O Reino de Solamaris encontrava-se banhado de sol naquela manhã de primavera, entretanto, dentro do palácio, as sombras cintilavam pelos corredores frios enquanto criadas e autoridades, que viviam à cerca do Rei Miklos, agitavam-se diante da porta cerrada do quarto real. Há tempos o monarca padecia de uma doença desconhecida, deixando seus médicos apreensivos.
Petrus, o conselheiro real, desbastava as pedras da antessala do quarto, andando de um lado para outro com seus sapatos de sola pesada, ao aguardar a notícia aterradora que mudaria a condução e, possivelmente, toda a política de Solamaris, que por anos fora baseada na paz entre os reinos vizinhos. Duvidava que a herdeira do trono fosse capaz de conduzi-lo sozinha, visto que ainda não concluíra sua preparação. Contudo, ele estaria ao seu dipor.
Estacou abruptamente quando a porta foi aberta e uma das criadas o convidou a entrar. Não se fez de rogado, dirigindo-se a passos firmes até o leito do velho amigo moribundo.
— Meu bom, Petrus — disse o rei, ofegante — creio que não tenho muito tempo.
— Não diga isso, meu rei. Ainda terá...
— Tenho que agir rápido, meu amigo — interrompeu-o com um leve aceno de mão. — Preciso que seja testemunha do meu último ato e o faça valer.
— Farei tudo o que me pede, meu rei.
— Apenas a faça cumprir o decreto — pediu, antes de um acesso de tosse que o deixou extremamente cansado.
Com mãos trêmulas, Petrus o viu assinar o papel ao lado do timbre real, deixando as folhas caírem sobre os lençóis, respirando de forma precária no peito coberto de pústulas. Os olhos de Miklos ainda se mostravam lúcidos, enquanto tentava manter o ar nos pulmões, acompanhando o movimento da pena do amigo, cuja assinatura fulgurou logo abaixo da sua. Anuiu, em contentamento, quando as folhas foram enroladas, presas por uma fita e colocadas em uma caixa de madeira, adornada por um veludo vermelho, fechada à chave.
Petrus deixou o recinto, preocupado. Não lera o documento, entretanto imaginava o seu conteúdo e isso o preocupava, sobremaneira. Tinha uma vaga ideia do que o aguardava, pois conhecia o temperamento de Ayla.
Aquela fora a última noite do reinado de Miklos, para tristeza de seus súditos, acostumados a irem até ele quando se dirigia ao grande carvalho, sentando-se despreocupado na praça central da cidade, esperando ouvir os pedidos que lhe chegavam aos borbotões. Ouvia-os com paciência, enquanto Petrus os anotava. Era querido e amado por seu povo.
Houve uma grande comoção em seu funeral, cujo esquife ficou exposto por algumas horas sob as sombras do mesmo carvalho, antes de voltar ao palácio e ser cerrado para sempre. Ayla se mostrava aflita e inconsolável, pois dali a dois dias seria coroada rainha de Solamaris. É claro que se sentia preparada para tal feito. Dona de uma beleza nórdica, atraia olhares cativantes que a lisonjeavam, porém sabia que precisava seguir os passos do pai para ganhar a simpatia do povo, já que sempre fora superprotegida dentro dos muros de seu reino. Na noite após o sepultamento do rei, Petrus a encontrou no salão redondo de reuniões e estratégias, acompanhada do seu séquito.
— Deixe-nos a sós — pediu Petrus, encarando Ayla com um olhar duro.
— O que deseja, Petrus? — indagou, preocupada, ao ver o rolo com o brasão real em suas mãos.
— Minha rainha — reverenciou-a, mantendo o olhar. — Trago em minhas mãos o último desejo de seu pai a ser cumprido. Vou lhe dar alguns minutos para ler e assinar, tornando-a ciente do que acontecerá junto à sua coroação.
— Minha coroação está atrelada a alguma condição? — questionou, sentindo um frio percorrer sua espinha.
— Voltarei em seguida, senhora.
Petrus a deixou e rapidamente Ayla quebrou o selo real passando a ler as condições impostas por seu pai, sentindo-se lívida. Jamais aventou que ele pudesse não confiar em toda a preparação que tivera para conduzir seu povo e muito menos que fosse capaz de humilhá-la daquela forma, obrigando-a se submeter a um casamento sob a condição de excluí-la da sucessão ao trono caso o desobedecesse, passando-o para um primo distante. Suas mãos tremiam de raiva ao saber quem fora o escolhido para seu consorte.
— Há quanto tempo você sabia disso, Petrus? — quis saber, deixando as folhas irem ao chão, assim que ele adentrou ao recinto, recolhendo-as.
— Na noite antes da morte de seu pai — respondeu, perscrutando-a.
— Por que ele fez isso? — Seus olhos claros faiscavam sob a luz das velas.
— Não sei, minha Rainha. Talvez temesse por sua vida, já que nunca em toda a Solamaris tivemos uma sucessão feminina ao trono. Ele te amava e nunca lamentou o fato de não ter tido um varão para substitui-lo.
— Entendo sua preocupação, mas por que Galahan?
— E por que não? — questionou, vendo os olhos de Ayla procurar o chão, antes de dar-lhe as costas — Ele é um ótimo estrategista e o povo o adora.
— As mulheres o adoram. É o que você deveria dizer, Petrus. Galahan é um canalha e você deve se lembrar que papai voltou atrás quando me prometeu a ele.
— Mas agora as coisas são diferentes, Ayla. O Rei Taurus precisa se aliar a Solamaris, pois Alúzia está em vias de ser atacada pelos bárbaros. É de vital importância que sejamos seus aliados através do matrimônio, o que assegurará a união de nossos reinos contra o tirano Méfilis. Segundo nossos informantes, o maldito está quase convencendo Árida a se voltar contra nós e não podemos, de forma alguma, deixar isso acontecer. Galahan conseguirá convencer o Rei Clavius da força que nossos exércitos terão ao se unirem.
— E para isso eu serei a sacrificada — disse, em tom arrogante.
— Não será um sacrifício, minha Rainha. Pense que um herdeiro será bem visto. Além do mais o rei será apenas seu consorte.
— Deixe-me a sós, Petrus — pediu, deixando-se cair sentada em uma das cadeiras.
O destino às vezes é um inimigo cruel que volta e meia surge a cobrar as imprudências cometidas. A imagem do homem que destruiu sua vida se formou diante dos olhos. Os cabelos negros brilhando a luz do luar enquanto a tomava nos braços, acobertados pelos imensos jardins do castelo, deixaram-na sem fôlego. Tanto tempo e ainda sentia o coração bater descompassado apenas ao ouvir seu nome, contudo, o amor que sentia se transformou em ódio quando ele simplesmente a deixou e nunca mais voltou. Seu pai lhe confidenciou que o acordo fora desfeito, sem maiores explicações. Ela sofreu, contudo soube por uma das camareiras, a cochichar enquanto trazia suas vestes, que o maldito fora pego em atos libidinosos com a amiga da irmã. Disseram que há um herdeiro bastardo, contudo, a pobre moça fora levada do reino de Alúzia e nunca mais se soube dela e do bebê.
A mente de Ayla fervilhava. Por muito pouco não se deixara ludibriar por aquele rosto lindo, perdida entre beijos ardentes e promessas vazias. Não fosse a criada alertá-la que alguém se aproximava, poderia ter estado em uma situação que deixaria seu pai enfurecido. E em breve estaria novamente frente a frente com ele. Sua negativa ao decreto do pai a destronaria e isso ela jamais permitiria. Solamaris era seu reino e não deixaria nenhum patife assumi-lo. Precisava agir com cautela, entretanto, seu coração apenas pulsava na chama da vingança e ela a teria, mesmo que para isso precisasse mover mundos e fundos para se tornar uma rainha viúva, e então, governaria Solamaris sozinha, mesmo que esta atitude não fosse vista com bons olhos. Teria muito tempo para elaborar um plano após o casamento.
***
O salão real estava apinhado de convivas. O manto vermelho que cobria as vestes brancas de Ayla reluzia sob o tremeluzir das velas. O longo cabelo fora trançado e inúmeras flores e pérolas adornavam os elos deixando seu rosto ainda mais belo. Os olhos claros observavam a todos, mantendo-se altiva, enquanto caminhava para selar seu destino. Mirou as costas de Galahan, antes que ele se voltasse para sua entrada, sentindo-se trêmula quando seus olhos se encontraram. Ele sorriu, resplandecendo o ambiente com sussurros exasperados das moçoilas, invejosas de sua sorte. Azar, para ser sincera consigo mesma. Aproximou-se do belo Príncipe e tivera a mão beijada por seu sogro, o Rei Taurus, que não disfarçava o contentamento.
Deixara as palavras matrimoniais entrarem por seus ouvidos, repetindo-as sem senti-las. A raiva avolumava-se em seu peito ao vê-lo esbanjar sorrisos para todos os lados, em um flerte constante. Aquele fora o sim mais difícil de toda a sua vida. Quando sentiu a coroa ser depositada no alto da cabeça, seu coração serenou e só então, teve coragem de encará-lo. O cetro estava em sua mão, não na dele. E seu desejo era arremessá-lo naquela cabeça cheia de perfídia, contudo não o faria diante plateia que tanto esperava dela.
O casamento precisava ser consumado e ela o faria, pois um herdeiro era imprescindível, contudo não tornaria a vida dele tão fácil. Fê-lo pensar que se submetia, fingindo estar feliz e segura em seus braços, contudo bem ciente de seu plano. Galahan esbanjava vivacidade ao andar pelas ruas de Solamaris, usurpando o lugar de seu pai nos corações do seu povo, tornando-a apenas uma coadjuvante ao continuar a ser um galanteador. Os reinos estavam fortalecidos e a ela coube apenas esperar.
— Mandou-me chamar, minha Rainha — aproximou-se Petrus, adentrando aos seus aposentos.
— Dê-me notícias do bárbaro — ordenou, fazendo Petrus franzir o sobrolho, desconfiado.
— Creio que não deva se preocupar com isso, senhora. Deixe...
— Não deixarei o imbecil do meu marido tomar decisões tão importantes como esta — sustentou o olhar de Petrus, que anuiu antes de lhe passar as informações.
— Ele recuou, entretanto o homem é um conquistador e seu exército, mesmo em menor número do que os nossos, ainda é preocupante. É um louco e está sempre em busca de aliados, visando expandir seu reinado.
— Soube que ele tem uma filha e que ela costuma cavalgar apenas com sua criada e o braço direito de Méfilis. Arranje um pretexto para Galahan encontrá-la. O maldito cairá em seus encantos e isso trará seu pai até mim.
— Não creio que esta seja uma boa ideia, minha Rainha. Méfilis pode decretar guerra a Solamaris.
— Ele não o fará, Petrus.
— Não sei o que tem em mente, minha Rainha, mas isso não é prudente. Quem sabe o que ele poderá fazer à senhora? Não posso permitir.
— Vou me tornar sua aliada.
— Nossos conselheiros jamais permitirão, minha Senhora. O povo será capaz de fazer uma rebelião, o que poderá ocasionar em sua queda — alegou, assustado. Ayla sorriu diante de seu olhar perplexo.
— Eu os convencerei. Serei a Rainha mártir.
***
O plano de Ayla deu resultado. Maíra, a Princesa de Avanis, deixara-se seduzir pelo garboso cavalheiro que jamais pensava nas consequências de seus atos, desde que se satisfizesse. A pobre se viu, entre tardes de romances ardentes onde sempre conseguia fugir de sua criada em livre cavalgada, apaixonada por Galahan e trazendo um filho seu na barriga.
Embora esse fosse o plano, Ayla sentiu mais uma vez a força do ódio que a movia. Petrus, que sempre seguia Galahan sem que ele soubesse, trouxe-lhe a notícia do alvoroço no Castelo de Avanis, segundo suas fontes. O larápio fora pego em flagrante com Maíra pelo próprio Méfilis, desconfiado do sorriso bobo da filha e, ao descobrir que o homem que roubara a pureza de sua filha era o Rei de Solamaris, enfureceu-se a ponto de declarar guerra. Entretanto, Ayla se antecipou e lhe enviou uma carta solicitando sua presença.
Ao ver o homem que todos temiam, sentiu um frio percorrer sua espinha. Não se parecia em nada com a imagem monstruosa que fazia em sua mente. Méfilis era viril, ainda jovem, dono de olhos marcantes em um rosto admirável. Conversaram a portas fechadas e o destino de Galahan foi selado.
A notícia da traição correu por toda a Solamaris e, embora Galahan fosse admirado, havia os que o odiavam em segredo, devido à sua libertinagem desmedida. A imagem sofrida da Rainha Ayla se tornara alvo de compaixão por seu povo e ninguém se importou com o cruel destino de seu infiel marido. Méfilis lavou a honra da sua filha com sangue, tornando a Rainha Ayla em uma viúva jovem e belíssima. Contudo, sua liberdade mais uma vez teria um preço.
O belo tirano, após uma semana do luto real, adentrou em Solamaris com seu exército, marchando pelas ruas, encarando o povo com olhos frios até à entrada do castelo. Ayla, surpresa, o recebeu no salão redondo.
— Minha Rainha, — dirigiu-se a ela, tomando-lhe as mãos delgadas — sua beleza cativou meu coração — sorriu, antes de beijá-las. — Tiveste o que queria e agora desejo o que é meu. — Agarrou-a pela cintura, encarando os olhos sequiosos de Ayla antes de roubar-lhe um beijo.
Ayla não o afastou. Ao contrário. Sentiu o corpo responder ao toque das mãos ásperas de Méfilis. Talvez o que ela precisava estava bem à sua frente. Uma união com o tirano traria uma força política ao seu reino que jamais pensou possuir sozinha, ao mesmo tempo em que seria adorada por se sacrificar pelo povo. Depois que tirano a deixou, Petrus entrou na sala, preocupado, encontrando-a a sorrir.
— Minha Rainha, a presença deste homem...
— Trará grandes benefícios a mim, Petrus. Casar-me-ei com ele.
— Esta união não será bem vista.
— Será, pois Solamaris e Avanis serão uma só. E quando o herdeiro de Méfilis nascer eu o terei na palma da minha mão.
— Pensei que o amor não coubesse em seu coração e que seu sonho fosse governar Solamaris sozinha — perscrutou-a, interessado.
— Está correto, Petrus, porém sonhos podem ser adiados, ainda mais quando uma oportunidade surge diante de nós. Méfilis é um belo homem e governa com a força de seu braço. Serei adorada e governarei com a força da mente, assim como você, papai, que um dia sonhou governar com mamãe. Infelizmente ela morreu antes do Rei Miklos, cuja misteriosa doença abriu precedente para minha coroação. Talvez seu desejo fosse imperar através de mim, entretanto... Tenho outros planos, papai — encarou-o, sustentando seu olhar.
— Como soube? — indagou Petrus, boquiaberto com sua astúcia.
— Ao contrário do que todos pensam, mamãe era um mulher sábia e me ensinou muitas coisas. Mas seus segredos estão seguro comigo. Somos muito parecidos, não acha?
Ela sorriu mais uma vez, admirando os bosques de seu reino, enquanto os olhos de Petrus foram ao chão, pensativos. Não importa por quanto tempo mais. Um dia Solamaris será somente sua.
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