zephirat Andre Tornado

Numa praia do Japão, um estranho veículo chega à costa… O que aparentemente parece ser um náufrago trazido pela maré é algo mais, o que acaba por atrair a atenção de um senhor do tempo.


Fanfiction Série/ Doramas/Opéras de savon Interdit aux moins de 18 ans. © Doctor Who não me pertence. História escrita de fã para fã.

#doctorwho #lenda #japão #doutor #AmyPond #Onze #pescador #UtsuroBune #misterio
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Capítulo único


O Sol punha-se no horizonte, refletindo os seus magníficos vermelhos e dourados nas águas. Um dia de estio, um verão magnífico de calor e de luz. Os dias seguintes seriam iguais, observou ele, lendo as faixas carmim que se estendiam no céu, prenúncio de que o tempo se manteria estável e aprazível.


Iria recolher-se em breve à sua humilde casa de pescador. Nada de folguedos, nada de distrações. Preparava-se uma festa no largo comum da aldeia, um momento de convívio – varria-se o chão, montavam-se os estrados e as mesas, acendiam-se os balões de papel de arroz, preparava-se a fogueira para assar o peixe em grandes espetos, dispunha-se a barrica de sake e as respetivas malgas, traziam-se as travessas com as guloseimas.


Tinha de acordar cedo, estar pronto para fazer-se ao mar em mais uma madrugada de faina, por isso decidira ausentar-se da festa. Cioso que era do que fazia, não se permitia àquele tipo de indulgências, apesar dos seus frescos dezoito anos. Quando não tivesse qualquer obrigação, logo iria beber uma malga de sake, cantar com os rapazes, dançar com as moças solteiras. Se ele se fosse divertir, na manhã seguinte, de ressaca, cansado e mole, quem pescaria o peixe que depois se trocava no mercado ou se serviria nos festivais? Havia quem bebesse e cantasse, noite adentro e se levantasse com ele para entrar no barco. Mas depois dormiam e ele vigiava as redes, sem jamais descurar o seu dever.


Preferiu dedicar-se ao seu passatempo favorito, antes de se recolher a casa. Dar uma pequena volta na praia. Os pés descalços pisavam os calhaus, mergulhava uma mão na água para sentir o toque do oceano adorado. Cogitava, perfeitamente feliz, de que não precisava de festejos vazios para alegrar o seu coração simples. E sorria, sorriso simples e genuíno, a olhar para o mar.


E nesse dia, em particular, a sua contemplação devolveu-lhe uma cena inédita e intrigante que haveria de mudar a sua vida para sempre.


Ao longe, a boiar, contra a linha que dividia céu e mar, ele viu o que lhe pareceu um cesto fechado, como uma concha completa de uma ostra. Dois cestos idênticos, um que flutuava e que se assemelhava a uma panela de arroz enorme, outro a servir de cobertura, sobre o primeiro, com pequenas escotilhas vedadas com um material ceroso preto, selando a estrutura. A maré trazia aquilo para terra, mas depois ele abanou a cabeça, confuso, porque era impossível que as ondas operassem essa mecânica, estando a maré a vazar. Ou seja, haveria algum meio de propulsão que fazia o estranho barco definir o seu rumo e este era, naquele preciso momento, chegar a terra seca.


Aproximava-se paulatinamente da costa, deslizando sobre as ondas, e à medida que se tornava mais próximo ele percebeu que a nave tinha o tamanho suficiente para transportar alguém no seu interior – um único passageiro que também seria o piloto.


Ele não recuou, apesar de tremer assustado. Contraiu-se, curvando as costas, a garganta a doer-lhe por se forçar a engolir quando a boca seca não tinha qualquer saliva, preparado para fugir e dar o alarme, indicando o perigo que ameaçava a aldeia. Por outro lado, o seu orgulho e a sua curiosidade faziam-no aguardar estoicamente pela acostagem daquele cesto duplo gigante.


Já era de noite quando o barco estacionou na praia, parando na rebentação mansa da ondulação. Os primeiros sons da festa chegavam até ele e Shunji continuava no mesmo lugar, especado, à espera de saber o que iria suceder. Olhou para o céu e viu a Lua cheia, redonda, misteriosa e branca. Murmurou uma prece.


E aconteceu o que ele, mais ou menos, previra. O cesto, que não era nenhum cesto, o material era brilhante e sedoso como um kimono da Senhora do castelo, liso e resistente como a lâmina da katana do Senhor do mesmo castelo, abriu uma escotilha e uma rampa desceu como uma língua de dragão a desenrolar-se até aos calhaus.


O coração de Shunji batia desvairado contra as costelas. Os seus lábios moviam-se em surdina, repetindo a oração aos deuses das águas. Sabia que podia ser uma praga, por alguma ofensa que tivesse feito, mas não se conseguia lembrar de algum gesto ou pensamento menos próprio. Também podia ser uma benesse, mas também não se sentia suficientemente meritório para obter uma graça divina. Então, estava nessa hesitação, vacilando entre o terror e o êxtase.


A escotilha do barco iluminou-se como se uma estrela fulgurante se tivesse acendido no seu interior e uma silhueta surgiu, flutuante e majestosa. Shunji, num reflexo, levou os joelhos ao chão e dobrou-se numa vénia que lhe fez tocar a testa nos calhaus. O vulto movia-se com uma nobreza tal que ele se sentiu sujo, indigno e vulnerável. Continuava a gaguejar a oração, atropelando as sílabas, trocando as palavras, num nervosismo crescente. O corpo aquecia-lhe numa febre e ele perdia a sensibilidade nos dedos das mãos e dos pés.


Estava mais assustado e encolhido do que um coelho apanhado num laço. Gemeu, estremeceu, abanou a cabeça e as vértebras do pescoço estalaram. Ouviu um riso fresco e o espanto foi tanto que ele se esqueceu da deferência, do medo e do perigo e ergueu os olhos.


Viu uma mulher, a mulher mais linda do mundo. As suas roupas eram inusitadas, diferentes, indecentes, moldavam-lhe as curvas femininas revelando um corpo esguio, alto e magro, roupas que a cobriam do pescoço até aos pés num tecido faiscante, semelhante ao material daquele estranho barco que a trouxera. Calçava botas altas iguais às usadas pelos forasteiros que vinham do Ocidente e que visitavam o castelo, de vez em quando. A mulher tinha os cabelos longos, negros como a plumagem de uma gralha, que se estendiam pelas costas até às coxas num manto magnífico. O rosto era branco e harmonioso, da tonalidade da mais fina porcelana – uns olhos grandes e redondos, ornados de belos cílios, o nariz pequeno, a boca uma flor que desabrochava num sorriso.


Deu por si a corar estupidamente, o sangue a afluir numa enxurrada para as suas faces. Estava enfeitiçado e não conseguia desviar o olhar. Reparou que a mulher transportava uma caixa nas mãos, embrulhada em papel dourado. Ele ofegou e engasgou-se, houve um ruído estranho que se lhe escapou dos lábios que era como um ronco.


A mulher substituiu o risinho fresco por palavras. Uma pergunta, uma declaração, outra pergunta. Shunji não percebeu o que ela lhe dizia, era uma língua estrangeira, diferente do vernáculo que se usava na aldeia, diferente do discurso rico e elaborado que o Senhor do castelo empregava nos seus discursos aos camponeses. Também não soube afiançar se ela tinha mesmo falado, ou se a escutara nos seus pensamentos. A voz era outra maravilha, num timbre de ave canora que encantava e seduzia.


Mesmo assim, ele respondeu-lhe:


- Senhora, encontro-me ao seu dispor. Por favor, aceita o meu serviço, nobre Senhora – implorou ele, voltando a colar a testa aos calhaus da praia.


A mulher expressou alguma preocupação e fez uma outra pergunta. E Shunji só repetia:


- Senhora, ordena e eu obedeço.


Ela calou-se, com um “hum” intrigado e ele completou:


- Está na minha aldeia, Senhora. Somos pobres pescadores. Vai haver uma festa. Devo chamar o venerável ancião que a conduzirá ao castelo do meu Senhor. O Senhor saberá recebê-la com o decoro devido. O Senhor poderá compreendê-la. Eu não sei falar essa língua de pessoas finas. Agradeço a graça de permitir que lhe fale nestes modos tão ordinários, minha Senhora. Agradeço a graça de me escutar, minha Senhora.


A ventania que atravessou a praia inesperadamente chegou-lhe aos ossos e Shunji tremeu. Escutou um barulho incaracterístico, metálico, abrasivo, espadas com espadas e um lamento, algo que ele nunca tinha escutado antes, quase animalesco, quase sobrenatural. Um rangido, o som da madeira a estalar, uma baforada de calor, uma besta a exalar um suspiro. A seguir, um grito.


- Ah! Não cheguei a tempo. Que infortúnio! Bem, vamos ter de remediar isto.


Uma voz masculina, alegre, como a de um embriagado com demasiado sake nas veias. Ele tremeu outra vez, oscilando entre o calor e o frio, sem controlo nas funções do seu físico que reagia mal a toda aquela comoção. Primeiro o barco, depois a mulher, agora um homem.


- Oh… não chegaste mesmo a tempo. Isso é um problema? Não me pareceu um problema, se queres que te diga… É só uma correção de navegação.


Uma terceira voz. Feminina, jovial, a soar como o riacho de montanha a saltitar fresco por entre os seixos cobertos de musgo. Qualquer coisa se equilibrou e tangeu, um acorde perdido de um shamisen.


- Hum, terá de ser uma grande correção de navegação, Amy.


- É preocupante? Não me pareceu preocupante, Doutor.


- É preocupante. Ela tem a caixa consigo e eu não posso deixá-la usá-la.


- O que tem a caixa? Não me vais contar, Doutor?


- Não te posso contar, Amy. Se o fizesse teria de apagar a tua memória a seguir, como já antes fiz a uma outra companheira…


- Ah! Isso é terrível!


- Deveras, minha querida. Não te quero apagar a memória por causa de uma Floripia.


- Floripia?...


- Apresento-te uma nativa de Floripia. – O homem baixou a voz e sussurrou: – Não interajas com ela, deixa-me tratar disto sozinho. Parece uma mulher, mas não o é e bem… não gostam de outras criaturas que se parecem com mulheres.


- Eu não me pareço com uma mulher, Doutor! – zangou-se ela. – Eu sou uma mulher.


- Ah, pois… Então! Aqui estamos! Comecemos!


Gente a mais na praia, pessoas desconhecidas, visitas e ele não conseguia reagir, levantar-se, encará-los, perguntar-lhes se estavam ali para a festa. Talvez estivessem e ele a fazer uma cena de kabuki. Devia ser um bom anfitrião, falhava miseravelmente, tolhido pelos seus receios e pela sua vergonha. Não passava de um pobre pescador e se se tivesse recolhido a casa mais cedo não estaria ali com aquele dilema, aquele problema, uma confusão, sem articular um pensamento decente. Lamentável! Censurável…


Um resfolegar zangado.


- Doutor!! Já não me posso divertir.


A mulher bela falara e ele, oh, salto no coração!, e ele já percebia o que ela dizia. Compreendia-os a todos, devido a algum milagre. Nova estranheza. Tinha percebido o diálogo do casal, agora percebia a mulher bela. O que estava a acontecer? Mordeu os lábios, envolvido naquele terror, açoitado pelas suas dúvidas, esticado entre o dever e uma ousadia que não possuía. Todos eles falavam o seu dialeto, ele compreendia-os. Falavam normalmente, formando palavras com a boca e dizendo-as em voz alta, mas ele percebia-as dentro da sua cabeça, um discurso límpido e perfeito, ecos, reverberações, labaredas. Sons transformados em cores.


O homem respondeu:


- Claro que te podes divertir, mas não neste lugar, nem neste tempo. É demasiado confuso para os humanos. É uma correção na navegação e não gosto de fazer este tipo de… correções.


- És demasiado sensível – tornou a mulher bela.


- Oh, não creio sê-lo. Sou apenas… cuidadoso.


- É só uma aldeia de pescadores. Foi o que o Shunji me contou.


- Quem é o Shunji?


- Shunji, porque não te levantas?


O seu ombro enrijeceu ao sentir uns dedos delicados a envolvê-lo. Como sabiam o seu nome? Ele não tinha dito o seu nome. Os tremores intensificaram-se e ele resolveu arriscar. Volveu os olhos para a mulher bela que tinha uma cara zangada e os braços tensos a segurar a caixa. Essa postura não lhe quebrou a beleza, todavia. Antes a tinha acentuado, vincando os traços da excentricidade daquele rosto deslumbrante.


Olhou para o lado esquerdo e viu a segunda mulher. Usava o cabelo solto, da cor do fogo, vermelho como sangue e o ar fugiu-se-lhe do peito. Nunca vira cabelo daquela cor. Olhou para o lado direito e viu o homem. Tinha um laço ao pescoço e vestia-se de forma esquisita. Todos eles se cobriam com tecidos inéditos, de corte diferente, que lhes mostravam as pernas e os braços. Ele pestanejou muito depressa – começava a achar que estava a alucinar, tomado por um ataque de insanidade.


- Shunji… é o teu nome, não é? – perguntou a mulher do cabelo vermelho.


- Amy, deixa-o. – O homem dobrou as costas, bateu com as mãos uma na outra. Inclinado sobre ele, disse-lhe: – Bem, Shunji. Muito obrigado por este momento de demonstração de verdadeira hospitalidade… mas já não precisamos da tua ajuda. Iremos resolver isto a partir de agora. Podes voltar à tua festa.


- Foi ele que me recebeu – cortou a mulher bela. – Ele deve ficar.


O homem endireitou-se e pigarreou. Sacudiu a mão direita. Gostava de falar com as mãos.


- Nós não precisamos mais dele. Ele pode ir à sua vida. Dá-me a caixa e podemos ir todos à nossa vida.


- Não o vou deixar. Ele fica comigo.


- Violet, não precisamos mais dele. Desfaz a ligação.


- Já não me chamo mais Violet. Agora sou a Tulip.


- Essa tua mania de mudares de nomes em cada viagem…


- Doutor!


- Sim, Amy?


- O que fazemos com o Shunji?


Ele sentou-se sobre os calcanhares, perplexo com a discussão descabida que acontecia entre eles, sem qualquer propósito ou objetivo. Eram só palavras vãs, debate inútil. Nunca tinha visto ninguém falar daquela maneira tão vazia.


Reparou numa casa azul quadrada estacionada na praia, junto aos montes que a separavam da floresta e crispou uma sobrancelha. Não se lembrava daquele abrigo estar ali antes.


A mulher do cabelo vermelho estendeu-lhe uma mão e ele saltou, amedrontado com o gesto repentino, pondo-se de pé.


- Olá Shunji. Chamo-me Amy e sou a companheira do Doutor. Como estás?


- Deixa-o, Amy. Não vamos precisar dele – insistiu o homem que parecia verdadeiramente aborrecido por ter de lidar com a sua presença. E ele sentiu-se envergonhado por estar a ser um anfitrião tão terrível, ao ponto de o ignorarem.


Ele desdobrou-se em vénias e mesuras. Murmurou agradecimentos, preces, tentou uma frase coerente, a voz sumiu-se-lhe na garganta, porém, quando notou os olhos da mulher bela a fixá-lo com a cobiça de uma serpente mortal.


O homem colocou-se entre ele e a mulher bela, desfazendo o contacto visual.


- A caixa, Tulip. Não queres que te confisque o teu veículo, pois não?


- Essa barcaça lamentável? Nem sei como consegui atravessar o oceano a bordo desta nave patética.


- Tivesses escolhido melhor.


- Não consegui… – lamentou-se ela, compungida. – Não tive tempo… Estava a fugir e descurei todos os preparativos.


- Estavas a fugir de mim.


- Era de ti? Pensei que fosse de uma mulher de cabelos loiros curtos, que usa suspensórios para segurar uma calças largas.


- Não sei quem será essa mulher. Tu estás a fugir há três séculos de um senhor do tempo. Foi o que a TARDIS me contou. Em princípio, serei eu, esse senhor do tempo. E agora, a corrida termina, Tulip. Não vim de tão longe para que me deixe enganar e desista do meu propósito, quando tu tens a caixa contigo. E onde estamos, afinal? Ah, parece-me o Japão feudal. Por volta do século XIX pela cronologia antiga da Terra. Continua a ser o Japão feudal, antes do ressurgimento Meiji. Uma época fascinante, mas de algum obscurantismo. Daí que o nosso amigo Shunji se mostre tão apreensivo. Assustaste-o! Não o devias ter assustado. Se te preocupas tanto com as criaturas com quem fazes o primeiro contacto deverias ser um pouco mais gentil e não os deixares reduzidos a essa carcaça trémula. Os humanos são frágeis, já te tinha contado várias vezes.


- Eu sei! – rugiu a mulher bela, contrariada. – Eu sei. Por isso adoto nomes de flores.


- Shunji, não estás a perceber nada, pois não?


Ele voltou-se para a mulher do cabelo vermelho.


- Como… como sabem o meu nome?


- Foi a TARDIS.


- O… quê? O que é isso?


Deu por si a beliscar-se para se assegurar de que não estava a dormir e a sonhar.


- A caixa, Tulip – exigiu o homem, impaciente, estalando os dedos diversas vezes.


A mulher bela revirou os olhos. Bufou, rosnou, fingiu que chorou. Então, parecendo genuinamente fatigada e derrotada, baixou os braços, colocou-os às ilhargas e a caixa que segurava ficou a flutuar no vazio. Shunji abriu a boca ao presenciar aquele fenómeno de levitação. O homem apanhou a caixa e colocou-a debaixo do braço.


- Portaste-te bem, Tulip. Não voltes a roubar o que não te pertence.


- Nem pertence a ti, Doutor! – ciciou a mulher bela, irritada.


Shunji levantou um dedo.


- Perdoem-me… perdoem-me a interrupção. Estamos a preparar uma festa na aldeia. Gostaria de vos fazer o convite para se juntarem a nós, ficaríamos muito honrados com a vossa companhia… irei chamar o nosso venerável ancião para recebê-los, não posso ser eu a fazer as honras da aldeia. Sou apenas um simples pescador.


- Já recuperei o engenho e a minha missão aqui terminou – interrompeu o homem, que parecia subitamente com muita pressa. – Muito obrigado, Shunji, pelo amável convite, mas iremos decliná-lo. Amy, vamos regressar. Temos de devolver o engenho aos Ik’Ik antes da lua colidir com o planeta.


A mulher do cabelo vermelho saltitou até ao homem.


- Mas se a lua vai colidir com o planeta…


- Os Ik’Ik vão poder salvar-se se tiverem o engenho.


- Levaste três séculos para corrigir… esse facto? Ajudar os Ik’Ik? Com um engenho misterioso dentro de uma caixa dourada?


- Perguntas e mais perguntas! Um senhor do tempo também necessita de… tempo! E eu tenho uma máquina do tempo.


- E a Floripia?


- Ela vai regressar na sua nave, nós temos a nossa – respondeu o homem admirado, como se tivesse constatado o óbvio. Penteou uma franja descomunal, que se pendurava sobre as sobrancelhas, com a mão que tinha livre.


- Pensava que lhe irias dar boleia na TARDIS, afinal ela queixou-se que está a viajar numa sucata…


- Não posso ter as duas na TARDIS. Já te expliquei, não devem interagir. Vamos!


- Oh!... Não podes ter duas namoradas na tua TARDIS, ao mesmo tempo? – troçou a mulher do cabelo vermelho, cruzando os braços.


- A Violet… a Tulip não é a minha namorada. Nem tu, Amy Pond! Quando viajo pelo Universo ando demasiado ocupado para me distrair com… detalhes.


- Detalhes.


- Sim. Detalhes.


- A Violet… a Tulip podia ser facilmente um detalhe.


O homem mostrou a caixa que segurava com as duas mãos.


- Isto é mais importante, logo, maior do que um detalhe. Shunji!


Ele colocou-se em sentido. Assentiu diversas vezes, mordendo as palavras que não conseguia pronunciar, de obediência e de cordialidade.


- Muito obrigado pela tua cooperação. Será melhor que regresses à tua aldeia.


- Irei chamar o venerável ancião… – gaguejou.


- Não. Não. Deixa-te disso. Não precisamos do teu venerável ancião. Podes fazer-me um favor? Devolve a Tulip ao mar. Ela tem a sua nave e apesar das queixas, ela sabe que é bastante resistente e adequada. Não vai ter qualquer problema em sobreviver. Compreendes? Veio do céu e fez uma grande viagem.


- Veio do céu?...


- Sim! Das estrelas!


- Sim, Senhor. Sim, Senhor. – E ele dobrou-se numa vénia.


- Agora… Sem a minha TARDIS a linha de comunicação vai perder-se e vão deixar-se de entender. Os aldeões são supersticiosos. Não vais querer dar explicações sobre um demónio que convocaste das águas, Shunji.


- Ah!... – Ele resfolegou e deu um passo atrás. – A Senhora não será…


- Sim, ela é um demónio. Cuidado.


- Por que motivo estás a assustá-lo, Doutor?


- Só uma pequena precaução. Os de Floripia não são de fiar, Amy. – Voltou-se para a mulher bela e agitou a mão com que se penteara. – Tulip, deverás utilizar o cloreto de sódio disponível na água do mar, reciclá-lo e transformá-lo em combustível para os teus motores. Descobre outro planeta. Deixa a Terra ou iremos encontrar-nos outra vez. Não é um aviso, é um… conselho. Poderás até reformular-te numa nova flor. Qual a que se segue? Uma rosa?


- Camellia!


- Ah… excelente escolha. Não voltes a roubar nada ou virei atrás de ti. Combinado? Dois conselhos, portanto. Nada de Terra, nada de roubos.


- Não prometo nada, Doutor. Cobiço coisas diferentes. O que está na caixa…


- Ah! Uma camélia. Perfeito! – interrompeu o homem elevando a voz. Não se podia saber o conteúdo da caixa. – Amy, conheces a ópera de Verdi, La Traviata?


- Não, não conheço.


- Depois de visitarmos os Ik’Ik iremos para Itália e vamos assistir à estreia dessa ópera no La Fenice de Veneza. O que me dizes?


- Só se formos passear de gôndola também.


Shunji viu o estranho casal entrar na casa azul. Fecharam a porta e a estrutura desatou a oscilar, a vibrar, a zunir. No espaço de um suspiro, desapareceu e ele cobriu a boca com as mãos, completamente atarantado com o fenómeno.


A mulher bela sorria-lhe na praia. Estática como a pintura de um biombo.


Shunji pestanejou, inquieto. Não foi preciso convencê-la, obrigá-la, empurrá-la. A mulher bela regressou voluntariamente para o seu estranho barco. Dispensou-lhe palavras amáveis que soaram a uma despedida eterna, mas ele já não a compreendia. A rampa recolheu-se, a escotilha encerrou-se, a estrela fulgurante apagou-se no seu interior. E depois o cesto duplo deslizou pelas águas calmas, refletindo a luz pálida da Lua cheia que tudo tinha testemunhado desde o firmamento calado.


Ele foi para a aldeia, arrastando os pés, transportando o peso daquela história. Sentou-se no chão, junto aos outros rapazes e pediu sake. A tia estranhou.


- Não te tinha ido deitar, Shunji? Para acordares cedo amanhã, para ir para o mar?


- Sake!


Bebeu até que o corpo adormeceu e ele esqueceu-se do que tinha visto na praia.


No dia seguinte não foi para o mar. Deixou-se estar deitado na sua enxerga, a cismar, calado e inerte, com o teto esburacado da sua cabana, a suspirar pela Lua, pelo ontem, pelo impossível. Ainda mole e sem forças, resolveu levantar-se depois de horas de contemplação e mudez. Encontrou-se com o venerável ancião a quem contou o que o preocupava.


Uma estranha mulher tinha sido trazida pelo mar, a bordo de um barco oco, que era como que uma panela de arroz com uma cobertura. Descreveu-a como sendo linda, sorridente, misteriosa, inatingível. Alguém que não pertencia àquele mundo. Uma deusa. Invocava flores e maravilhas. Falava numa língua estrangeira. E trazia consigo uma caixa dourada.


Repetiu essa história nos serões da aldeia, durante um ano inteiro, para entretenha dos demais. Deixou de ser pescador – no mar estava a lembrança dela e ele temia sucumbir ao desejo de se juntar à mulher no oceano, afundar-se e desaparecer num abraço ilusório de água fria e vazia.


Passado esse tempo, esse ano de indolência e miséria, cansou-se da desconfiança dos aldeões e da sua troça. Riam-se sempre dele quando contava a história da mulher – e havia só uma mulher. De alguma maneira, a lembrança do casal, o homem do laço no pescoço e a mulher do cabelo vermelho, a casa azul que se tornara invisível, ficou esbatida na sua mente e ele acabou por esquecê-los ao ponto de nem sequer conseguir ligá-los de uma forma coerente ao acontecimento extraordinário da mulher bela na praia, como se a sua memória tivesse sido afetada, tornando-se confusa e irreal.


Então, após um ano, numa madrugada límpida, de coração pesado e alma contraída, fez uma trouxa e partiu da aldeia.


Nunca mais ninguém o viu e esqueceram-se daquela fantasia.



***



Anos mais tarde, muitos anos mais tarde, um velho conheceu um escritor durante um passeio num jardim de Tóquio e contou a história da mulher que caíra na Terra a bordo de um barco oco, que carregava uma caixa e que falava uma língua diferente.


O escritor, impressionado, disse ao velho que iria escrever a história dele e o velho, que tinha sido outrora menino deslumbrado de uma aldeia costeira, que conhecera o pescador Shunji que havia desaparecido numa madrugada de inverno, divertido e encantado com o interesse de tão ilustre ouvinte, concordou.


E a história de Shunji e da sua deusa, depois de escrita e recontada às gerações vindouras, tornou-se lenda.

6 Juin 2020 10:40 2 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
3
La fin

A propos de l’auteur

Andre Tornado Gosto de escrever, gosto de ler e com uma boa história viajo por mil mundos.

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Karimy Lubarino Karimy Lubarino
Olá! Faço parte do Sistema de Verificação e venho lhe parabenizar pela Verificação da sua história. Eu confesso que assisti a poucos episódios dessa série, mas lembro de algumas coisas. Foi bem legal relembrar sobre o Senhor do Tempo. Sobre a história, achei interessante você ter mantido o nome do personagem Shanji oculto durante um tempo, isso fez com que a curiosidade sobre o nome dele e quem ele realmente é aumentasse a cada parágrafo. E eu adorei quando Shanji percebeu que conseguia entender o que os recém-chegados falavam. O legal é que a surpresa dele, como foi colocada, se tornou minha surpresa também! Foi engraçado e interessante. A sinopse do conto também é interessante: não entrega muita coisa sobre a história e, apesar de ser curta, já consegue chamar atenção e intriga. A ambientação é algo complicado, mas você fez grandes coisas expondo a forma de vida de Shinji. Eu gostei bastante de como as crenças de Shinji foram reveladas através do temor dele, através do nome "Lua" em letra maiúscula, pela forma como ele reagiu ao perceber que não estava tão errado quanto ao que vinha do mar. Também preciso dizer que gostei da forma como o cenário foi montado de forma leve, com informações precisas, dispensando o desnecessário. Contos não costumam ter construções de cenários pesados, alguns sequer mostram os cenários, mas você conseguiu mostrar o que o personagem via sem deixar o texto maçante. Confesso que, depois que todos partiram, fiquei bastante preocupada com Shanji. Achei que ele pudesse fazer uma besteira depois de tudo o que viu e depois de perceber que as pessoas de sua aldeia não acreditavam nele. Sobre a gramática e ortografia, gostaria de apontar algumas coisas que encontrai no texto, para caso você o deseje revisar no futuro: "noite a dentro e se levantasse" em vez de "noite adentro, e se levantasse"; "mais próximo ele percebeu" em vez de "mais próximo, ele percebeu"; "até às coxas" em vez de "até as coxas". São coisas pequenas, que não atrapalham a leitura. Por fim, gostaria de dizer que achei bem interessante o final. Depois de tudo, apesar de ninguém ter realmente acreditado no que Shinji contou, a história dele se perpetuou como uma lenda e ecoou por gerações. Parabéns pela história :).
September 22, 2020, 15:38

  • Andre Tornado Andre Tornado
    Oi! Muito obrigado pelo comentário e sobretudo por teres lido a história. Esta história fez parte de um projeto de uma outra plataforma, em que o desafio consistia em criar histórias de Doctor Who. Não quis uma história centrada no Doutor, então tivemos tudo visto na perspetiva de Shinji, o pescador. Quanto aos erros apontados, permite-me discordar. Um abraço! September 24, 2020, 17:17
~