente. Ashtar soube de imediato que havia conseguido. Era Kirtya, o lugar que guardava textos sagrados de crenças antigas das quais Kumush uma vez falara.

Sua íris brilhou. Qualquer preocupação e pensamentos relativos a Sawyer e o colar do pária foram embora de sua mente.

—Decente – deixou escapar em um sussurro, sua voz soou estranha para si mesma. Evitava falar o máximo que podia ali fora, mas às vezes a vontade de pronunciar uma palavra era mais forte do que tudo.

Decente. Ela sempre dizia isso para alguma coisa específica em suas incursões. Sempre havia algo que se sobressaia. Na última fuga, no satélite Marina Space Sands, enquanto tentava se encontrar com a tribo rasta da qual Kumush fez parte antes de se tornar seu mestre, Ashtar teve um incompreensível encontro com um saturniano Amon. Fazia dois anos. Dois anos sem contato com o exterior de forma independente e tramando outra fuga estratégica. Uma infinidade de dias se seguiu depois daquilo, mas a memória ainda era bem vívida.

Na época, havia se perdido na ala norte do satélite, logo no corredor com vista para as colônias de Saturno, onde um experimento de colonização acontecia há anos, inclusive financiado em partes pela SinSeverin. Ela olhava para os anéis do planeta com toda a curiosidade possível. Já estivera no espaço muitas vezes, sempre sob as ordens de Sawyer e a atenção intensa de Sage.

Enquanto observava as plataformas com resistência ao calor extremo saturniano, sentiu a presença de mais alguém ao seu redor, era uma presença estranha. Ao se virar, viu um homem com aparência de meia idade, pele bronzeada e olhos de vidro com íris cristalina. Ele era cego, ela soube assim que viu. Havia pesquisado sobre essa possibilidade quando estudou o projeto da colonização de Saturno, aquele homem provavelmente tinha trabalhado no planeta gasoso e sofrera um acidente de trabalho na manipulação dos gases de resfriamento das plataformas. Pessoas assim eram kayas intelectuais de alta formação, os que foram chamados para aquela missão eram conhecidos como saturnianos e carregavam o desenho do planeta junto ao símbolo de suas famílias em seus adereços especiais. Status acima de tudo.

Ao olhar as mãos do homem, Ashtar viu dois anéis de bronze com nanotech, um com o desenho do Sol e o outro de Saturno, assim como tinha previsto. O Sol era da família Amon, a corporação egípcia que detinha os maiores investimentos em pesquisas planetárias. Ela soube identificar, já tinha estudado muito a respeito dos principais kayas.

—Eles devem estar fazendo os últimos testes nas plataformas a esse ponto – disse o cego, como se realmente enxergasse Saturno ou qualquer outra coisa.

Tocou no vidro de forma suave. Parecia triste. Aquele kaya não possuía a presença arrogante e extravagante dos outros. Ela sentiu algo benevolente nele, assim como sentia em Kumush, por isso passou a contemplá-lo enquanto acompanhava o olhar que nada via além da escuridão. Alguns danos oculares ainda não tinham cura, nem para o mais rico kaya. Um privilégio que era questão de tempo até também ser conquistado. Avanços rápidos em uma sociedade de poucos.

—Diga-me seu nome – pediu o Amon, em tom gentil. Continuava a tentar olhar as plataformas de Saturno, como se corriqueiramente fosse começar a enxergar.

Ashtar se sentiu triste, como se tivesse sido hackeada e perdido todos os dados de pesquisa que detinha na matrix. A simples frase do Amon foi proferida de um jeito profundo demais, ao mesmo tempo que a gentileza de um kaya defeituoso era estranguladora. Eles nunca eram gentis. Algo simplesmente não se encaixava, ou talvez se encaixasse tão bem que era questionável. Ashtar não conseguiu formular frases, seus olhos marejaram, ela andava sensível naquela época.

Rendeu-se ao Amon. Ele parecia ver um Universo diferente do dela.

—Ashtar – falou firme, porém, evidenciando o choro.

O homem mudou algo em sua postura, virou-se de frente para ela. Seus olhos cristalinos cravaram-se nas íris e pupilas de Ashtar, como se ele soubesse a direção de tudo e todas as coisas. A garota estremeceu, sentia-se exposta à nível mental, o Amon parecia ver algo mais importante do que o corpo. Alma. Prana. Ela nunca soube dizer exatamente o quê e nem como.

O Amon chegou mais perto, esbarrando desajeitadamente sua face mais ou menos velha no rosto jovial da garota. Seus lábios roçaram as orelhas e o cabelo negro dela. As respirações foram tão intensas que ambos tremeram por um único instante.

Ashtar, você é como o Sol que mais brilha. Procure por Shivaska e verá seu próprio fim de forma certeira.

O Amon se afastou de forma vagarosa. Os olhos de Ashtar não acompanharam, mas o homem de meia idade havia ido embora a passos calmos e intensos, como um movimento robótico de alto padrão e refinamento. Aquilo nunca havia acontecido com ela, nunca havia estado tão perto assim de um estranho. Kayas não se tocavam, jamais.

Ela permaneceu parada e assustada até ser encontrada pelos guardas de segurança da SinSeverin, duas horas depois do encontro com o Amon. Chorou tanto nos dias que se seguiram que Sawyer implantou lentes especiais nos olhos dela.

A garota nunca contara aquelas palavras a ninguém, nem mesmo a Sawyer, seu próprio irmão, ou a Kumush, o mestre que tanto admirava. Por outro lado, fez as mais detalhadas pesquisas sobre “Shivaska” na matrix e em todos os lugares aos quais conseguiu ter acesso secreto, encontrou apenas mais perguntas e nenhuma resposta.

...seu próprio fim de forma certeira.

Ashtar tremeu com a lembrança daquele dia. O Amon era um mistério. Shivaska mais ainda. Mas, acima de tudo, sentia que tudo aquilo fosse sombrio.

Morte? Fim? Catástrofe?

Com uma sensação complexa dentro de si, a garota voltou com suas análises mentais minuciosas sobre o momento presente. Uma parte do todo estava prestes a se encaixar, ela sentia isso. Kirtya, em outros tempos, havia sido quase que um templo para os indonésios hindus do século passado. No entanto, a modernização de Java e a Sétima Revolução Industrial havia posto tudo à prova, inclusive as crenças e os povos indonésios de “origens primitivas”. Kumush tinha falado de forma mágica sobre aquele lugar, ele era um dos poucos conhecedores das crenças orientais e de técnicas de meditação. A religião estava em extinção àquela altura, alguns excêntricos humanos e uma pequena quantidade de IAs de memória ainda sabiam falar com propriedade sobre religião oriental e idiomas antigos. No mais, a única coisa perto disso tudo eram as tribos rasta que viviam no espaço, Ashtar já os pesquisara e sentia que Kumush era realmente o mais decente de todos. Já o Amon, era indefinível.

Olhou mais uma vez as ruínas laranja de Kirtya, tomadas por árvores verdadeiras e outras plantas de caule retorcido que uma vez a garota vira em um Vox de florestas equatoriais. Era sua chance, ela sentia. Ashtar pulou com facilidade o pequeno muro em frente a biblioteca, foi em direção a uma fonte d’água branca abandonada, ao lado da maior árvore dentre todas as outras. Simplesmente fantástico. O vento soprou e ela fechou os olhos por poucos segundos.

Respirou fundo, como quem aprecia a vida. Ela era a única Severin sem upload de mente, a única que podia morrer de verdade e não deixar nada. Os procedimentos nunca deram certo nela. Era inexplicável, segundo Sage.

A entrada ficava à direita, não havia portas, somente o formato de uma passagem e muita, muita sujeita. Talvez aquele lugar fosse ocupado por párias ou grounders. Ashtar sentiu um leve frio na barriga pensando nisso, Sawyer iria ficar irritado caso fizesse contato demais. Porém, não podia simplesmente não entrar depois de ter fugido todo aquele caminho.

Mantendo uma expressão impassível, foi até os interiores da biblioteca. Notando que a sujeira e o cheiro de pó eram fortíssimos ali dentro, cobriu o nariz e seguiu para uma sala mais escura. Ausência de fótons não era um problema, suas lentes lhe garantiam ver em qualquer situação, tudo graças a Sawyer. No entanto, não viu nada do que buscava, não havia livros de papel ali. Era um grande vazio, cheio de folhas secas nos ladrilhos empoeirados do chão e alguns raios de sol que entravam pelas paredes e telhados rachados. Um pouco de seu entusiasmo morreu, mas a sensação de que algo estava prestes a acontecer permanecia. Devia prosseguir. Era um lugar quase belo, mesmo não tendo o que Ashtar queria. Ao menos, encontrou uma pintura na parede, descascando e quase toda imperfeita: cheio de cores, um elefante com escritos em sânscrito antigo habitava aquele local.

As mãos da garota logo foram ao encontro das inscrições, passando o dedo indicador levemente pelas letras do idioma esquecido por quase todos, não se importando com o pó da parede que ficava em sua pele. Ela estudou por anos e aprendeu, nada era mais recompensador do que por seu conhecimento à prova. Seus lábios não poderiam se conter mais uma vez naquela tarde, tinha que pronunciar:

Jágan míthya. O mundo é irreal.

Ecoou fundo em Ashtar. Como se seu coração tivesse ido aos céus e o resto dela estivesse ali, presente em uma Kirtya destruída pelo tempo e pelo avanço tecnológico da Indonésia. Era como se uma arma de desintegração tivesse acertado seu corpo em câmera lenta. A garota quis chorar, mas não podia, Sawyer havia garantido que as lentes impedissem seu sistema biológico de lacrimejar, em contrapartida, sentiu vontade de cuspir e acabou engolindo tudo, já que aquele lugar era digno demais para um ato nojento.

No entanto, em questão de segundos uma presença estranha se instalou junto à Ashtar e o elefante da parede. Sentiu-se observada e virou com suavidade o corpo em direção a entrada da sala, onde uma figura alta e de cabelos longos estava postada, trajava calças laranja desgastadas e largas e uma túnica branca de um pano que parecia ser linho antigo.

Katham tvam? An-ista. – disse a misteriosa mulher, sua voz se assemelhava a morte.

Sentiu a advertência como um alerta vermelho de um Vox beirando a desintegração de realidade virtual. Uma parte de Ashtar travou, mas a outra ainda raciocinava e compreendia aquelas palavras.

Quem é você? Aqui é proibido.

Embora a tensão no ar houvesse aumentado, Ashtar respirou fundo e se pôs impassível diante daquela figura, focando em observar melhor as circunstâncias ao seu redor. Notou que nas mãos da mulher havia um colar de madeira, muito semelhante com o do pescoço do refugiado que vira mais cedo, ela o segurava com força, o que talvez mostrasse que o maldito pária havia furtado aquilo dela.

Uma pessoa irritada e misteriosa era tudo o que Ashtar não precisava. Sendo um indivíduo mortal, confrontara-se com o medo da morte a vida inteira. E ali estava ela, em uma situação que quase não conseguia ver saída.

Respirou fundo.

—Desculpe – Tentou soar gentil, buscando evitar problemas. – Não imaginei que esse lugar fosse habitado.

Notou que a expressão facial da mulher piorou sem precedentes ao escutar sua voz. A boca se curvou e as sobrancelhas ficaram mais juntas. Porém, contra todos os cálculos futurísticos que um computador pudesse fazer, a figura caminhou lentamente para trás, indo em direção à fonte de água e a grande árvore do lado de fora de Kirtya. Ashtar sentiu que devia segui-la, a sala estava escura o suficiente para que a mulher não a enxergasse sem lentes especiais.

Por alguns momentos enquanto caminhava, imaginou-se presa em um lugar escuro e depois imaginou uma saída cheia de luz, assim como Kumush uma vez a ensinara na aula de Yoga. Isso podia acalmá-la e ajudar na busca por soluções de forma lógica e sem emoções desnecessárias.

Deu mais alguns passos lentos, até ver o sol pálido de Java iluminar a mulher do lado de fora de Kirtya. Seus olhos funcionaram melhor e Ashtar conseguiu analisar mais sobre a situação. A mulher devia ter uns trinta anos, possuía cabelo castanho escuro raspado nas laterais e pequenas tranças nas madeixas restantes, que iam até a última vertebra da coluna. Mais estranho do que isso, foi avistar diversas escritas em línguas antigas na pele dos braços, todos em pigmentos dourados, quase imperceptíveis para suas lentes. Ashtar não conseguiu desviar o olhar, ansiava por ler.

Anugachati Pravana. Vá com o mundo.

Shiv, Samay aur Sansaar. A primeira palavra era incompreensível para Ashtar, mas parecia fazer referência ao tempo.

—Você conhece sânscrito – a mulher falou com um sotaque estranho, o tom de voz era mais curioso e menos alerta dessa vez. Parecia indiana.

Ela balançou as tranças por alguns momentos e arrumou suas calças laranja, parecia estar absorta em pensamentos e acalmando-se. Assim como Ashtar aprendera a se controlar nas aulas de Yoga.

A possível indiana deu passos lentos, circulando ao redor de Ashtar como se tivesse capturado uma presa. A garota não se moveu, nem mesmo se virou quando sentiu os olhares em suas costas, sabia que ainda estava sendo analisada. Sentiu que deveria deixar fluir, não poderiam existir conclusões tão ruins assim. De certa forma, também contava com o fato de que Sawyer poderia interromper seu dia a qualquer momento e resgatá-la.

Quando a mulher completou a terceira volta ao redor dela, começou a andar em sua direção, cravando seus olhos nas íris verdes de Ashtar. Um olhar que fez a tensão subir e a vontade de correr crescer. Estavam com os rostos tão próximas quanto acontecera em seu encontro com o Amon. Não poderia fugir àquela altura, a menos que seu irmão a forçasse. Porém, a sensação de que algo com sentido decente iria acontecer ainda se perpetuava.

Sentiu peso no ar, como se estivesse em uma usina de aço chinês.

Quando estavam bem próximas, a ponto de escutarem as respirações mútuas, Ashtar focou nos olhos azuis da mulher, como se aquela fosse a saída de luz do lugar escuro ao qual se imaginou em sua mente. Algo estranho estourou em seu âmago, e não compreendeu nada do que queria. Focou toda sua leveza e serenidade no olhar, tudo contra o peso das íris azuis da mortífera mulher de calças laranja a sua frente.

Aos poucos, ambas sentiram que um estranho equilíbrio se formava entre elas. Antes eram um maremoto prestes a destruir ilhas, já naquele momento, pareciam ser uma única onda alta e serena no Oceano Índico, chegando a uma costa com areia branca e suave. As íris azuis se assustaram com aquela sensação, como se alguém estivesse roubando sua própria cor, sugando o oceano daqueles olhos.

—Você é como o Sol que mais brilha – sussurrou a mulher, tão baixo, mas ao mesmo tempo vislumbrando algo grandioso que Ashtar sentiu no canto mais remoto de si mesma.

Nada seria mais como era antes.

As ligações neurais e os pensamentos foram instantâneos. O Amon. Déjà vu. Ela pressentiu. Algo estava prestes a acontecer. O ar dizia isso, a atmosfera dizia isso, tudo e todas as coisas ondulavam em uma vibração que dizia isso, até mesmo o vento soprava isso em seus ouvidos.

As palavras pularam para fora sem que Ashtar entendesse a sua sequência de raciocínio:

—Você é Shivaska?

A mulher perdeu as próprias forças, mergulhou em um poço profundo dentro de si mesma e caiu no chão, desacordada.

18 Janvier 2021 21:46 3 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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Thiago Silva Thiago Silva
Adorei este primeiro capítulo! Logo nas primeiras linhas, consegui mergulhar facilmente no mundo decrépito cor de neon que tu criou. Tu capturou maravilhosamente uma das características mais belas da ficção científica cyberpunk: a integração da tecnologia com o indivíduo, nublando os limites do orgânico e do inorgânico. Acho que o andamento da tua escrita casa muito bem com a dinamicidade da distopia futurista. Como tu mencionou pra mim uma vez, a tecnologia trás a agilidade, a otimização de funções e supressão da realidade "não-matemática". Ainda assim, tu incorpora alguns elementos "não-matemáticos" na narrativa que criam um sentimento de mistério e inquietude. Eu achei isso lindo, porque você mostra que, apesar dos personagens estarem habitando um mundo altamente tecnológico, ainda há uma tentativa de fragilizar esta estrutura lógica e romper os grilhões da tecnologia, buscando respostas para as perguntas em uma realidade "ilógica", mental, sentimental. Mal posso esperar pelos próximos capítulos para conhecer mais sobre Ashtar e o universo que ela habita! PS: adorei os nomes dos personagens e as diversas referências à sociedade hindu e à filosofia do Yoga!
January 23, 2021, 03:01

  • Gabriella Gabriella
    Olá, Thiago! Preciso dizer que eu fico muito feliz em ter feito uma conta no Inkspired, dei de cara com "Aquaria" na primeira página de histórias, e preciso dizer que foi ótimo dar uma chance a sua obra, não somente por você ter se tornado o meu leitor, mas também porque aprendi muito vendo a sua escrita e worldbuilding. Não consigo expressar minha gratidão. Havia anos em que eu não publicava nada, ao postar "Ashtar" voltei as minhas questões existenciais de escritora, pois não é sempre que recebemos comentários de leitores inteligentes e perspicazes, algo que nos motiva sem precedentes. Baseado nisso, andei me esforçando como leitora e autora o máximo que deu. Vejo que notou as características principais do Sudeste Asiático futurista de "Ashtar", com certeza é bem interessante se perguntar como aquela parte do mundo será daqui 50 ou 100 anos, não é? O cyberpunk é algo que deixa escapar o imaterial do mundo, o que abre brechas para obras fascinantes em que se discute a existência, a conexão humana e várias outras coisas, o que é tão complexo quanto a própria tecnologia. Quando vi "Ghost in the Shell" e "Akira" fiquei semanas matutando sobre isso mentalmente, é um ponto fantástico. Enfim, fico honrada em saber que gostou da minha escrita, mesmo que haja muito a ser melhorado ainda. É um elogio sem igual. Só posso agradecer pela chance e pelo ótimo leitor que você é! Espero que nos vejamos em breve :) E continue lendo o livro do Rothfuss. Eu nunca li algo tão belo quanto a saga do Kvothe, acho que te inspirará muito assim como fez comigo. January 23, 2021, 03:48
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