Na primeira vez que ele veio até mim, ele queria me matar e eu deveria tê-lo matado. Nenhuma das duas coisas aconteceu. Não consigo entender por que não o matei.
Todos os dias durante uma semana, ele vinha até o meu lar, na entrada para o reino dos mortos, começava a balançar sua espada dourada e a gritar coisas como: "Saia de onde estiver, sua besta!", "Venha me enfrentar com honra!" e "Te darei uma morte rápida."
Observá-lo se tornou o momento mais engraçado do meu dia. Talvez da minha existência, pelo menos desde o incidente.
— Medusa, criatura vil e cruel, saia da sua toca. Não se arrepende de todas essas pessoas que você matou tão friamente?
Eu imagino que a essa altura essa pergunta foi feita de forma retórica, mas ante a sua expressão entediada, eu não consigo resistir.
— Em primeiro lugar, você parece tão certo que fui eu que matei essas pessoas. Em segundo, sabe que esse espelho que carrega é inútil contra minha maldição, não é? Minha aparência é mortal, não importa se está me olhando diretamente ou não. — minha voz o faz levantar a guarda imediatamente.
— Ousa zombar da minha inteligência? Esses pobres inocentes estão para sempre presos por sua maldição. — seu tom de voz tão convencido e o fato de ele ignorar meu segundo comentário me fazem rir.
— Estes homens vieram até mim e não o contrário. Me isolei para que minha aparência mortal não pudesse ferir ninguém, mas esses homens, autoproclamados heróis apenas por segurarem uma espada, continuaram a vir até mim. Um olhar para meus olhos, mesmo quando não os vejo, e suas vidas chegam ao fim. Quem é o verdadeiro assassino? Não escolhi esse dom. Parta herói ou ao menos sorria, no caso de seu olhar encontrar o meu.
Dou-lhe as costas, confessei tantas coisas. Se seu olhar cruzar o meu por acidente, não quero que a última coisa que veja seja minha dor.
— Eu não irei partir. A Deusa Atena deu a mim, Perseu, esta espada e este escudo para que eu possa por um fim a sua existência miserável. Falhar com a Deusa, seria falhar comigo mesmo.
— Atena. — deixo todo meu desprezo aparecer. — Se diz ser a Deusa da sabedoria, mas é rápida em dar as costas para uma mulher que sempre lhe foi fiel. Ela é fraca, não se levantou contra outro Deus para defender uma das suas principais Sacerdotisas. Não dê lealdade para alguém como ela.
O Herói, Perseu, fica em silêncio e não o vejo pela próxima semana.
Até que em um dia especialmente ensolarado ele aparece, dessa vez, sem sua espada.
Do meu esconderijo habitual, na sacada de uma antiga casa pertencente a Hades, sobre a caverna para o submundo. Escondida atrás de uma pilastra na sacada do quarto principal sobre o pátio das estátuas, o vejo se sentar em um local especialmente vazio.
O observo por cinco minutos, então minha curiosidade prevalece.
— O que pensa estar fazendo aqui herói? Já lhe disse, desista de me matar. Não irei me revelar.
— Faz isto pelo seu bem ou pelo meu? Se quer me tirar daqui, apareça. — ele deita e começa a observar o céu.
— Que insolência. — digo estarrecida.
Ele sorri e sinto minhas cobras paralisarem. A última vez que alguém sorriu para mim... faz muito tempo.
— Você é engraçada. As lendas não dizem isso. Elas dizem que você é sanguinária e sádica. Tem cobras no lugar dos cabelos, presas de bronze no lugar dos dentes e asas de ouro. — ele faz uma pausa. — Também dizem que és muito bela.
— Não posso confirmar, não me olho em um espelho a décadas, mas da última vez que chequei, eu era um monstro. Nada bela. — respondo sua pergunta indireta, com um tom de amargura.
Um dia eu fui bela, bela o suficiente para atrair um Deus. Ele me desejou tanto, que não foi capaz de aceitar minha rejeição, Atena apareceu antes que qualquer tragédia acontecesse e me amaldiçoou. Não sei qual dos dois destinos teria me feito mais infeliz.
Perseu vem todos os dias, e um dia descobri que o mesmo é filho de Zeus. Ele fica tenso quando conta isso e percebo o quanto esse fato o deixa infeliz. Talvez por isso eu não consiga me ressentir por ele ter o mesmo sangue de um dos causadores da minha miséria.
Em alguns dias ele até traz comida, acho estranho, pois sempre parece trazer em excesso, como se esperasse companhia para comer. Nesses dias sinto mais raiva do que nunca pela minha condição.
Perseu sempre chega no momento em que o sol nasce e se vai assim que ele se põe.
Um mês depois, ele acabou se tornando uma constante na minha vida. Sua completa falta de medo, é adoravelmente tola.
— Se um dia, se livrasse da sua maldição, o que faria? — ele me pergunta, um belo dia.
Hesito. Nunca disse isso em voz alta.
— Você sabe que isso é impossível e eu não vejo razão para cogitar o impossível, mas.. — me interrompo e engulo em seco. — Encontraria um bom marido, me casaria e teria nove filhos.
— É um número bem específico. — sua voz tem um tom irônico. — Por que não arredonda para dez?
Eu não respondo. Por que realmente, não me importo com o número exato.
Ficamos os dois em um silêncio confortável, ele observando o céu e eu a ele.
No dia seguinte, eu espero sua chegada no lugar de sempre, mas o mesmo não vem. Fico com medo de que algo possa ter acontecido. Se seu corpo tivesse caído no oceano no caminho até aqui, não haveria nada que eu pudesse fazer para o salvar.
Poderiam ter sido os deuses? Atena e Poseidon, poderiam ter descoberto que eu estava feliz pela primeira vez em décadas e o matado? Meus pensamentos seguem essa linha de raciocínio durante todo o dia, e quando o sol se põe, tomo uma decisão. Mesmo que não tenha acontecido nada grave, tenho que aceitar que não poderei ver Perseu para sempre. Ele é um semideus jovem, tem muito para viver. Não posso permitir que desperdice seu tempo comigo.
Faço uma promessa para mim mesma. Se Perseu retornasse, eu aproveitaria plenamente sua estadia aqui por treze dias e ao fim desse tempo, o mandaria embora para nunca mais voltar.
No dia seguinte, Perseu aparece, são e salvo, mas com pequenas contusões. Me dou conta de que talvez ele esteja com problemas com a pessoa que lhe deu a missão de me matar, afinal, o mesmo não a cumpriu.
Vejo o herói se posicionar no lugar de sempre. Quando vejo sua cesta abarrotada de frutas, tomo a decisão mais tola que eu poderia ter. Entre as pilhas de coisas que antigos guerreiros deixaram para trás, encontro uma bela faixa de seda branca e a uso para cobrir meus olhos. Minhas cobras sibilam, incomodadas. Se isso não funcionar, posso matá-lo.
Porém, se funcionar...
Quando Atena me amaldiçoou, ela foi cruel o suficiente para me deixar com a aparência de um monstro e o coração de uma mortal. A partida de Perseu me machucaria como uma flecha atirada no meu coração.
Subo na balaustrada, abro as asas e pulo. Plano até o chão com cuidado. Vejo a sombra de Perseu se levantar rapidamente, mas ele não recua, na verdade, anda em minha direção. Nesse momento, fico grata pela minha maldição. Não tenho que ver qual é a sua expressão. Se sente nojo ou... algo mais profundo.
Ele se aproxima e pega a minha mão. Sem dizer uma palavra, ele me leva até o seu lugar favorito e me ajuda a sentar.
Vejo sua sombra se movimentando enquanto prepara um prato para mim e resolvo quebrar o silêncio.
— E então? — lhe pergunto.
— O quê? — ele responde, ainda concentrado em sua tarefa.
Hesito por alguns segundos antes de dizer aquilo que ficou na minha mente durante dias.
— Ignorando as asas, as presas e as serpentes, sou tão bela quanto os mitos diziam? — questiono com as mãos firmemente apertadas no meu colo.
O vejo paralisar e ouço ele engolir em seco.
Imediatamente me arrependo de perguntar. Estou pensando que posso ter acabado de destruir o relacionamento mais verdadeiro que já tive quando sinto sua mão encostar na lateral da minha face.
Um arrepio de prazer sobe pela minha espinha e uma das serpentes se enrosca amorosamente no seu pulso, ele treme levemente, mas ele não se afasta.
— Com as asas, as presas e as serpentes, nenhum mito foi fiel o suficiente em descrever sua beleza. Mesmo se criássemos uma palavra, composta de todos os adjetivos que temos hoje em dia para beleza, não seria o suficiente para expressar o quão bela você é.
Fico sem palavras. Seu tom é tão sincero e direto, como se isso fosse um fato inquestionável.
Meu coração se enche de algo. Porém, a partir desse dia, não acredito que ele me pertença mais. É de Perseu.
A partir desse dia criamos uma rotina, ele chega e nós nos sentamos para comer ou deitamos lado a lado para conversar. Às vezes ele toca minha mão ou o meu rosto, e meu coração começa a bater de forma tão estrondosa que me afasto com medo de que ele ouça.
Uma vez, após eu me afastar, ele comentou:
— Não tenha vergonha dos seus sentimentos, Medusa. Se forem os mesmos que os meus, seria hipocrisia da minha parte rir, não é?
Então eu parei de me afastar de seu toque. Os dias passam. Em minha mente, enquanto aproveito meus dias ao lado de Perseu, uma ampulheta está contando o tempo que nos resta. O dia treze chega e com ele um novo sentimento enche meu coração. Tristeza.
Perseu chega em seu horário habitual e me chama. Não o respondo e dessa vez, também não desço. A venda está em meus olhos, mas não para protegê-lo e sim a mim. Me recuso a ver qual será sua reação quando eu disser o que eu preciso.
— Vá embora, Herói! Tolerei sua estadia por muitos dias e não lhe matei por pena. És apenas mais uma vítima dos Deuses e não me permitirei ser usada por eles para dar fim a sua vida. Parta e nunca mais volte, mortal. — digo com a voz mais fria que consigo.
— Não! De onde isso está vindo, Medusa? — sua voz soa desolada.
— Apenas aceite essas palavras, pois a partir deste momento, não lhe responderei mais nada.
Nunca me senti mais um monstro do que quando ouvi Perseu partindo, acreditando que tudo que eu disse era real.
Retiro a venda e o vejo se afastar lentamente, sua pose é de completa derrota.
Pensei bastante se deveria deixa-lo me matar, mas não posso fazer isso. Ao invés disso, vou passar o resto da minha existência relembrando os dias que passei em sua companhia.
Algo molhado escorre pelo meu rosto, até tocar meus lábios. Um gosto salgado misturado com algo estranho toma minhas papilas gustativas.
Imediatamente após ingerir isso, uma dor lancinante toma meu corpo. Um grito irrompe da minha garganta.
— Medusa! — ouço o grito desesperado de Perseu.
Meus olhos estão fechados pela dor. Meus joelhos se dobram e mal consigo respirar. É isso, minhas lágrimas devem conter veneno. O destino será meu carrasco no fim e mais uma vez, não terei controle sobre meu destino.
— Medusa, seu corpo... a maldição, o que está acontecendo?
Ouço sua voz, mas não entendo suas palavras.
— A maldição ela... se foi. Abra os olhos, Medusa.
Sua voz é tão suave, seu toque no meu rosto é tão terno.
Abro meus olhos lentamente e quando meu amor não se transforma em pedra, sinto toda a dor desaparecer. Ele limpa o rastro de lágrimas do meu rosto.
— Suas lágrimas... — ele olha admirado para a própria mão molhada. — Elas te curaram, sua maldição se foi.
— O que isso significa? — questiono com medo de que tudo seja um sonho.
— Isso quer dizer que se você aceitar. — ele tira do bolso um anel dourado e pega minha mão, uma pergunta no olhar. — Nada mais poderá nos impedir de sermos marido e mulher até o fim desta semana. Então poderemos trabalhar naqueles dez filhos.
Seu sorriso brincalhão me enche de esperança. Eu aceito e o beijo. Por que só um Herói como ele, se apaixonaria por uma Vilã como eu.
Merci pour la lecture!
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