– Sabes, miúdo, esta não é a primeira vez que me acorrentam. Ao contrário de ti, posso ficar aqui uma eternidade. – Um sorriso provocativo desenha-se nos lábios do kakoi.
Kai avança mais uma vez sobre ele e desfere-lhe um soco. Sente os nós dos seus dedos a latejar depois do golpe. Não está a chegar a lado algum. Já ali estão há mais de três horas, e ele ainda não lhes disse nada relevante. O seu ombro reclama da força exercida, o seu estômago da fome, e os seus olhos do cansaço. Acredita que até o prisioneiro está cansado, embora mantenha a fachada de que tudo aquilo o está a divertir.
– Isso não passa de um eufemismo.
O kakoi semicerra os olhos. – Quando me soltares, criança...
– Deixa-me adivinhar. Quando te soltares, irás fazer-nos sofrer por cada segundo? – Kai segue a voz, embora saiba de imediato a quem pertence. Reconhece-a em qualquer lado.
Annaleah, encostada à porta, analisa as suas unhas como se aquele kakoi acorrentado, no meio da sua cozinha, fizesse parte do seu dia-a-dia. Algo que, tecnicamente, quase faz.
Kai observa a rapariga entrar. Apesar da sua diminuta altura, sabe que ela é muito mais forte do que aparenta. Muito magra, com os maiores olhos azuis que alguma vez viu em alguém, já lhe salvou a vida incontáveis vezes. Os anos passados a seu lado a lutar fazem dela a pessoa em quem mais confia. Depois do seu irmão Aidan, claro.
Sai dos seus pensamentos, e obriga-se a prestar atenção ao que está a acontecer ao seu redor. É precisamente por causa de Aidan que aquele kakoi está à sua frente, acorrentado a uma cadeira. Sente um arrepio subir-lhe a espinha. Precisam de descobrir algo. Ele é a sua última oportunidade para descobrirem o paradeiro do irmão.
O prisioneiro solta uma gargalhada. – Contigo, farei muito mais do que isso. É uma promessa.
– Espero que tenhas aproveitado bem o teu milénio, depois de teres vendido a alma aos demónios – riposta Annaleah.
Ninguém sabe ao certo como os kakois se transformam neles próprios. Uma criança nasce com olhos escuros e oito anos depois é levada pelo exército kakoi para o lugar mais protegido em toda a Cidadela – o Quartel. Nos dez anos seguintes, ninguém põe os olhos sobre essa criança. Quando, por fim, ela deixa o Quartel, está completamente modificada e do lado do Estado. O que acontece lá dentro? Ninguém sabe. Porquê apenas crianças de olhos escuros? Também ninguém sabe. O Presidente faz questão de encobrir bem o que se passa lá dentro.
Para Kai, isso é irrelevante. Ele sabe como identificá-los e matá-los. Aliás, tanto ele como a rapariga sabem lidar com o que está à sua frente. E, se existe essa solução, então saber o que realmente acontece dentro daqueles muros é desnecessário para ele. Ou era, até terem raptado o seu irmão.
– Isso é tudo inveja, rapariguinha?
Annaleah, de olhos fixos no prisioneiro, cospe no chão. – Vocês metem-me nojo.
Kai sabe que está na altura de intervir.
– Há cerca de oito meses, vocês invadiram uma aldeia e mataram todos os habitantes, menos um. Um rapaz alto, com uma cicatriz na sobrancelha, cabelo preto, cerca de dezoito anos. Onde é que ele está agora?
Os olhos negros do kakoi saltam entre ele e a rapariga. Há algo na sua expressão que indica que este sabe de quem ele fala. Uma centelha de curiosidade sobre o assunto, nada mais do que isso. Contudo, os segundos passam e não há qualquer resposta.
– Porque o levaram somente a ele? – Volta a insistir.
– Quem é o rapaz para ti? – A voz do kakoi sai arranhada. É claro que está a ceder ao cansaço, o que só ajuda do lado de Kai. Quanto mais cansado o kakoi estiver, pior consegue defender-se e mais facilmente quebra e fala o que precisam de saber.
Kai olha com agrado para o seu trabalho. As correntes são de prata, o que por si só não dá muita margem de manobra para tentar escapar. Para adicionar a este factor, ele fez o favor de as apertar muitíssimo. Só consegue imaginar a agonia em que o kakoi se deve encontrar.
– Fiz-te uma pergunta primeiro.
– Não te consigo responder a algo que não sei, humano.
Kai abana a cabeça, num gesto de desdém.
– Se há algo que detesto mais do que mentiras, é chamarem-me humano com esse tom de desprezo.
Da cintura, retira a sua athame, deixando a lâmina transparente ser iluminada pela pouca luz que os circunda. O cabo é de prata, com um toque familiar na mão de Kai. Desde pequeno que empunha aquela arma. É tudo o que lhe resta dos pais, embora nunca os tenha conhecido. Morreram tinha ele quatro anos, segundo Paul – quem o criou – lhe contou.
Sem demoras, chega-a à fogueira que haviam improvisado, e deixa que a lâmina sugue a energia desta. Quando lhe parece pronta, aproxima-a do rosto do demónio. Vê o medo a espalhar-se nele antes de lhe encostar à bochecha a lâmina ardente. Um grito gutural sai da garganta do kakoi enquanto ele se contorce nas correntes, tentando afastar-se da lâmina.
– Vou perguntar-te só mais uma vez. Para onde levaram o meu irmão?
O prisioneiro ergue o rosto. Uma linha de sangue negro escorre-lhe pela face.
– Irmão? – Os seus olhos voltam a saltar entre os seus dois captores, a incredulidade espalhada no negro dos mesmos. – Não pode ser. Disseram-nos que a família dele estava morta.
– Quem vos disse isso? – pergunta Annaleah.
A sua voz está mais próxima. Consegue senti-la a aproximar-se, no entanto, não olha para trás. O seu olhar está preso no kakoi, seguindo cada palavra dita por ele, cada respiração sua. É o tudo ou nada.
– O próprio Aidan.
Nada o preparou para o que acaba de ouvir. Kai sente-se a perder o chão, confuso. É impossível. Não faz qualquer sentido o que o kakoi acaba de dizer.
Olha para ele, a raiva a tomar-lhe conta do corpo.
– Mais uma mentira? Não te mostrei já o que acontece quando me mentem?
– Faz comigo o que quiseres, mas não estou a mentir. Aidan disse-nos que a sua família estava morta. – O kakoi semicerra os olhos, focando-se apenas em Kai. – O que começa a fazer sentido, olhando para ti.
– Que queres dizer com isso? – Annaleah dá um passo em frente.
O kakoi aponta para Kai. – Nunca te sentiste diferente? Faria sentido responderes-me que sim. Muito explicaria os últimos oito meses sem qualquer desenvolvimento por parte do Aidan.
– Desenvolvimento do quê? Que estão a fazer ao meu irmão?
O kakoi ri-se, apenas.
– Porque diria ele isso, que a sua família está morta? – questiona, com a pressão na voz.
O sorriso desaparece do rosto do prisioneiro, e é substituído por uma expressão de calma.
Kai sente-se a ficar doente. A espera torna tudo insuportável. Há algo que lhe está a escapar, algo que desconhece, e que serve como divertimento para o kakoi. Procura por Annaleah em busca de ajuda, mas também ela está presa nas palavras do kakoi.
– Vocês, realmente não sabem? – O olhar negro salta da rapariga para o rapaz, focando-se, por fim, no último.
Um sorriso de escárnio volta a aparecer. – Aidan foi connosco de livre vontade.
O choque vem como um murro no estômago para Kai. Por momentos, não ouve nada do que continua a ser dito.
Sente Annaleah a atravessar o seu caminho e aproximar-se do kakoi, e repara que o peso da athame na sua mão desapareceu. Pouco depois, ouve gritos. Contudo, nada disso importa. A sua mente já tinha desaparecido dali.
Depois da Grande Guerra, a civilização foi dividida em duas parcelas – quem está na Cidadela, repleta de luxos e extravagâncias, e os que mal conseguem sobreviver nas Ruínas. Dentro dos muros salvaguardados da Cidadela, todos os que lá viviam, tinham em sua posse abundância. Enquanto, para lá desses muros, era a selvajaria.
Foi nesse mundo que Kai tentou educar Aidan após o encontrar perdido, e órfão como ele. Escondendo-se de noite e treinando-o de dia, conseguiu fazer do seu irmão uma arma – alguém capaz de matar qualquer kakoi que se atravessasse à sua frente, mesmo em tenra idade. Kai era excelente com armas, e excedia muitos na arte da luta. Possuía uma força absurda para um homem comum, mas mesmo assim Aidan não lhe ficava atrás.
O rosto do rapaz aparece na sua mente. Nesse mesmo instante, algo nele dói. A esperança foge-lhe.
Oito meses antes, o local onde estabeleceram residência, uma aldeia de resistentes na periferia da muralha da Cidadela, foi atacado. Kai e Annaleah tinham saído para caçar ao passo que Aidan, nesse dia, decidira ficar para trás.
Ainda consegue visualizar com todos os detalhes a destruição do lugar aquando o seu regresso. O pânico provocado pelo medo da morte de Aidan assolou-o como algo que nunca tinha sentido na vida. Durante semanas, pensaram que estava morto. Até começarem a ouvir rumores de que o exército kakoi tinha na sua posse um humano, um rapaz de dezoito anos com uma cicatriz na sobrancelha e com um poder sobrenatural. Diziam que ele era a encarnação do verdadeiro kakoi. Só podia ser ele, Aidan.
Desde então que o procuravam.
Acorda dos seus pensamentos para encontrar a rapariga a cortar o peito do seu prisioneiro. Dor e agonia desenham-se no rosto já tão marcado pelo ódio. O cabelo acobreado cola-se à testa devido ao suor.
– Isso é impossível, é mentira. Aidan tinha-vos um ódio maior do que nós os dois juntos – a voz, habitualmente melódica de Annaleah, encontra-se dura. – Diz-nos onde ele está.
– Mesmo que o quisesse fazer, não posso. Não sei para onde o levaram.
Annaleah prepara-se para mais um golpe de tortura, porém, Kai impede-a dando-lhe um toque no ombro. A rapariga olha para ele, surpresa pela interrupção.
Por momentos, sente-se desorientado. Não consegue acreditar que o kakoi esteja a dizer a verdade. No entanto, há uma pequena parte de si que se questiona. Terá sido isso que aconteceu?
Kai gosta de acreditar que é a pessoa que melhor conhece Aidan, mas todos nós temos pequenos segredos. E se o segredo do seu irmão é esse? Para ser honesto, Aidan nunca foi completamente normal. Mas o próprio Kai, também não. Neste mundo, inundado pelo desespero, quem realmente o é?
O seu estômago dá voltas, por falta de alimento e porque começa a sentir-se enjoado. De certa forma, é bom sinal não ter comido ainda. Deduz que estaria a vomitar tudo neste momento, se o tivesse feito.
O seu rosto contorce-se com o cansaço. Está claro que o kakoi à sua frente não tem mais nada para lhes dizer. Têm de arranjar outra solução, outro caminho.
Kai aproxima-se tanto do monstro que é capaz de cheirar o seu hálito imundo.
– Suponhamos que tens razão. Qual a razão para Aidan fazer isso? – questiona. A energia começa a fugir-lhe do corpo. – Qual o vosso interesse nele?
O kakoi abana a cabeça.
– Há possibilidades de ele estar na Cidadela?
– Talvez, sim.
Kai desfere mais um soco sobre ele. – Isso não é uma resposta.
– Não sei, mas é muito provável.
Ele dá um passo em frente. ´
– Que experiências fazem vocês no Quartel?
O kakoi encolhe os ombros, indicando que não vai falar mais. As informações cessaram.
Basta a Kai olhar para a irmã. Lentamente, ela estende-lhe a athame. Kai sente o cabo quente na sua mão. Por segundos, fica concentrado a olhar para a arma.
O kakoi já não sabe mais nada de relevante, nada mais que os possa ajudar. Determinado, guarda a arma na cintura e volta-se para o seu prisioneiro.
– Parece que não tens mais uso para nós, homem invencível.
E, com um único movimento, arranca-lhe a cabeça.
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