As mechas azul turquesa de Ashley esvoaçavam com o vento leve que levantara com a chegada do outono. Ainda estava quente o suficiente para apanhar banhos de sol como Patricia fazia naquele momento, mas a praia já estava vazia e as pessoas começavam a voltar aos seus trabalhos habituais.
- Merda! - Patricia deu um salto da espreguiçadeira onde estava deitada, tirando os óculos de sol da cara. A irmã praguejava e arrancava mais uma folha do seu bloco de desenhos para a areia, mais frustrada a cada tentativa falhada. - Até um miúdo de cinco anos consegue fazer isto, mas eu só consigo fazer merda! - Explodiu, com fios coloridos de cabelo a cair-lhe para a frente dos olhos.
O céu estava cor de laranja. Ashley não via mais nada a não ser aquela cor vibrante a tornar-se cada vez mais densa conforme o tempo passava; era tão forte que quando fechava os olhos continuava a vê-la. Os seus sentidos não distinguiam outra cor enquanto o sol descia no céu e pousava no mar. Não havia o leve cor de rosa a extinguir-se no azul celeste, nem o vermelho sanguinário a irradiar do sol. Ela podia comparar-se àquela imagem, confrontar as suas emoções com a pobreza de cores no céu, mas chegava a ser absurdo, já que até aquela cor transmitia mais vida que ela própria.
- Se continuares a gritar e a rasgar tudo o que tentas fazer não vais a lado nenhum. - Advertiu Patty. - A tua inspiração vai e volta. Hoje não estás nos teus dias, relaxa e vais ver que amanhã estás melhor. - Aconselhou, com a voz calma e relaxada.
Ashley revirou os olhos, ignorando a irmã mais velha. Patricia era modelo, estava ali de férias para se bronzear e passar o tempo no ginásio, nunca tivera de lidar com brancas, falhas de inspiração, frustrações que enlouquecem. Já Ash só queria ser uma artista, queria tirar partido e aproveitar a natureza à sua volta; o pôr do sol visto das traseiras de sua casa era lindo para isso, mas depois de mais de vinte anos a vê-lo todos os dias, já não havia nenhuma particularidade que conseguisse acrescentar aos desenhos.
Ali era tudo cor de laranja. Desejava ver algo novo, estar em sítios diferentes…
- Estou a dar em doida… - Baixou a cabeça, esfregando as mãos no couro cabeludo onde as raízes negras já se começavam a notar.
Sabia que as pessoas não compreendiam, mas as suas quebras de inspiração eram mais longas do que gostaria, faziam-na sentir como se parte de si desaparecesse para uma dimensão que ela não sabia se alguma vez conseguiria alcançar. Doía-lhe por dentro, porque, por mais que tentasse nunca conseguiria fazer aquilo que estava planeado na sua mente. Deixava-se horas sem dormir, desperta até de madrugada, à espera que o franzim na sua cabeça e nos seus dedos voltasse. Por vezes acontecia voltar nos dias em que estava tão cansada que nem se conseguia levantar da cama; mesmo assim, para ter a certeza de que voltava, tinha que pegar num bloco e desenhar o que via da sua janela. A inspiração vinha-lhe sempre nas alturas menos convenientes.
Patricia levantou-se e pegou numa das folhas amassadas, indo sentar-se na ponta da espreguiçadeira da sua irmã; tinha vestido um casaco fino para a proteger da aragem fresca do anoitecer.
Ashley ficou a observá-la. Ela era tão linda. Nunca se admirara do sucesso que a sua irmã fizera assim que chegara às agências de modelo. O seu cabelo curto pelos ombros ajudava-a a tornar-se num camaleão durante as suas caminhadas pela passerelle, a sua pele morena e perfeita sem a ajuda de maquilhagem era de invejar, o seu corpo magro e trabalhado era deslumbrante. Patty era exatamente como as raparigas que apareciam nas revistas — já que era uma delas. Meninas matavam-se diariamente por não se parecerem a si, mas Patricia também passava dias infernais e esgotantes para ser como era. Saber da vida e das dificuldades da sua irmã fazia a inveja de Ash evaporar-se.
- Ashley, isto está lind—! - A mais velha ia elogiar o seu trabalho, mas foi interrompida.
- Está igual aos outros! - Ashley tirou-lhe a folha para a voltar a mandar para longe. - Estou farta deste sítio… - Admitiu.
Patty não a contradisse, permaneceu calada a fitá-la. Já trabalhava fora de casa havia longos, por mais que tentasse estar sempre em contacto com todos e até decidisse passar as suas férias na sua casa de família, ao contrário de muitas das suas colegas, ela não sabia lidar com a sua irmã quando ela estava insegura ou menos feliz. Desde pequena que Ashley tinha uma personalidade forte e difícil, não era toda a gente que a conseguia controlar e ajudar quando precisava. Aquele era um dos casos em que ela precisava de dizer a coisa certa, colocar-lhe um sorriso na cara e levantar-lhe o queixo, mas as palavras não apareciam e a sua língua estava presa. A verdade era que não a conhecia.
A mais nova fitava-a de volta, hesitante, mas quando Patricia não disse nada, ela ganhou coragem.
- Mana… Posso ir contigo para Shannara?
A rapariga de cabelo castanho pestanejou algumas vezes antes de falar, surpresa.
- O quê?!
- Quando voltares para Shannara, achas que posso ir contigo? - Havia esperança em Ashley, mas a sua irmã estava demasiado estupidificada para vir dali uma resposta positiva. A vontade de lhe fazer aquela pergunta vinha de há algum tempo, mas só agora é que se sentia próxima o suficiente a si para a fazer.
- Ash…
- Vai-me fazer bem sair daqui! - Continuou, antes de ouvir a negação. - Estar estagnada neste cidade é um pecado para a minha inspiração... - Agarrou nas mãos da irmã, observando os seus grandes olhos castanhos mel. - Prometo não fazer asneira.
- Não. - A resposta foi curta e dura, não era o que a de cabelo turquesa esperava ouvir depois da sua súplica.
Sabia bem o que é que a irmã pensava de si: era a chata da irmã mais nova que se metia sempre em problemas por ter sido mais mimada. Mesmo que isso seja verdade, é assim tão complicado deixar-me viver num dos quartos da mansão em que ela vive?, perguntava-se a si própria. Patricia fechou os olhos durante uns segundos enquanto abanava a cabeça. - Não posso, Ash. Não é porque não quero, é porque aquele mundo não é para ti. Tu sabes o que é que aconteceu da última vez… - A rapariga levantou-se com as mãos em punhos, cortando a palavra à irmã.
- Isso é passado! Não vai acontecer nada de mal se voltar! - Retorquiu. - Eu não preciso de estar nesse mundo: no teu mundo! Eu só quero mudar de cidade, explorar o estrangeiro. Sabes que a mãe não me vai deixar até provar que, pelo menos, sobrevivo se estiver contigo. - Ela era maior de idade, tinha nascido há vinte e dois anos e poucos meses atrás, mas toda a sua família tinha que se meter na sua vida por conta dos erros do passado. Procuravam controlá-la e assegurar que nada de mal lhe acontecia, por isso, ela não podia sair de Allanon sem uma companhia em que eles confiassem.
- Não, Ashley. - Abanou a cabeça. - E não vou discutir mais este assunto!
Havia uma centelha no olhar de Ashley que fez Patricia desconfiar que a irmã não iria desistir do assunto. Quando, após uma semana do seu pedido, ela não disse mais nada, Patty fez as malas para voltar para Shannara, desconfiada e à espera de uma nova suplica que não chegou. Do pouco que conhecia da irmã, sabia que Ashley costumava ser cabeça dura e nunca desistia até conseguir o que queria, era estranho ela comportar-se como se nada tivesse acontecido, nem mesmo dizer nada aos pais na tentativa de os convencer a ir. Mesmo assim, Patty também nunca perguntou se já desistira da ideia, com medo que ela tentasse a voltar e, desta vez, conseguisse vencer.
A sua desconfiança estava certa. Ash estava a arder por dentro com vontade de sair daquela cidade claustrofóbica. Enquanto em Allanon as pessoas só sabiam ser felizes a preto e branco, na monotonia do quotidiano, Shannara era diferente. Shannara tinha vida, cor, liberdade; tudo o que Ashley procurava para poder explorar a vida à sua volta.
- Mãe, eu vou! - Voltou a dizer, frisando bem as palavras para que Amelia compreendesse que não havia volta a dar. - Tenho o meu dinheiro, sou maior de idade. Vou estar com a Patty, não há nada que me possa acontecer!
Amelia juntou as mãos uma na outra e pousou a cabeça em cima delas, respirando fundo para ganhar paciência. A filha já sabia o que ela ia dizer — ia voltar a repetir os perigos do lado negro que existia na cidade, aquilo que a tinha destroçado da última vez, fazendo-a sair com o rabo entre as pernas de volta à sua cidade natal. Ash sabia melhor do que ninguém desse lado negro. Existiam vários perigos. Claro que uma cidade de famosos ricos e poderosos e uma periferia pobre com pessoas a rastejar por comida, não seria a cidade mais segura, mas era aquela que ela queria.
- Não, não. Não precisas de voltar a gastar as tuas palavras. A minha mala está pronta. Já contratei alguém para me vir buscar os cavaletes e coisas que não consigo levar agora comigo. - A teimosia era algo que corria nas veias de Ashley, era um defeito que ela gostava de transformar em elogio ao chamar-lhe perseverança.
- E tu, Roland, não dizes nada? Vais deixar a tua filha sair de casa para voltar para aquele lugar? - Perguntou ao marido.
As lágrimas enchiam-lhe os olhos, mas não lhe caiam. Estava incrédula e preocupada, sabia que a filha não iria mudar de ideias, mas também não a podia prender. A sua decisão de sair de casa iria avante e ela não tinha nenhuma opção a não ser deixá-la ir.
- Não sei… desde que ela esteja com a irmã e que dê notícias… não vejo problemas. - Admitiu Roland com um encolher de ombros.
- A Patricia nem sequer tem tempo para ela, quanto mais para a irmã! - Amelia estava determinada em arranjar pretextos para não deixar a filha mais nova ir embora, mas Ashley não ia deixar que isso acontecesse. Assim, respirou fundo para não se enervar e levantou-se. Colocou a cadeira onde estivera sentada no lugar e pôs a mala às costas. - Precisas de ligar ao—!
- Vou chegar atrasada ao comboio, ele parte daqui a vinte minutos. - Interrompeu a mãe e virou-se para o pai. - Importas-me de levar?
Roland abanou a cabeça e levantou-se, fitando a mulher quando pegou na chave do carro. Com ele era tudo fácil. Embora ainda estivesse reticente, o seu pai raramente conseguia dizer que não quando os argumentos falhavam. Normalmente, os problemas e os obstáculos só surgiam quando se falava de Patty e da sua mãe.
- Vou ficar bem, eu ligo. - Prometeu. Aproximou-se da mulher de olhos verdes e beijou-lhe a testa em jeito de despedida.
Ashley só descansou em frente à mansão da irmã, em Shannara. Esta, estava situada num local semelhante ao que vivera durante toda a sua vida: era uma casa de praia, com vista privilegiada para as águas turquesa do mar, no entanto, enquanto em Allanon todos podiam ir até à praia, ali a zona era privada dos inquilinos e vizinhos. Assim, Patty poderia viver num ambiente conhecido, que a ajudava a viver afastada de Allanon, (coisa que Ash nunca entenderia, já que ela queria era ver sítios diferentes, para poder viver novas aventuras), e ter a sua privacidade, longe de fotógrafos intrometidos.
A rapariga sorriu, com as mãos a apertar as alças da mala de campismo que trazia às costas. Patty ia ter um ataque quando a visse. A sua irmã tinha deixado bastante claro que não a queria por perto, mas a mais nova não lhe dava muitas hipóteses, trazia um sorriso de orelha a orelha só de pensar na cara que a irmã faria.
Ela ainda estava atrás do portão, mas depois da campainha ressoar pela casa, a porta da frente abriu-se, mostrando a cara de um rapaz que lhe era desconhecido. O último empregado era um ruivo alto e bem musculado, mas agora quem lhe abria a porta era homem de pele morena com olhos castanhos, que ela não conhecia, mas que poderia muito bem ser um colega de trabalho de Patty.
- Oh… eu quase te confundi com o empregado! - Disse ela, ainda a fitá-lo.
- Eu sou o empregado. - Afirmou, não lhe abrindo o portão. - Quem é a senhora?
Ashley juntou as sobrancelhas, era sabido por todos que a irmã andava sempre a trocar de empregado, cada um mais bonito que outro, mas todos eram encontrados na rua, a pedir nos bairros mais pobres. Ela dava-lhes abrigo e salário até eles organizarem a vida e poderem sair de sua casa.
- Pode apresentar-se? - Pediu, uma vez mais.
- Ashley?! - Patty estava à porta. Envergava um robe de seda, que só usava depois de sair da cama, e apertou-o melhor à sua volta; não havia mais nada entre ela e o seu corpo, o que fez Ashley fitar de novo o rapaz à sua frente, para garantir que ele estava totalmente vestido. - O que é que estás aqui a fazer?!
- Tu tens três quartos sem ninguém, Patty, não te ia deixar sozinha. - O rapaz deu dois passos para trás quando ela conseguiu abrir o portão e adentrou pela propriedade, mandando a mala para o chão com um suspiro aliviado.
Patricia grunhiu, frustrada, e a irmã soltou uma risada baixa, enquanto apontava para a mala e para a entrada, fazendo entender ao empregado para que levasse tudo até um quarto.
- Este parece um robot. - Comentou, vendo o moreno subir a mala praticamente ao arrastão. - Lindo, mas um robot. É assim que gostas deles?
- O que é que estás aqui a fazer? - Repetiu, ignorando a provocação da irmã. - Disseste aos pais? Tu tens a noção de que vou ter que lhes ligar, certo?
Os ombros de Ashley baixaram-se, assim como a sua cabeça. Era triste e humilhante sentir-se uma criança, quando já era uma adulta que podia fazer o que quisesse da sua vida.
- Sim, Patricia. Os pais sabem que estou aqui. Não, não estão de acordo, mas mesmo assim, eu vim! - Respondeu a todas as suas questões só de uma vez, já sem o seu sorriso provocador.
- Patricia? - Uma voz suave interrompeu a discussão, desviando a atenção das duas para o rapaz loiro que descia as escadas.
Com a luz que entrava pelas janelas e atravessava a divisão até o iluminar totalmente, ele parecia um anjo. Cabelo dourado, olhos claros, lábios vermelhos e pele angelical. Ashley podia desenhá-lo de todas as cores e mais algumas, ficaria magnifico. Uma obra prima. Traços dramáticos, olhar profundo — parecia ser só mais um rapaz cliché de desenhar, saído direto da alta sociedade de Shanaara, mas com Ash e a sua mente brilhante, ela poderia torná-lo em arte. Tinha acabado de chegar e já sentia os dedos dormentes, a pedir um pincel ou um lápis de carvão para fazer um esboço. Isso era só um sinal de como era bom estar num sítio novo, para variar a rotina aborrecida que costumava ter.
O mais irónico da situação era que ela conhecia o rapaz da televisão— James Kelly, Jamie para as fãs, um famoso cantor que aparecia em todas as revistas para miúdas dos sete aos catorze.
- Oh Patty… Desculpa, acho que ele não é adequado para a tua faixa étaria…