dissecando Edison Oliveira

Uma gestante está com fome...


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FOME


Com o isolamento, todas as coisas um dia acabaram. Ainda restaram alguns resquícios da tão valiosa comida, mas nada que sustente uma família, ou uma mãe no oitavo mês de gestação.
Assim que quase nada restou, parti sem direção alguma, apenas com uma mochila nas costas, levando muito pouco, tanto para comer quanto para vestir, e só parei quando minhas pernas clamaram por piedade. Encontrei o que antes deveria ser um hotel, pois havia uma recepção logo na entrada, uma placa retangular com letras garrafais, quase totalmente apagadas. Havia também uma escadaria, e essa eu subi, muito devagar, debilitada, parando às vezes para segurar a barriga. Falei para ela que tudo ficaria bem, e segui, com dores terríveis, até dar de cara com a primeira porta do corredor. Nela, vi o número 22; minha idade, talvez um sinal de sorte.
Entrei, o cheiro de mofo entupiu minhas narinas, e assim que enxerguei aquela cama deitei-me as pressas. O lugar inteiro estava uma bagunça. Provavelmente por já ter sido visitado por algum outro viajante, ou talvez a camareira estivesse muito longe naquelas horas, mostrando o dedo do meio para o mundo enquanto ainda lhe restava alguma força. De todo modo, acabei pegando no sono muito rápido. Dormi, acabei não sonhando com nada (nem sou capaz de lembrar do último sonho que tive) e acordei com mais fome do que o habitual. A pequena Samara estava se mexendo, cutucando minha barriga, dizendo a seu modo que estava mais que pronta para uma pizza ou um frango temperado, e aquilo me fez começar a chorar, agarrar nos cabelos e abafar o som com um dos travesseiros.
Quis gritar, mas o medo fechou a minha boca com mãos fortes e tudo que me restou foi levantar e procurar por comida. Andei por todo o segundo andar, entrei em cada um daqueles quartos imundos, revirei cada armário e cada geladeira, atirei todos aqueles potes vazios no chão e nem mesmo os ratos apareceram porque eles também não existiam mais, virara comida, assim como todos os gatos e os cães. Voltei para meu quarto (aquele era agora o meu quarto) e cantei baixinho para Samara, apenas um som, uma cantiga de ninar que minha mãe dizia que cantava para mim quando os tempos eram outros, uma época onde sorrir era rotineiro e amar era sim uma coisa possível. Cantarolei por quase uma hora, acariciando minha barriga, sentindo às lágrimas escorrerem por meu rosto, até que provavelmente dormirei outra vez e irei acordar com o som de chuva, a única coisa que ainda existe e me faz lembrar do mundo de antes. Era um som maravilhoso, quase uma canção de ninar de Deus, e aquilo por alguma razão me fez sentir bem, viva, com vontade de prosseguir, seguir adiante, avançar até o limite e dar um início aceitável de vida para minha Samara.
Ouvindo a música de Deus, adormeci pela terceira vez em poucas horas. Acordei algum tempo depois, cansada e faminta. Seria capaz de devorar um boi inteiro, sem dúvida nenhuma.
Aquela sensação, a fome que estava me consumindo, durou por mais quatro dias. Foi um período difícil, quase fatal, onde pensei em simplesmente abrir a janela e pular por ela. Seria gratificante colocar um fim naquilo tudo, dar paz para minha Samara e descanso para mim, mas, prometi que não desistiria, que teria meu bebê fosse onde fosse, em qualquer ponto deste mundo, nem que precisasse andar até meus pés caírem. Levantei da cama com dificuldades (a tontura começava a me atormentar) e caminhei até onde havia jogado a minha mochila.
Larguei-a sobre a cama, a abri e tirei dali uma faca. Seu brilho incomodou os meus olhos. Sentei-me na cama outra vez, olhei para o chão, para o teto, respirei fundo. Apoiei a outra mão sobre a cama. Tornei a respirar fundo. Separei bem os dedos e comecei a cantarolar, bem devagar, pensando apenas em Samara e apenas isso, sentindo a lâmina da faca encostar em um de meus dedos, afiada, gelada e pronta, e a canção seguiu e seguiu até que a dor a interrompeu e apenas o meu grito era escutado, o lençol manchado de sangue, a faca caída, um de meus dedos jazendo a seu lado.
Gritei por muito tempo, segurando a mão com agora nove dedos, ainda não acreditando, apavorada, com medo de mim mesma, do que estava me tornando, e quando percebi já estava engolindo meu dedo amputado. Não havia sabor algum, apenas fome, e aquilo me fez devorar, deixar apenas pequenos ossinhos espalhados sobre o lençol. Senti a barriga mexer (Samara agradecendo, provavelmente) e após consumir minha própria carne, dei-me por satisfeita. Ainda estava com fome, mas haveria de esperar. Agora, encontrara uma solução parcial, uma fonte de energia até que a pequena nascesse.
E ela nasceu duas semanas depois, chorando, berrando para este mundo de merda que havia conseguido, que estava viva, inteira e pronta para seguir. Segurei-a com meu único braço (o outro havia sido devorado até o cotovelo) e quase sem forças, dei-lhe de mamar. Ela abocanhou o meu seio e mamou, com força e pressão, quase afogando-se, tossindo, mas ainda assim agarrada, bebendo e permanecendo viva. Fizemos daquele quarto imundo o nosso lar, e ali choramos, sentimos fome, sede, brincamos e aguardamos. Conosco, a fome. Sempre ela. Socando nossas entranhas. Quando ela está demais, insuportável, fazendo-me quase desmaiar, corto algum dedo.
O divido com Samara, que adora lamber os ossos. Ela ainda não é capaz de comer, mas o sangue a nutre de alguma forma. Percebo também que ela segue muito magra. E eu com apenas três dedos. Logo não poderei segurar mais a faca, então isso será o nosso o fim. Pensar nisso me entristece, me deixa irritada e passo a receber a visita daquele antigo desejo de abrir a janela e apenas pular.
Contudo, não farei isso. Prometi que minha pequena nasceria, e assim aconteceu. Irei criá-la até que esteja forte o suficiente, e essa é uma promessa de alguém bastante capaz. Darei o meu jeito. Preciso apenas manter essa faca sempre afiada.

19 Novembre 2020 01:00 1 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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La fin

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José Mazzaro José Mazzaro
Sigue así Edison!
November 25, 2020, 22:25
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