esternw Ester Cabral

Da janela de seu sexto andar, Lucas observava as pessoas indo e vindo. Era rotina. Rotina também era observar a moça da floricultura em frente, enquanto desenhava a vida que via passar. Rotina era ela e todas aquelas pessoas irem e virem, todos os dias. Todos iam embora. Ninguém ficava. No fundo, Lucas queria quebrar aquela rotina. Ele apenas queria alguém que ficasse.


Cuento Todo público.

#chuva #sexto-andar #predio #crônica #cafe #flores #desenho
Cuento corto
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Do alto do seu sexto andar, Lucas observava a avenida. Pessoas que iam e viam, apressadas com a rotina. No horário de pico, era ainda pior, com aquela multidão que ia e vinha da estação de trem. Mas, apesar de tudo, ele amava a vida na cidade grande. Mesmo em meio àquele barulho todo e o cinza da poluição, ele encontrava inspiração.

O rapaz era um desenhista, dos muito bons. Com alguns trabalhos na gráfica de manhã, ele ganhava a vida. Porém, era à tarde, quando se sentava no parapeito da janela, para observar a vida cotidiana, que ele pegava seu caderno, o lápis grafite e os coloridos, e os traços viravam obras de arte em suas mãos. Seus desenhos iam desde a natureza morta que o cercava, até a simples moça que trabalhava na floricultura em frente.

Ah sim, ela chamava muita atenção, ao menos para ele. Todos os dias, ele a via fechar as portas da loja e ir embora, caminhando calmamente, diferente dos outros passantes, que iam e vinham por ali todos os dias. De longe, Lucas não a enxergava com detalhes, contudo, isso não impedia sua imaginação de fluir.

Além dela, todos os dias passava por ali uma senhora com seu cachorrinho na coleira, e ia embora. O jornaleiro fechava a banca ali em baixo, e ia embora, assobiando uma canção que ele não conseguia ouvir do seu sexto andar. Havia também as crianças que saiam da escola na outra esquina. Todos os dias elas passavam por ali, saracoteando e brincando, aproveitando com alegria a infância, e iam embora também. Tudo ia embora, nada ficava. Lucas só queria algo que ficasse em sua vida...

Era uma tarde chuvosa e o desenhista ia embora pra casa, depois de mais um dia cheio na gráfica, devido o trabalho extra, ele demorou mais para sair. Ao menos era sexta feira.... Pensava consigo, porém, foi interrompido por um carro que passou em alta velocidade, espirrando água suja para todos os lados. Conseguiu desviar em tempo.

— Que droga! — Ouviu uma voz feminina reclamar. Olhou para a esquerda e viu a moça da floricultura. Ela estava com a sombrinha aberta, tentando se proteger do temporal, contudo, não adiantava muito. Os ventos tendiam a molhá-la mesmo assim. E ela acabara ficando encharcada da água que o carro jogou.

— Quer ajuda, moça? Você está toda molhada e nessa chuva. Vai acabar ficando doente. — Ofereceu solícito. De perto, pode ver os traços finos e delicados que ela possuía. Era realmente uma ninfa, assim como a desenhara antes, em meio às flores.

— Obrigada, mas não tem muito o que fazer. Já tô na chuva, agora vou me molhar. — Comentou, com uma diversão disfarçada. Na verdade, ela estava furiosa por dentro. Suas roupas já estavam ensopadas e ela tremia de frio. Com certeza ela estava ali havia algum tempo.

— Tem certeza? Está tremendo de frio, me sentirei mal se você pegar uma pneumonia e eu não pude fazer nada. — Esperou uma resposta, porém nada veio. — Que tal ir comigo na cafeteria logo ali? Um chocolate quente pra esquentar faz bem e eles podem conseguir uma toalha pra você. Eu conheço o pessoal que trabalha lá.

A jovem hesitou um pouco, mas anuiu. Os dois atravessaram a rua e entraram no estabelecimento. Apesar da hora, o local estava vazio. Talvez a chuva espantara os clientes.

Lucas escolheu um lugar na janela e puxou a cadeira para a moça. Chamou a garçonete e pediu dois chocolates quentes, junto de uma toalha, se não fosse incômodo.

— Obrigada, de verdade, é muito gentil da sua parte. — Ela sorriu e ele retribuiu. Não havia como não retornar a um sorriso tão lindo e encantador. Os dois ficaram em silêncio por um tempo, até que uma das funcionárias apareceu com uma toalha. A jovem aceitou e começou a secar os braços e os longos cabelos negros.

Lucas observava cada movimento que ela fazia. Observava as cores, as luzes, tudo que pudesse servir de inspiração para mais tarde.

— Então.... Você mora aqui perto? — Foi tirado de seus devaneios pela voz dela. A garota apoiara a toalha sobre os ombros pequenos e agora encarava-o com seus olhos azuis. Azul oceano, da cor do mar ao sol do meio dia, marcou para si mesmo, para lembrar mais tarde.

— Sim, eu moro naquele prédio de apartamentos que fica ali do lado. — Ela assentiu e voltaram a ficar calados. — Então.... Você trabalha na floricultura tem muito tempo? — Questionou repentinamente. O que dera nele pra puxar assunto assim? Ela nem sabia que ele a conhecia, mesmo que só de vista e em sua imaginação.

— Sim, tem dois meses. Você já me viu por aqui? — Nesse momento, as duas xícaras de chocolate quente chegaram. Estavam fervendo, tanto que era visível uma fumacinha.

A moça ia levando a bebida aos lábios mesmo assim.

— Espere. — Pediu Lucas, fazendo com que ela parasse o que fazia. — Está quente, assim você vai queimar a língua. É horrível quando isso acontece, ficar sem sentir o gosto direito das coisas por dias. — Ela riu e colocou a xícara de volta na mesa. — E, respondendo sua pergunta, sim, eu já te vi. Costumo ficar observando a rua pela janela, pra tentar me inspirar.

— Ah, então você é um artista?

— Trabalho com design e desenho nas horas vagas.

— É mesmo? Quero ver um desenho seu qualquer dia desses, pra ver se você é bom mesmo. — Comentou divertida.

— Claro, está convidada a me ver desenhar qualquer dia desses... — Foi só então que ele se deu conta do que falou. — É, não, não, não foi bem isso que eu quis dizer...

— Eu entendi — interrompeu-o, rindo, — você só quis ser gentil, ermm.... Qual o seu nome mesmo? — Questionou-o, voltando os olhos azuis diretamente a ele.

— Lucas. E você seria....

— Violeta, muito prazer. — E estendeu a mão por sobre a mesa.

— Prazer. — Eles trocaram um aperto de mão e ele sentiu os dedos gélidos dela por alguns segundos. — Não é um pouco irônico uma moça com nome de flor trabalhar numa floricultura? — Perguntou em tom divertido e ela retribuiu o riso.

— Muito. Mas o que não tem de coincidências por aí, não é? — Encarou a bebida na xícara. — Acho que agora dá pra tomar. Não vou queimar a língua. — Levou a chávena até os lábios e se deliciou com o sabor, sentindo o quentinho do chocolate quente esquentar o corpo. — Humm, que negócio bom.

Lucas também tomou de sua bebida.

— Sim por isso que eu gosto de vir aqui. Sabe aquele clichê do artista bebedor de café? Acho que me enquadro nele. — Comentou com um dar de ombros, gerando riso em Violeta.

E assim os dois ficaram por pelo menos uma meia hora. Mesmo quando a chuva já havia passado, pediram um pedaço de bolo e de torta, e ficaram ali conversando. Descobriram que o outro tinha um papo mais interessante do que imaginavam.

Em meio às risadas, Violeta pegou o celular da bolsa e olhou as horas.

— Olha só, já é oito horas. Tenho que ir pra casa. — Arrumou a bolsa e colocou a toalha no encosto da cadeira. Fecharam a conta e saíram da cafeteria. — Hunf, no fim, ele me deu um bolo mesmo.

— Esperava alguém? — Perguntou Lucas e os dois pararam na calçada, um de frente para o outro.

— É, eu tinha marcado um encontro com uma pessoa. Mas como ele não apareceu, nem mandou notícias, não vou nem tentar mais nada. Melhor deixa pra lá. — Comentou e olhou para o céu. Continuava nublado, talvez chovesse mais tarde.

— Se eu fosse essa pessoa, nunca deixaria alguém como você esperando na chuva. — Ele corou ao perceber o que dissera. Nunca teve muito jeito com as palavras. — Quer dizer, eu nunca deixaria alguém me esperando na chuva, acho muita falta de consideração.

— Também acho... Bem, tenho que ir. Tchau, Lucas e obrigada pela gentileza. — Ela deu um beijo na bochecha dele. O rapaz sentiu-as queimar com o gesto da garota.

Quando ela virou as costas para ir embora, ele acordou do torpor e a chamou:

— Espera, não é perigoso você ir embora sozinha? É de noite e tá escuro...

— Não se preocupe. Vou pegar um ônibus ali na esquina e minha casa fica em frente ao ponto que desço. — O rapaz se sentiu aliviado com isso. — Mas obrigada pela preocupação. — Ela sorriu e ele fez o mesmo. — Agora tenho que ir, tchau.

E ele esperou que a silhueta dela sumisse de vista. Então, foi embora para seu prédio. Naquela noite, foi dormir tarde, ficara desenhando até sentir os dedos doerem. A maioria das obras, se não todas, tinha a mesma protagonista: a bela ninfa de olhos azuis e cabelos negros. Dessa vez, os traços tinham mais riqueza de detalhes.

Os dias foram passando desde aquela sexta feira chuvosa. Todas as tardes, Lucas continuava na janela do sexto andar, observando a avenida. Porém, agora a sua principal modelo também o via. Sempre que ela fechava as portas da floricultura, acenava para ele, que retribuía o gesto.

Em uma quarta feira qualquer de meio de mês, estava sentado como sempre fazia. As mesmas pessoas de sempre já tinham passado e logo seria a hora de Violeta ir embora também.  Contudo, qual não foi sua surpresa ao ver que, além de acenar para ele, ela fazia outro gesto, como se o chamasse para falar com ela.

O desenhista atendeu e logo tomou o elevador. Dois minutos depois, já tinha atravessado a rua, chegando até ela.

— Lucas, oi. Você tá sempre na janela, né? — Perguntou divertida e ele viu que ela trazia um buquê de flores nas mãos. — Então... eu sempre te vejo desenhando lá... E o quarto em que você fica parece tão vazio.... Daí eu te fiz esse buquê, pra te trazer um pouco mais de cor.

Ele olhou surpreso para ela e viu quais eram as flores que ela trazia nas mãos.

— São violetas? — Questionou, com medo de estar soando óbvio.

— É. Quer coincidência maior do que ganhar um buquê de violetas, da Violeta, que trabalha na floricultura?

— Acredito que as situações mais corriqueiras são feitas de coincidências, não? — Comentou ele, achando graça do que a florista lhe disse. Ficaram ali, se encarando um pouco, não sabendo como continuar a conversa. — Hoje pelo menos não está chovendo, né?

— É, ainda bem. — Violeta mordeu os lábios, um pouco insegura. — Acho que vou ir pra casa. Tchau, Lucas.

— Espera. — Pediu ele, chamando a atenção dela para si. — É... Você não está ocupada hoje, está? — Ela negou com a cabeça. — Bem.... Que tal tomar um café e conversar um pouco? Gostei do nosso bate papo aquele dia.

Violeta aceitou e os dois atravessaram a rua, entrando na mesma cafeteria daquele dia. Sentaram-se na mesma mesa e pediram dois cafés, junto de um bolinho para cada.

— Você é meio solitário, não? — Questionou Violeta de repente. Lucas a encarou intrigado. — Eu sempre te vejo chegar no seu apartamento e então você fica lá, desenhando.... Sozinho. — Lucas abaixou o rosto para a mesa. — Sei que é muita intromissão minha, mas.... Seus olhos são tão tristes. — E colocou a mão direita sobre a dele, sem se dando conta do ato.

— Já perdi tanta gente nessa vida.... Que decidi não me apegar mais. — Ele percebeu o que a garota fez, contudo não disse nada sobre. — É triste ficar sozinho, porém, pior ainda é a tristeza de perder alguém. — Afirmou com o olhar longe. Violeta o observou com espanto após a confissão do mesmo.

— Será que se fechar assim é a solução? Eu sei que vou morrer um dia, assim como todo mundo, só que isso não me impede de viver todos os dias como se fossem únicos. — Lucas olhou discretamente para ela com essa afirmação. — Do que adianta viver a vida sozinho? Do que adianta lutar para conquistar algo, se não tem com quem dividir? Se não tem por quem lutar?

— Não sabia que uma florista podia ser tão sábia. — O pedido deles chegaram e Lucas levou a caneca de café aos lábios. Violeta fez o mesmo.

— A sabedoria não é algo para poucos. Basta saber procurar e você vai achar. — Sorriu para ele, fazendo com que ele imitasse o gesto.

Esse foi o primeiro dos dias que eles se sentaram juntos para conversar. Conversas filosóficas, conversas de café, conversas de flores, conversas corriqueiras. Entretanto, conversas suficientes para conhecer mais um ao outro e fazer crescer uma amizade, assim como as flores de Violeta cresciam no apartamento de Lucas. O buquê de violetas fora apenas o primeiro de vários. Logo, a residência do rapaz foi começando a ser tomada de flores, dadas pela garota das flores.

E foi pela garota das flores que ele começou a se apaixonar. O que era apenas uma admiração por uma das modelos mais belas que encontrara pelas avenidas da vida, se tornou uma amizade, que se tornou amor. Ele se perguntava se era isso mesmo que sentia.

Violeta o entendia, foi a primeira pessoa a verdadeiramente olhá-lo nos olhos e ver aquilo que ele sentia. Com o passar do tempo, ele viu que aquela garota o compreendia mais do que ele imaginava.

Era o domingo de dia das mães. Lucas estava sozinho naquele dia, entediado e sem nada para fazer, enquanto assistia ao especiais que passavam na TV. Estava esperando a hora que a floricultura fecharia e sua campainha tocasse. Como era feriado, a cafeteria ao lado não abriria, portanto, convidou Violeta para tomar café no apartamento dele. Velhos hábitos não podiam morrer, mesmo no feriado.

O bule já estava pronto havia alguns minutos e a bebida estava esfriando, quando ele foi alertado que tinha alguém na porta. Atendeu e Violeta entrou alegremente.

— Lucas, feliz dia das mães. Mesmo que você não seja mãe. — Desejou divertida e ele deixou que ela entrasse, fechando a porta a seguir.

— Feliz dia das mães! — Embarcou na risada com ela. — Fique à vontade. — Ela entregou a ele um buque que trazia nas mãos.

— Trouxe pra você. Violetas de novo! — Lucas recebeu o presente e ambos foram para a sala.

— Mais um buquê de violetas da Violeta. — Ambos acharam graça e ele colocou o ramalhete em cima da mesa de centro. Convidou a moça a se sentar no sofá. — Vou pegar o café que preparei pra nós.

E foi para a cozinha, colocar a bebida nas xícaras. Violeta observou o ambiente e questionou:

— Onde você coloca as flores que eu te dou?

— No meu quarto. — Respondeu Lucas do outro cômodo, enquanto adoçava o café.

— Ah, posso ver? — Pediu ela inocentemente e ficou de pé.

— Claro... — Foi então que ele seu deu conta do que ela pediu. — Não, não, espera, Vio... — Parou na hora o que fazia e foi atrás dela.

Tarde demais. A porta do quarto dele estava aberta, porém, sequer chegou a entrar, abismada com o que viu lá dentro. Lucas também estacou, não sabendo como reagir.

A moça tentou alguns passos para dentro do cômodo, ainda encantada. As paredes do lugar estavam forradas com desenhos e mais desenhos. A maioria deles tinham dois protagonistas: a ninfa de olhos azuis e as flores. Estas, devidamente espalhadas pelo ambiente. O quarto, antes cinzento e vazio, assim como o exterior do prédio, agora estava tomado por todas as cores.

Violeta observava a cada cantinho do quarto.

— Olha, Vio, eu posso explicar...

Porém, não houve tempo pra que ele explicasse, já que a moça se jogou em seus braços e juntou os lábios aos deles. O beijo dela era calmo e docinho, com gosto de bala de iogurte. Ele esperava encontrar sabor de café, só que não houvera tempo para que eles experimentassem a bebida preparada pelo rapaz.

Os dois se separavam e olharam nos olhos do outro.

— Nunca fizeram nada tão lindo pra mim. — Disse ela em um sussurro.

— Apenas coloquei o que eu via em desenhos. — Replicou ele no mesmo tom dela.

A moça sorriu e acariciou o rosto do rapaz com a mão, olhando profundamente para as íris castanhas dele.

— Seus olhos não estão mais tristes.

— Alguém me disse algo que mudou isso. Algo sobre viver cada dia como se fosse único, que os melhores momentos da vida só valiam a pena se compartilhados com alguém.

— Muito sábia a pessoa que disse isso.

Os dois riram e aproximaram os rostos novamente, compartilhando um novo beijo.

Na janela do sexto andar, observando as pessoas que iam e viam todos os dias, Lucas encontrou o que tanto queria: alguém que ficasse.

20 de Enero de 2019 a las 19:38 2 Reporte Insertar Seguir historia
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Fin

Conoce al autor

Ester Cabral Direto do interior de São Paulo e com duas décadas de vida nas costas, apesar da carinha de menina. Rodeada de histórias e tentando transformar a sua em realidade. ♡ Sempre devemos ter cuidado com livros e com o que está dentro deles, pois as palavras têm o poder de nos transformar ♡

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Alexandra Monteiro Alexandra Monteiro
Que estória mais linda! Parabéns!
November 05, 2019, 10:55

  • Ester Cabral Ester Cabral
    Olá! Muito obrigada por ter lido e deixado um comentário, fico feliz que tenha gostado ❤️ Kisses e até o0 November 07, 2019, 16:03
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