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Sueli Salles


Nesta história, diferentes visitantes vão sendo descartados da vida do anfitrião (ou seria uma anfitriã?). Apenas Amanda terá alguma chance de ficar, mas antes precisará passar pelo teste do gato.


Histoire courte Déconseillé aux moins de 13 ans.

#atrês #suelisalles
Histoire courte
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A três

Quando ela espirrou pela terceira vez eu tive certeza: seria minha amiga! Ela, meu gato, a alergia quase impossibilitando esse convívio a três. Esse era o passaporte para o vínculo.

Ela tinha vindo com mais três colegas do curso, para um encontro de trabalho acadêmico, desses em que se abre a casa, mas com ressalvas, só a sala e o banheiro. Tudo bem, isso é necessário, porque há sempre os abusados, os que mal pisam o capacho e já se sentem dormindo na cama. Quando viu meu gato, deu o primeiro espirro: interessante...

A outra garota, Juliana, perdeu o alvará de permanência na casa logo nos primeiros 10 minutos: “Ai, morro de medo de gato! Dá pra prender?”

Não, não dava. Mas levei o Samurai pra área de serviço e dei um pouco de ração pra ver se ele ficava por lá.

Os rapazes foram sendo descartados em etapas: o primeiro (não lembro nem o nome), voltou do banheiro com outra lata de cerveja surrupiada da minha geladeira:

- Peguei mais uma, tá?

Tá? Não, meu caro, não tá! Odeio que mexam na minha geladeira! Mas era melhor não falar nada, pois esse estava só de passagem pela minha vida.

O outro fez pior: acendeu o baseado no meio da sala e começou a filosofar sobre as sociedades do leste europeu. O trabalho era de linguagem jurídica! Esfumaçou!

Enquanto isso, Amanda circulava pela sala, seguindo o percurso estipulado pelo tapete: observou o quadro, comentou alguns títulos na estante, pediu autorização para tocar sua playlist. Então deu o segundo espirro.

De longe, eu observava seus passos: tudo bem até aquele momento... Mas ela precisava passar pelo teste final:

- Amanda, você pode me fazer um favorzinho? Coloca a almofada do meu gato lá na área de serviço, porque eu esqueci de levar e ele está miando...

Ela atendeu meu pedido, mas com um olhar desconfiado. Acho que percebeu uma segunda intenção naquela tarefa. Quando voltou, disparou o terceiro espirro:

- Apesar da alergia, adoro gatos...

Sim, ela tinha passado! Aceitaria a dor, o incômodo, para ganhar o direito de ir além dos limites. O corpo sinaliza aquilo que a razão não percebe: a casa não era um espaço livre como parecia ser. Minha vida não estava escancarada para quem a quisesse explorar. Era preciso cautela, respeito, tolerância para aguentar a dor que certamente viria com o prazer.

Não há amizade sem doação, sem superação. Eu tinha algo que lhe causava incômodo, meu gato sempre a lembraria disso. Quando ela viesse passar o carnaval comigo, numa maratona de filmes japoneses pra esquecer o samba, estaria lá meu gato, pra lembrar que o sábado foi uma delícia e que a gente pode continuar na 2ª. Como dois dias seguidos a alergia não ia aguentar, a relação respiraria aliviada um pouco de individualidade.

Aos poucos ela ganharia o direito de mexer na geladeira, e no armário, e nos meus álbuns de fotos. Talvez até em alguns arquivos do computador... Com certeza, nas minhas histórias íntimas. Também passaria muitas horas jogada na minha cama, ao meu lado, falando de tudo, enroscando suas aventuras sexuais nas minhas tramas de amor. Mas no dia seguinte, meu gato reivindicaria seu posto e ela iria, não sem um pouco de protesto, aceitar a dividir.

Gato autoritário, amuleto da minha voz calada.

6 Janvier 2021 11:24 0 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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La fin

A propos de l’auteur

Sueli Salles Escrevo desde a adolescência, mas esta é minha primeira experiência em publicação pela internet. Sou professora e gosto de escrever contos sobre a difícil arte de conviver.

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