Lá pra fora era assim, um campo entre as casas e a lavoura atrás. Do outro lado da estrada de chão tinha um açude, aquele que teu avô viu uma bola de fogo em cima.
— Isso é mentira, tio!
— Prova que não é.
— Ai, isso não tem como.
— Então escuta o que eu tô te falando. A lenda era a seguinte:
Tinha que ser o sétimo filho homem e sempre acontecia na lua cheia. No campo, naquela época, o céu era diferente. Quando a Lua Cheia brilhava na noite ela era a rainha da terra. Eu ficava admirando aquele brilho na varanda do chalé. O açude que ficava na frente ganhava uma tonalidade de azul que nunca encontrei semelhante.
É um cachorrão preto, peludo e grande. Os olhos são vermelhos, dentes enormes e uma fome incontrolável. Ele invadia os galinheiros e comia as galinhas, se rolava na merda delas e depois fugia.
— Já atacou gente?
— Já. Tua tia.
E eu sempre ouvia histórias. Teve uma vez que uma mulher voltava para casa depois de um bailão quando foi atacada por um enorme cachorro. Naquelas redondezas já se comentava sobre um cachorro grande que estava comendo galinhas de madrugada. A mulher conseguiu sobreviver, mas teve todo o seu vestido vermelho rasgado pelas garras do animal. No outro dia de manhã, um bêbado daquela debanda apareceu desmaiado no meio da estrada. Entre os dentes e debaixo das unhas do homem eles encontraram retalhos de pano vermelho.
— E o que fizeram com o cara, daí?
— Mataram. Naquela época era comum esse tipo de coisa, todo mundo andava armado e a gente podia comprar uma pistola em alguns botecos. Morria muita gente por besteira, também.
A história do Cão do Inferno é contada em vários lugares. No interior ele existe. É uma figura comum, um medo compartilhado. Todas as famílias têm histórias com esse cão. Aqui na cidade não existe mais isso, mas lá pra fora, eu te garanto que o cão é real.
Eu gostava de olhar a lua. Ela sempre me chamava quando eu era adolescente. A gente não tinha muito o que fazer depois que o sol se punha, era o sol que dava a hora de dormir e a hora de acordar. Mas eu ficava admirando a lua a noite adentro. Ela me compreendia, às vezes. Foi numa dessas noites que eu ouvi um barulho no galinheiro. Pensei que fosse o vizinho tentando roubar um garnizé, então peguei a carabina do meu pai e fui lá ver o que estava acontecendo. Teu tio nunca teve medo de nada. Eu conseguia enxergar tudo por causa da l da lua que brilhava cheia no céu.
Foi então que eu ouvi aquele rosnado. Um grunhido veio do galinheiro, minhas pernas pararam, perdi a força e congelei. Havia alguma coisa que não era desse mundo naquele galinheiro, eu sentia. Ele sabia que eu estava ali. Através das frestas das madeiras eu vi aqueles olhos vermelhos, um focinho preto e enorme. O cão saiu do galinheiro e veio caminhando até mim. Era enorme. Eu já era um guri feito e aquele animal tinha a minha altura. Era peludo e o pelo era muito escuro, como o céu daquela noite. Eu não consegui correr.
Além do medo, outra coisa me prendia ali. Aquela criatura também tinha uma ligação com a lua. Acho que foi por isso que ele não me atacou. Ele viu algo em mim que refletia dentro do olhar selvagem. Eu não lembro direito o que aconteceu depois, mas eu ouvi um tiro, daí eu vi meu pai na porta de casa. A criatura já tinha sumido.
— O que era aquilo, pai?
— Um lobisomem, meu filho.
Nunca mais eu vi aquele cão de novo, mas ele nunca deixou de me assombrar. Ele vinha nos meus sonhos de madrugada, algumas vezes conversava comigo. Outras, eu ficava encarando aqueles olhos vermelhos. Eu sentia a presença dele nas noites, conseguia perceber seus movimentos pelo meio do mato às noites de Lua Cheia. Eu passava as madrugadas não só olhando para a lua, mas também procurando a criatura.
Numa madrugada, tua tia foi atacada por alguém ou alguma coisa. Essa é uma história muito mal contada, mas eu lembro que a gente foi até a casa dela naquela noite e ela disse que tinha sido atacada por um monstro. Teu avô tirou o três-oitão do cinto e correu atrás do lobisomem mato adentro. Eu lembro que ouvi uns tiros, mas nada de corpo, voltou sozinho. Diz ele que acertou de raspão um tiro.
Naquela semana nublou e choveu todos os dias. Nem lua minguante, nem cheia, apenas a memória do olhar vermelho do cão. Numa noite de trégua, céu nublado e muito barro, eu estava indo para a casa da tua tia quando um homem debilitado passou por mim. Ele usava um casado muito grosso e preto, parecia estar sangrando. Quando chegou perto de mim, caiu. Fui ajudá-lo. Quando eu olhei para o homem, reconheci o olhar no mesmo instante. Não era vermelho como quando estava possuído pelo cão, mas os olhos nunca mentem o selvagem que habita um coração. Eu já tinha o visto antes, era um namorado da minha irmã naquela época.
— Tu quer? — Ele perguntou, quase implorando.
— E o que tu respondeu, tio?
— Eu gritei por ajuda. Então teu avô apareceu pra ver o que estava acontecendo, mas o homem já tinha partido.
— Eu não acredito nisso.
— Não tem que acreditar. Mas eu tô te contando a verdade.
— Lobisomem não existe.
— Disso eu duvido muito. Já te perguntou por que a gente escuta uivos em noites de lua cheia?
— Porque são os cachorros da vizinhança.
— Será?
**
A lenda do lobisomem é essa, tal qual eu ouvi do meu tio. Depois desse relato, eu fui conversar com a minha tia e ela confirmou que namorava um homem que era o sétimo filho da família. Ela também me contou como a maldição é passada. Quando o homem envelhece ou quer passar o fardo, ele fica vagando pela estrada falando “Quem quer? Quem quer” até alguém passar por ali e responder “Eu quero!”.
No interior, principalmente antigamente, a história do lobisomem é contada assim, um cão grande, peludo e preto que ataca galinheiros em noites de Lua Cheia.
Meu tio é um, tenho certeza. Ele aceitou o fardo do cão naquela noite. Por idade ou por não viver mais no campo, ele não sai mais atrás de galinheiros. Nas noites de Lua Cheia ele fica triste, não conversa com ninguém. Sai para caminhar pela vizinhança e volta calado como saiu.
O cão selvagem habita meu coração. Meu tio é um lobisomem e eu também serei um dia.
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