Não há dia em que eu não passe pela Rua Lagoa Santa. Nada nela se destaca além de um prédio que de tão grande e cinza, destoa-se das demais casinhas e apartamentos populares do Jardim Antártica. O prédio servia, a não muito tempo, como fábrica de móveis hospitalares, a Fábrica Santa Luzia, que empregava muitos homens do bairro. Era costumeiro, entre 12h00 e 13h00, ver um bando de rapazes na jaqueta, um tanto sujos, deitados no estacionamento aberto logo na entrada, sombreados por uma bonita fileira de eucaliptos. Não se ouvia muito som de maquinário no interior da fábrica, que de modo geral parecia um lugar tranquilo, como todo o bairro. Apenas uma vez vi movimentação diferente ali onde os funcionários descansavam: Aos montes, mobilizavam-se aos gritos por melhores pagamentos e condições de trabalho. Meses depois, a fábrica Santa Luzia deu adeus a Rua Lagoa Santa. Por que falo disso? Nostalgia fútil? De modo algum. Acontece que com o fechamento da fábrica, vi que havia condições muito favoráveis de aquele prédio passar a abrigar alguns fantasmas, cujos murmúrios e troças fariam debandar muita gente, e colocariam o pacato Jardim Antártica na lista pouco expressiva de bairros assombrados na zona norte de São Paulo.
Isso aconteceu? Não, infelizmente. As condições eram realmente boas. Paredes velhas e mastigadas pela chuva, não havia luz na fachada, as janelas nos andares superiores estavam sempre embaçadas, e com certeza ali dentro havia espaço e lixo suficiente para um bando de espíritos trevosos amaldiçoar a vida humana. Contudo, parei muitas vezes em frente ao prédio, e nenhum poder mais ou menos maligno se insinuava. Os motivos então ficaram claríssimos. Sempre por volta das 23h00, passando pela Rua Lagoa Santa ao voltar para casa, comecei a notar a presença de casais adolescentes, alguns bastante apaixonados, que no escuro do estacionamento faziam tudo que nas casas não podiam fazer. O espaço era ocupado de maneira até organizada, tendo geralmente de três a cinco casais divididos pelas paredes e troncos de eucalipto, sem que um incomodasse o outro. Se alguma coisa assustava ali, era de certo a voracidade com que algumas meninas e moleques demonstravam seus afetos. Mas fantasmas? Fantasmas não. E não é só isso. Parte da fábrica começou a passar por uma reforma estranha, exageradamente colorida, e um mobiliário pequeno e cheio de firulas era aos poucos descarregado para dentro do prédio. Meu temor se realizou. Metade da nem tanto assustadora fábrica Santa Luzia tornou-se uma escolinha de educação infantil. Por algumas semanas tive fé de que o mau seria mais forte, logo correriam notícias de algum casal desaparecido, ou de que crianças na nova EMEI estavam vendo vultos nos corredores. Mas minha fé se esgotou. Na verdade, a Rua Lagoa Santa era muito agradável, e tive que aceitar, com muito pesar, que o Jardim Antártica é um bairro familiar e fofo demais, insuportável pra qualquer fantasma.
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