— Oh! Mas que coisa é aquela, Sarah? — falou Giovane, os olhos recém abertos, o indicador apontado para o chão.
As cobertas ainda estavam por cima dos dois, mas Sarah já estava acordada há muito mais tempo, uma insônia abrupta que vinha lhe perturbando desde que abandonara o vício na nicotina. Assustada, afastou o edredom e procurou pela causa do espanto do marido.
— Não vejo coisa alguma, — disse, vasculhando cada espaço do quarto iluminado pelos raios de sol da manhã de fevereiro.
— Como pode ser tão estúpida? Ali! No chão!
E lá estava a coisa assustadora, de um verde vivo, esparramada pelo soalho inteiro, cobrindo tudo, se alastrando do batente da porta até a escuridão que reinava debaixo da cama do casal. Era um tapete comum, nada felpudo, apenas liso, porém confortável, macio, de bordas mais grossas. Sarah olhou confusa para o marido, que seguia acuado em cima da cama.
— Está de brincadeira, por acaso? — ela quis saber, colocando o primeiro pé para fora da cama.
— Que coisa horrorosa! De onde isso saiu?
— Está no nosso chão há quase dois meses, meu bem. Talvez se trabalhasse menos e passasse mais tempo em casa, teria notado.
Giovane espiou novamente para o chão; enxergou o tapete, dominante, dono do espaço. Achou aquilo uma afronta, depois sentiu-se incomodado. Alguma coisa naquela decoração não estava certa, era repugnante, cabulosa, de dar arrepios. Abriu a boca para falar qualquer coisa e não encontrou a esposa a seu lado. As cobertas estavam jogadas de lado, e seus chinelos também haviam sumido. Por um curto, mas terrível instante, Giovane cogitou que Sarah pudesse ter sido engolida por aquele tapete, de alguma forma, tragada para um mundo subterrâneo e mortiço. Isso passou assim que a escutou chamá-lo lá da cozinha, anunciando que o café estava quase pronto.
Aliviado, afastou as cobertas e tocou um dos pés naquela coisa. Sentiu sua maciez, seu pé sendo envolvido, acariciado, ludibriado até provavelmente ser comido por aquilo. Recuou instintivamente, tornando a espiar para o chão.
— Não vai me pegar ainda, canalha! — resmungou entre os dentes, os dedos apertando o lençol.
Ficou ali por mais alguns minutos, observando, averiguando tudo de cima da cama, rolando de um lado para o outro, espiando pelas beiradas, pensando ter escutado uma coisa qualquer. Oito minutos se passaram até que a voz de Sarah surgiu pelo corredor, vinda da cozinha, fazendo-o sacolejar e prestar atenção.
— Vai ter que me trazer o café até aqui, — gritou Giovane, os olhos apontados para o tapete.
— Mas por quê?
— Não vou por meus pés nessa coisa!
A voz de Sarah pareceu resmungar e depois um instante de silêncio surgiu. Passaram-se dois minutos. Depois mais um. Até que Sarah finalmente apareceu no corredor e encostou-se no batente da porta, com os braços cruzados. Ela parecia contente. Estranhamente feliz.
— Isso é ridículo, — ela falou, um risinho cínico nos belos lábios carnudos. — De todas as suas façanhas, essa é sem dúvidas a mais vergonhosa delas, Giovane Silva Prado.
— Vá se foder! Por que colocou essa merda no nosso quarto?
— Porque é bonito. Já estava na hora de enfeitar um pouco essa casa. Você já pisou nele inúmeras vezes. Como pode não ter percebido?
— Jamais teria feito isso! — retrucou Giovane, recuando imediatamente ao encarar o tapete mais uma vez.
Escutou a esposa lhe falar sobre a decoração, sobre quanto custou tudo aquilo, sobre como ele era um péssimo marido e um ótimo trabalhador e por fim, disse-lhe que já lhe traria o café. Giovane quis agradecer, mas Sarah já havia sumido mais uma vez. Olhou para o relógio na cabeceira e ele marcava exatamente nove e quinze de uma manhã hostil. Nada naquele dia era agradável, e o cheiro de seu hálito começava a incomodar. Precisava escovar os dentes, mijar e lavar o rosto. Aquilo exigiria um esforço danado. Teria de pisar no tapete, e talvez ser devorado por ele. Sacudiu a cabeça, olhou na direção do corredor, viu as paredes de sempre, desceu o olhar e enxergou… A coisa. Sim. Ela também estava no soalho do corredor, apossando-se dele, consumindo, invadindo o espaço todo, avançando pela casa como erva daninha. Gritou por Sarah uma, duas vezes, até ela aparecer segurando uma bandeja com o café da manhã. Não parecia assustada. Novamente demonstrava tranquilidade, uma despreocupação que já começava a incomodar o marido, que seguia deitado, encolhido como uma criança temendo o bicho-papão.
— Que gritaria é essa, Giovane?
— Colocou essa coisa no corredor também?
— O tapete?
— Se quer chamá-lo assim.
— Pus na casa inteira.
— Porra! Mas…
E a bandeja já estava diante de si, o odor icônico de café lhe penetrando as narinas, o pãozinho fresco com a omelete, e Sarah em qualquer lugar, menos ali, onde deveria estar, protegida, com o marido sobre aquela cama desarrumada.
Remexeu na omelete, bebeu um pouco de café, espiou para a rua através da janela e viu aquele dia esquisito avançar, a sombra das árvores dançando sobre aquela coisa verde, indo e vindo como se estivessem no balanço do mar. Nisso olhou para o relógio e descobriu com espanto que já haviam se passado quarenta minutos, um longo tempo e Giovane seguia ali, acuado sobre a própria cama, a bexiga inflando e esmurrando sua barriga, fazendo suas bolas latejarem.
Perguntou-se o porquê de Sarah fazer aquilo tudo; cobrir o soalho inteiro com algo tão medonho. Depois, pensou se teria mesmo pisado naquilo como a esposa dizia. Está no chão há quase dois meses, jurava ela. Os pensamentos fizeram Giovane sentir náuseas, cansaço e algo que não sentia desde antes de seu casamento; Giovane estava inseguro.
Pegou a xícara vazia, segurou-a do lado da cama e deixou que caísse deliberadamente. Nada aconteceu. A maciez do tapete abafou até o ruído. A xícara permaneceu caída, a asa apontada para cima. Não houve sucção, o tapete não devorou coisa alguma. Giovane concluiu que o tapete não comia vidro.
— Seu negócio é carne, não é mesmo? — perguntou para o chão. — Então, porque não devorou a Sarah? — perguntou para si mesmo.
Pensou na reposta por diversos ângulos, avaliou cada possibilidade (em cada uma delas a esposa tinha algo maquiavélico em mente) e sua maior conclusão foi que o tapete ainda era um devorador carnívoro. Deitou-se, cansado, olhando para o teto. Ali não havia tapete. Era seguro como o colo de uma mãe.
Ouviu o telefone tocar em algum lugar da casa, e Sarah dizer alô logo em seguida.
Após sair até a varanda e encostar a porta, Sarah avisou que já podia falar. A voz do outro lado da linha perguntou como ela estava.
— Às vezes bem, outras nem tanto.
— É o Giovane, ainda?
— Quem mais seria? Ele só pensa em trabalhar. É praticamente uma visita aqui em casa.
— Isso não é de todo ruim, filha. Um homem precisa sustentar o que tem.
Sarah revirou os olhos.
— Sabia que diria isso, pai.
— É a pura verdade. Ou você acha que é barato manter uma esposa?
— Nem vou lhe responder uma coisa dessas. Como está a mamãe?
— Com tosse. Mas vai ficar bem. Ouça… Como ficou o tapete? Achou ele bonito?
— É lindo, — falou Sarah, sentando-se no degrau da varanda. — O Giovane acha que… Bem, também achou bonito.
— Que bom que gostaram. Sua mãe odiou a cor. Comprei na minha última viagem, de um ambulante chamado Calebe. Um velhinho bastante atencioso. Sua mãe não gostou dele também.
— A mamãe não gosta de ninguém, nem do senhor.
Ouviu-se uma gargalhada do outro lado da linha, e em seguida Sarah despediu-se do pai. Ficou sentada observando a rua, as pessoas passando para lá e para cá, absorvendo o sol, respirando fundo, escutando as buzinas e as crianças gritando e correndo.
Levantou-se sem pressa pouco depois, guardando o celular no bolso traseiro do jeans. Entrou pela porta da frente, chegou na cozinha, não encontrou o marido e concluiu que ele seguia deitado, com medo de um tapete, neurótico por algum motivo. Suspeitou que os remédios que ele usava para os nervos poderiam ser a causa. Quando Sarah fumava, sentia-se prestes a entrar em erupção quando lhe faltava um cigarro para enfiar na boca. Devia ser isso. Giovane estava nervoso, preocupado com o trabalho, talvez até mesmo com o casamento. Com sono, mas sem conseguir dormir direito, Sarah puxou uma cadeira e sentou-se.
Ficou ali por quase uma hora. Chamou pelo marido depois deste tempo, e lá do quarto não veio resposta alguma, nem sequer um resmungão ou xingamento.
— Pelo menos alguém consegue dormir nesta casa, — disse e em seguida, chamou por Giovane outra vez.
Nada. Apenas os pássaros cantando lá fora. Decidiu então ir até o quarto, chamando novamente no caminho (sem respostas, apenas a maciez do tapete encobrindo seus passos, acariciando seus pés, tornando a caminhada tão agradável possível) e após quase duas horas andando pela casa, Sarah sentia-se exausta, perdida, porém acolhida por aquele tapete que a reconfortou e a fez dormir pela primeira vez em dias.
Quando acordou, já era noite. A lua iluminava a casa inteira. Bocejou, se pôs de pé, sentiu-se estranhamente bem. Depois, chamou pelo marido. Ele não respondeu, mas Sarah tinha certeza que tudo estava bem.
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