Os meninos, dentes salivando nos pés, chutavam o mundo. Eram moradores dos cortiços próximos que tinham se apossado da rua para jogar a pelada. Um gol no portão do nosso prédio o outro na porta de ferro do comércio em frente, local privilegiado com o poste dando boa iluminação.
Os conflitos com o pessoal do prédio eram frequentes, baixava polícia, eles silenciavam um pouco, mas depois aparecia uma pichação ou um carro de visitante riscado. Todos os novos síndicos tentavam resolver, mas os reis da bola eram protegidos por traficantes e, assim, iam se impondo. Naquela noite, quando virei a esquina, vi que ia ser difícil chegar em casa. Pela rua se espalhavam desde moleques pequenos até homens barrigudos, todos compondo uma gritaria de agudas obscenidades. Parte do jogo... De onde vinham? Indulto do dia das mães?
Pensei em passar rápido por ali, sem olhar para eles. Já estava em frente ao prédio, quando encontrei uma moradora antiga, uma senhora portuguesa que se apoiava numa bengala: “Como vai, seu Fernando?”. Antes que eu pudesse responder, a bola me atingiu de raspão. O chute veio durante uma disputa acirrada entre dois grandalhões que nem me olharam, nem olharam ninguém que pudesse estar passando pelo “campo”. Parei, enlouquecido de raiva.
A portuguesa não esperou resposta, fez um aceno com a mão e aproveitou o jogo parado para atravessar. Forcei um sorriso para ela seguir em paz e então me concentrei nos fatos. Foi de raspão, mas poderia não ser! Foi em mim, mas poderia ter sido nela! Aquela situação, arrastada há anos, precisava ser controlada.
Peguei a bola com uma mão e, com a outra, comecei a rastrear algo no bolso (um canivete?) capaz de furá-la. Só que eu nunca tive um canivete... Daí alguém gritou: “Dá a bola!”. Fiquei mais louco ainda. Não teve “desculpa”, nem “por favor”, só esse imperativo seco. “Espera”, gritei, ainda perdido nas possibilidades da minha vingança.
Um moleque menor veio mais perto e insistiu: “Dá a bola, cara!”. Ele tinha uns 12 anos e o suor na testa não era diferente do que escorria do meu rosto nessa idade. No meu tempo de moleque, a gente tinha um campinho improvisado, mas não era suficiente para tanta energia explodida pelos pés. Alguém sempre quebrava um vaso, uma lâmpada ou uma janela na empolgação de ir chutando pela rua.
“Pô, cara, hoje que meu pai tá aí! Vai...”. Apesar da pressão, havia suavidade na fala dele. A suavidade de um menino que pode, por uma noite, jogar bola com o pai. O pai e os outros homens, incomuns àquele cenário, provavelmente eram visitantes especiais. Talvez aquela fosse uma noite especial. Morei com meu pai até os 23 anos, mas ele nunca jogou bola na rua comigo.
No cortiço se enfurnava muita gente. Frequentemente as mulheres se sentavam em cadeiras no portão ou na sarjeta mesmo e bebiam goles de cerveja entre um grito e outro com as crianças menores que corriam pela rua. O espaço interno devia ser insuportável. Vez ou outra, eles interditavam a calçada: o lixo misturado com móveis velhos encostados em postes, esperando que a prefeitura se virasse para levar. Para nós, do prédio, eles eram um inferno. Mas a vida deles, dentro do cortiço, é que deveria ser o verdadeiro inferno dos ignorantes, dos que só existem no berro. E agora, para esse garoto, havia uma noite com pai.
Na minha mão, a bola encardida daquela vida de lixo. Por fim, saquei do bolso um lenço e a limpei gentilmente. Então a ergui como a um animal ferido e, num gesto devocional, a fiz flutuar até seus carrascos. Nem agradeceram, mas eu parti com um sorrisinho discreto de gente boa, de bem com eles.
Eu, conformado em meu mundo confortável, preferi abrir mão do combate. Passei cabisbaixo pelo portão, mas meus pés, com inveja daquele garoto, ainda latejaram por horas...
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