Algumas coisas podem ser melhores
Se nós apenas a deixarmos serem."
- Guns N' Roses; Yesterday.
×-×-×-×-×-×-×-×-×-×
Japão, Osaka. 20:00.
Correr.
Ela precisava correr.
Seu coração disparava tanto à ponto de doer em seu peito. O misto amargurado de angústia e desespero parecia tomar-lhe a alma e cada canto de seu corpo trêmulo. Talvez aquela nem fosse a reação cabível para o momento, talvez fosse gatilho para despertar naqueles homens a raiva que até então adormecia em cada um de seus íntimos, mas não conseguiu controlar-se e, não obstante, só percebera bem depois após girar os calcanhares e disparar sem rumo para qualquer canto que seus pés doloridos lhe levassem. O tinido de seus passos ecoava alto, ou talvez fosse somente impressão dela. Seus pulmões pareciam trabalhar arduamente mais do que o normal para que ela ao menos não acabasse morrendo por falta de ar à qualquer momento; não podia parar. Não haviam levado nem mesmo três minutos, mas já sentia a fadiga de uma hora ou duas, ou quem sabe a eternidade. Mas não podia parar. Tinha a impressão de que se cessasse seus passos, seria pega em menos de um segundo. Todo o seu esforço iria esvair-se em pó, assim como qualquer resquício dela quando fosse tocada por mãos desconhecidas. Persista, Uraraka Ochako. Nem que lhe surjam calos, você precisa persistir.
Ah, era irônico alimentar esperanças de um bom fim depois de cada minuto daquela noite que mais lhe parecera uma tragédia bem arquitetada.
Momentos atrás, o sol despontava em meio ao céu já escurecido. Cigarras cantavam ali e acolá, pessoas iam e voltavam como o fluxo de um rio. Esbarravam-se vez ou outra. Riam, dialogavam e gritavam em um aglomerado caloroso e um tanto incômodo. Sujeitos trajando ternos e gravatas, ou blazers e quaisquer outras coisas sociais desviavam de si em uma pressa sem igual. As saias rodadas das moças remexiam-se quando a brisa noturna deslizava em seu tecido. Os rapazes pareciam divertir-se com as cenas, mas Uraraka sabia que uma calcinha de cor clara ou coxas à mostra lhes divertiam mais do que um simples susto coletivo entre colegiais pegas de maneira desprevenida. A cena era nojenta, como ela mesma costumava dizer. Não queria ser comida pelos olhos, então para o desgosto daqueles sedentos por uma pequena amostra de seu corpo, a infelicidade: ela vestia uma meia calça escura por baixo, bem escura, e que se danem os caras e o vento agitando suas vestes.
A cidade cintilava em um misto de cores e formas encantador mesmo que não fosse tão grandiosa quanto Tokyo era, mas por algum motivo, todo aquele movimento estava a lhe deixar apreensiva. Era mais um fim de turno normal, encerrando-se da maneira de sempre: ela voltava sozinha para casa, trajando as vestes colegiais de todos os dias, carregando em mãos a bolsa onde encontravam-se seus devidos pertences. Todos os dias ela guardava e levava dinheiro à mais, pois havia uma doceria perto de sua casa onde costumava comprar tudo o que tinha direito, em especial chocolates e gomas de mascar de cor vermelha, seus favoritos. A dona do lugar, a senhora Mizuki, sempre lhe presenteava com Marshmallows como prova de que adorava a cliente doce e fiel. Sua mãe costumava vê-la com a sacola cheia de guloseimas e lhe dizia que a culpa do seu rosto ser tão redondo era dos chicletes, e era ignorada com sucesso pela mais nova, que dava-se ao trabalho de apenas assentir com a cabeça e subir para o quarto, onde iria deliciar-se com tudo aquilo sem ninguém atrapalhando-a. Era o seu momento preferido dos dias sempre iguais. Voltava para casa sem culpa e com a sensação de que havia gasto muito bem o seu pouco dinheiro, mesmo que por um segundo ela se arrependesse após sentir suas bochechas incharem, mesmo que elas já fossem inchadas naturalmente. E lá estava ela, feliz da vida como sempre fora, carregando em mãos não só o seu material para estudo como também os doces que amava.
Voltou para casa. Abriu a porta, deixando os sapatos na entrada como de costume de toda a civilização japonesa. Sorriu largo, esperando a mãe vir recebê-la e comentar sobre o quão gomas de mascar faziam mal para a saúde ou o seu pai, ainda trajando as roupas do trabalho, rindo da reação da da e defendendo a filha só para ganhar um pedaço de chocolate - bem, era esse o trato: "se me ajudar, eu te recompenso" -. Mas não houve. Não houve cumprimento, não houveram risadas e nem provocações saudáveis de uma família unida. Por um momento eram somente ela, o silêncio e a luz fraca daquela pequena área iluminando sua visão. Ela estranhou, cogitara até estar sozinha por motivos no qual não conhecia. Onde estariam? Talvez sua mãe estivesse em uma das vizinhas, paoeando como fazia vez ou outra. E seu pai, provavelmente precisou ficar até mais tarde no trabalho e já estava a caminho. Ou quem sabe ambos saíram juntos, deixando um bilhetinho como aviso em um canto qualquer daquela casa para quando ela lesse assim que chegasse. Mas quando deu-se por si, ouviu a voz grave do pai ao longe, chamando-lhe a atenção de maneira ligeira.
- Ochako?
Ela suspirou. Por algum motivo, havia algo de diferente naquilo, algo que lhe arrepiara a pele dos pés à cabeça em questão de segundos. Preocupação? Provavelmente. Até o momento não houvira sua mãe, e a casa calou-se ao ponto de fazê-la pensar nas piores situações. De meias, ela entrou na casa. Iluminada, mas vazia. Seu pai não estava aconchegado no sofá, sua mãe não caminhava de um lado para o outro. Seu olhar percorreu por cada canto daquele conhecido recinto e avistou a cozinha, aberta e iluminada, decorada com a sombra de alguém espalhada pelo chão. Ah, seu pai. Ela caminhou lentamente, aproximando-se aos poucos daquele lugar, tendo a vista nítida, finalmente, de seus pais ali. Sua mãe mantinha-se de pé, aparentemente nervosa. Seu pai encontrava-se sentado, pensativo, o semblante fechado como ela nunca havia visto antes. Com o olhar, ele lhe mandara o recado silencioso, no qual ela entendera bem: "sente-se". Ela o fez. O fez reclusa, o fez remoendo em sua mente o que poderia ter acontecido, ou melhor, o que ela havia feito para estarem agindo de maneira tão deprimente. Nem imaginava que teria de lidar com o pior momento de sua vida quando seus pais a chamaram para uma conversa antes do jantar, somente eles três, unidos à mesa como sempre fizeram, porém envoltos de uma sensação estranha que insistia em pairar sobre suas cabeças logo após reunirem-se ali.
Silêncio. Cortava-lhe o peito como um facão corta qualquer coisa. Sua respiração era pesada, consistindo em nervosismo e ansiedade. Nem lembrava-se dos doces acima da mesa, ou qualquer outra coisa. E, após o longo e pesado suspiro do homem à sua frente ser o único e primeiro barulho à fazer-se presente naquele lugar, aconteceu; a notícia. O espanto. As perguntas e o choro sofrido em lágrimas quentes que escorriam-lhe pela face arredondada. A negação, a insistência. Sua mãe não lhe dizia uma palavra sequer, provavelmente por compaixão, provavelmente por medo, e em seu íntimo Ochako sabia disso; mas não pôde deixar de culpá-la por não tentar convencer seu pai ao contrário, seu pai que antes era seu porto seguro e de repente tornara-se o seu maior pesadelo. Cresceu às custas dele, cresceu querendo estar com ele pelo resto de sua vida. Mas cá estava ela, ouvindo dele os assustadores gritos estrangulados de alguém que precisava deixar claro que sua palavra era lei quando ela decidiu enfrentá-lo e dizê-lo que não, não era certo, ele poderia obrigá-la à tudo, mas não àquilo. A discussão entre pai e filha tornou-se caos. Caos este que a mãe tentara dar fim, caos este que Uraraka Ochako não conseguia suportar e de repente viu-se levantando-se daquela cadeira, correndo entre os corredores da casa, calçando-se de maneira desengonçada e correndo, correndo para bem longe, com o intuito passageiro de nunca mais voltar para lá, nem mesmo com os gritos de sua mãe ao longe suplicando para que ela parasse, nem mesmo com seu pai chamando-a pelo nome, achando que seria capaz de detê-la.
Foi difícil. Foi difícil imaginar que acordara pela manhã e tomara coragem para levantar-se para nada. Foi difícil calçar-se e quebrar a sucessão de acontecimentos de sua vida monótona, porém, até o momento, feliz. Foi difícil caminhar apressadamente pelas ruas tentando conter o choro angustiado, mas sem receber um olhar sequer; era só mais uma, mais uma entre tantas, e não lhes importava se estava prestes à fazer besteira ou não. Foi difícil chegar em casa e não avistar seu pai sentado à mesa lendo o jornal tranquilamente enquanto bebericava uma xícara de café, e sua mãe pondo a mesa e rindo de qualquer coisa. Sentiu falta até mesmo de, vez outra, acabar pegando-os de surpresa namorando como um casal bobo apaixonado. Foi difícil. Foi difícil ver sua mãe tentando em vão conter a expressão de pena que surgira em sua face com a chegada da filha ao lugar. Foi difícil ingerir cada detalhe, aliás, foi difícil olhar para seu pai durante todo o diálogo. Foi difícil. Tentar seguir em frente com todas as palavras de seu pai rodopiando em sua mente, fazendo-a pesar mais do que uma dúzia de pedras em cima de sua cabeça. Subitamente a sua vida virara do avesso e agora estava sendo obrigada a lidar com todas as mudanças que aquelas poucas palavras ditas por ele proporcionaram para si de um segundo para o outro.
"Ochako, você irá se casar".
Mas especificamente daqui há uns dois meses. E se tinha uma coisa que a magoava profundamente fazendo seu coraçãozinho abrir-se em ferida era saber que, durante todo aquele tempo, ela estava prometida à alguém que sequer conhecia. Prometida! Não havia um anel em seu dedo, mas repentinamente passou a sentir todo o peso de estar noiva nas costas; e com apenas dezoito anos. E droga, como era-lhe assombroso. Imaginar uma vida de esposa onde claramente teria de se submeter à um homem e fazer seus gostos, pois era assim que precisava ser. O resto do mundo inteiro parecia saber que aquele tipo de crença em um relacionamento entre mulheres e homens era errado, mas o conhecimento passava despercebido por todo o Japão, onde pessoas preferiam fingir que o erro existia e seguir suas vidas como se não se importassem com o próximo. E não que casar com alguém que amava estivesse em seus planos para o um futuro próximo; nunca esteve. Já teve um milhão de conversas com sua mãe sobre e em cada uma delas ela deixava bem claro: "mamãe, eu não quero me casar". Pra quê? Não precisava disso. Não era como se a mulher, para vir ao mundo, prcisasse cumprir com o requisito de que tinha de se casar para ser alguém na vida. Não imaginava-se dividindo seus pertences com alguém, ou até mesmo a mesma cama, ah, sabe-se lá. Pessoas quando amam-se normalmente se casam, ah, tudo bem, mas ela nunca nem amara alguém durante toda a sua vida. Bem, Ochako admitia que nem sequer sabia o que era amor em sua essência.
Foram dezoito anos sem carregar o peso de uma paixão e estava bem dessa maneira, não estava? Ela não precisava. Não tinha que se casar com ninguém, não tinha que fazer do amor uma obrigação. Amor é coisa que surge do nada, naturalmente, e é assim que se ama. Forçar não. Então porque seu pai queria casá-la? Doía. Ser obrigada a tal doía, e doía mais ainda saber que nem apoio dos pais tinha. Então saiu, distanciou-se até as cores de Osaka tornarem-se pequenas casas em meio ao escuro. Não havia choro, não havia ninguém. Havia uma Uraraka Ochako de mente distante e coração partido. Havia uma Uraraka Ochako coberta de pensamentos e de tristeza no olhar. E haviam lembranças; lembranças de momentos atrás, tão vivas e nítidas que de repente viu o mundo afora tornar-se a cozinha de sua casa, seu pai surgir à sua frente enquanto sua mãe mantinha-se ali, de pé, em sua sigularidade.
"Mas... O que? Por que?"
"Porque é o certo, Ochako. Deveríamos ter dado-lhe a notícia antes, mas..."
"Mas preferiram me dizer na véspera do casamento."
"Escute, é para o seu bem" ele lhe dizia em meio à um suspiro pesado. Não houve acordo, não houve nada que amenizasse a situação. Sequer houveram motivos plausíveis para que de repente estivesse sendo prometida à alguém de maneira tão primitiva. Bem, porque alguém gostaria de casar-se com ela? Os Uraraka não eram ricos. Seu pai trabalhava em um escritório, mas nada de grandioso, e era exatamente isso o que garantia o alimento de todos os dias. Sua mãe não tinha emprego fixo, mas para toda "grande" ajuda que prestava ela era recompensada com uma boa grana, como por exemplo, ajudar no jardim das vizinhas, vender biscoitos e esses tipos de coisa. E Ochako só estudava. Era a fodida estudante que ganhava do mesmo modo que sua mãe, e estava atrás de um emprego mesmo que os pais insistissem que ela se concentrasse apenas nos estudos. Não havia grande herança, não havia luxo e eles viviam de forma humilde, sem tanto rebusco. Seu pai a casaria com alguém de grande porte por dinheiro? Ele seria capaz de tal? Por acaso o senhor seu noivo era alguém conhecido em Osaka? Ah, se fosse, aquilo deveria lhe animar? Porque era deprimente. Preferia mil vezes trabalhar carregando sacos e mais sacos de areia do que ter tudo beijado em suas mãos. Tsc, sua mente era uma bagunça de indagações e deduções variadas. Uraraka, por um momento, perdera até a noção de rumo e passara a caminhar por aí à pensar sobre o quão sua vida poderia piorar naquele instante.
Dizem que energia negativa atrai coisas negativas.
Então, houve o ocorrido. O barulho distante de passos aproximando-se de si só lhe fizeram perceber quando era tarde demais. Se desvencilhara de seus pensamentos quando em torno de três homens juntaram-se, caminhando por trás de si em risadas frenéticas e piadas de mal gosto. Foi quando percebeu que havia ído longe demais; e não sabia como tinha parado ali, nem mesmo onde se encontrava naquele exato momento.
- Ah... O que temos aqui? - O primeiro comentou, fazendo-a engolir em seco. Seu corpo parara em choque, obedecendo ao medo que de repente invadira suas entranhas.
- Se perdeu, docinho? - Riu um segundo. Uraraka finalmente viu-se em coragem o suficiente para falar.
- E-eu não queria...
- Estar aqui? - O terceiro completou, sorrindo malicioso. - Ninguém quer, anjo. Uma vez aqui, é difícil sair. - Estalou a lingua no céu da boca. Uraraka suspirou fundo.
- Saindo do colégio? Mas que doçura de menina. - Um outro riu, o segundo deles. - Sabe, as meninas daqui não andam com saias tão curtas assim.
- Imagine a nossa dor. Porra o que tem mostrar um pouco de perna vez ou outra, hn? Mas, não. - Um deles mostrou-se indignado, mesmo entre um sorrisinho irônico ou outro. - Só vemos vadias de saias longas desde que aquela puta chegou aqui e isso é deprimente. E sabe, princesa, eu posso te dar uma dica?
Não, não podia.
Uraraka tremia em resposta. O pavor revirava seu estômago e ela sentira que vomitaria ali mesmo, uma hora ou outra. Sua mente lembrava-lhe um alerta de carro ativado gritando-lhe em vozes graves em ordens claras: "saia daí". Isso, isso, tinha de sair dali, e rápido. Seu coração apertado parecia só querer lembrar-lhe de que algo de errado aconteceria, mais cedo ou mais tarde; mas não conseguia. Seu corpo fraco não respondia à suas súplicas internas e muito menos ao seu aparente desespero. Tudo o que conseguia fazer era mover suas orbes claras para cada detalhe daquele lugar, percebendo dolorosamente o quão diferente ele parecia de Osaka em seu geral. Parecia não haver cor, não haver vida. Era daquele lugar que as suas amigas falavam, certo? Quando diziam que existiam locais onde ela não deveria nem pensar em pisar. E como se não bastasse, as vozes graves e maliciosas daqueles homens atrás de si não cessavam, nem por um segundo. Ela não ousou virar-se para encará-los cara a cara - talvez até quisesse, mas não conseguia. -, porém algo em si lhe fazia ter a sensação angustiante de que eles não deveriam ser bem mais velhos do que ela. Ordenou novamente para si mesma: corra. Mas seu pés grudaram no chão como papel gruda em cola. Puta merda, como era idiota! Se não tivesse sido tão imprudente, com toda a certeza do mundo não estaria metida em confusão. De repente, a porcaria do casamento lhe parecera bem mais seguro.
Subitamente, sentiu. Os braços firmes e audáciosos de qualquer um dos três lhe envolveram a cintura, colando seu corpo ao dele em um movimento angustiante. Por um momento, sua respiração falhara em resposta quando sentiu os lábios alheios movimentarem-se para perto de sua orelha, podendo sentir o ar quente de sua boca ali. Enjoo. Sentiu algo pesar em seu estômago.
- Se tirar essa meia-calça, vai facilitar meu trabalho... - Sussurrou, dando-lhe uma leve mordida no lóbulo da orelha. - ... E vai ficar mais linda so que já é, anjo meu.
Novamente, ele a beijou. O contato daqueles lábios úmidos e do pescoço da moça criaram um som estalado. Ela arregalou os olhos em resposta. O alerta em sua mente parecera mais alto e de repente, bum; despertou. Sentiu seus pés descolarem-se do chão. As pernas trêmulas criaram força, e seu olhar perdido fixou-se no horizonte. "Corra, Uraraka", as vozes lhe diziam. E finalmente, o seu corpo fez-se entendido, obedecendo-a quase que no mesmo segundo.
O terror espalhou-se pelas veias como soro injetado. Seus pensamentos bagunçaram-se tornando-se apenas palavras variadas que mesmo não formando uma frase pareciam encaixar-se bem umas nas outras; "corra" "frente" "cair". Não ousou olhar para trás, mesmo ouvindo os passos dos três rapazes desconhecidos atrás de si, mesmo ouvindo-os balbuciarem coisas que ela não entendia. Nunca havia passado por tal situação, na verdade nunca nem tivera proximidade com outros homens com excessão de seu pai. Era até irônico, diria; ouvir sempre da boca de colegas situações parecidas, desejar-lhes força e um ombro amigo, mas acreditar inocentemente que tal ocorrido ela nunca vivenciaria, nem mesmo em sonho. E agora corria, corria sem rumo desejando que suas pernas não falhassem e que ela não caisse, disparando entre aquela estreita trilha de casas abandonadas e barrancos vazios, sentindo o corpo inteiro queimar como pimenta na lingua e o seu pescoço antes alvo de beijos indesejados chamuscar em uma dor estranha, mas real. Era assustador, mas só precisava pensar nos braços daquele homem segurando-lhe o corpo e suas pernas tornavam-se fortes como aço e rápidas como o vento.
Seus pensamentos organizaram-se em determinado momento, fazendo-a desesperar-se mais ainda quando percebeu: se continuasse daquela forma, não chegaria a lugar nenhum. Em um impulso, seu olhar turvo tentou, com esforço, localizar algum lugar para que pedisse ajuda; não era possível que não houvesse ninguém ali. Tinha que haver alguém e Uraraka tinha de acreditar que conseguiria auxílio, caso o contrário, tudo estaria perdido. Seus olhos avistaram ao longe um portão aparentemente velho de cores escuras, e fora ali onde ela depositou sua fé. Correu, com as últimas forças que lhe restavam, jogando-se naquele portão, batendo no mesmo freneticamente enquanto gritava por ajuda. O grito estrangulado expandia-se por toda a redondeza, mas nada. Lágrimas já rolavam grossas por sua face quando de repente tudo veio à toda; a dor no corpo, o nojo, o medo extremo. Ela arrastou-se pelo portão lentamente até despencar de joelhos no chão, sentindo o latejar de suas pernas aumentar e a força de momentos antes desaparecer como o último resquício de sol antes de entrar em sua casa naquela noite e tudo tornar-se tragédia. Já não bastava-lhe casar-se à força, e agora o som próximo dos passos daqueles homens combinado às respirações ofegantes e à risadas maldosas só confirmavam-lhe cada vez mais que tudo estava prestes à piorar. Não conseguia gritar. Seu corpo travara mais uma vez, como antes. O olhar desesperado pairou sobre aqueles três homens, que agora discutiam sobre os próximos passos que tomariam quando finalmente a tivessem nos braços. Choro. O choro amargurado e o sentimento de prepotência combinados em um único coração. Por um instante, preferiu morrer.
Imediatamente, houve o estalo.
O sonado que assemelhava-se ao barulho de uma explosão surgira de supetão, alto, fazendo-a pular em um susto.
Era tiro.
Ochako não conseguira identificar ao certo de onde vinha. Foi um único ruído, claro e ligeiro, seguido de gritos masculinos e uma sucessão de movimentos bruscos que lhe passaram à frente como borrões. Outro tiro. O segundo "poft" de algo despencando de encontro ao chão surgira logo em seguida. Por um momento achou que aqueles tiros remetiam-se à ela, e por isso fechara os olhos, concentrando-se na suposta dor que estava prestes à surgir em qualquer canto do seu corpo. Nada. Nada além de membros trêmulos e cansados. Ela moveu suas pálpebras, e seu olhar confuso avistara ali perto a movimentação que fazia-se. Mais ruídos, eram socos. E em sequência, passos; passos que de repente afastaram-se, ficando rapidamente mais baixos até tornarem-se inaudíveis. Elas piscou uma, duas, três vezes. Eles haviam ído embora? Huh, não. Havia alguém ali, e esse alguém aproximou-se devagar, mas com tempo curto o suficiente para que Uraraka não conseguisse reagir. Ela piscou mais vezes. Sua visão ajustava-se melhor à cada segundo. A respiração ainda falhava, o coração pulsava de maneira dolorosa. Mas se tinha algo nítido em si naquele momento era a confusão instalada em sua mente, obrigando-a a não conseguir digerir com clareza toda a série de acontecimentos que ocorreram naquele exato momento.
- Está tudo bem contigo?
A voz desconhecida pairara por ali, mas claramente não pertencia à nenhum dos homens que a seguiam anteriormente. Era feminina. Uma voz firme, porém claramente feminina, o que por um segundo permitiu a moça à suspirar fundo pela primeira vez depois de todos os ocorridos. Ochako não a respondeu. Ela deixou-se, por um momento, observar em silêncio cada detalhe daquele rosto tão próximo ao seu, finalmente absorvendo tudo com clareza: ela tinha olhos puxados e negros, negros e profundos, porém sem brilho algum. Sua face era levemente ruborizada e seus cabelos tão negros quanto suas orbes, porém presos e um tanto altos. Trajava roupas de colegiais como ela, porém estas de cor escura, com um laço vermelho amarrado à frente e a saia longa que no momento cobria-lhe até parte dos pés, provavelmente por estar ajoelhada à sua frente. Por algum motivo, Ochako não conseguiu fitar seus olhos por muito tempo. Havia algo neles que lhe desconcertavam de uma maneira aparentemente não tão boa, então em um impulso os desviou rapidamente, porém, tendo a oportunidade indesejada de finalmente deslumbrar o destino daqueles homens que de repente desapareceram de sua frente: haviam dois, estirados sobre o chão, envoltos em sangue, imóveis. Os tiros. E o terceiro desaparecera como mágica, não havendo resquício nenhum dele naquele exato momento. Os passos.
O cenário daqueles dois homens mortos já fora o suficiente para fazê-la agitar-se em desespero novamente.
- Ah... AH! - Ela grunhiu alto, sentindo tudo surgir-lhe bruscamente. Aparentemente não conseguia sugar direito o ar para seus pulmões, deixando-a ofegante, deixando-a claramente aflita e agoniada. A moça a sua frente levara rapidamente as mãos até seus ombros, percebendo o estado em que a moça encontrava-se depois de tudo.
- Hey, calma! - Pediu com certa suavidade. - Tá tudo bem agora, okay? Eu preciso que você se acalme. Precisa respirar fundo. - Esclareceu após ouvir a moça engasgar-se à procura de ar. - Não, não assim! Ah, cara... Olha, presta atenção.
A moça deslizara suas mãos até a face avermelhada da menor. Ambas envolveram as laterais de seu rosto, obrigando-a a fitá-la naquele instante, e Ochako o fez. A morena a sua frente simulava em gestos simples com os lábios e o tórax uma respiração controlada, ainda segurando com as mãos o rosto da menor, garantindo que ela prestaria atenção em si e não surtaria novamente como momentos antes. Ochako, com dificuldade, a seguira; seu corpo ainda tremia, agora que estava conseguindo sentir suas pernas novamente. Ainda tinha a sensação chata e constante de que iria vomitar, mas ainda assim, esforçou-se para seguir as instruções silenciosas da moça, passando a respirar como ela mesma fazia. Inspira, um, dois. Expira, um, dois. Inspira, um, dois. Expira, um, dois. Consecutivamente, inspirava e expirava cautelosamente, e para a sua surpresa, sentiu que o ar em seus pulmões começava a fluir melhor do que antes, deixando-a consideravelmente mais tranquila. Sentira na pele o porquê de pedirem tanto para as pessoas concentrarem-se na respiração durante uma crise de ansiedade ou sei lá o quê.
- Melhor? - Ela indagara e Ochako assentiu fraca. Tentava de todas as maneira possíveis não acabar visualizando os dois corpos ao chão ali perto. - Ótimo! Eles te fizeram alguma coisa? Te machucaram? Te obrigaram à algo?
- Eles... Eles me disseram que fico melhor sem a meia-calça.
- Eles o quê?
Ochako piscou duas vezes antes de colocar-se a chorar novamente. Recordava-se não só dos momentos perturbadores que tivera com aqueles três rapazes quando dera-se por si, mas agora lembrava-se claramente do que havia lhe levado a parar em tal lugar. Os pais, em especial o seu pai, a notícia inesperada do casamento indesejado. A raiva, o desapontamento, e o leve arrependimento de ter sido tão idiota ao ponto de acabar parando em um lugar no qual não conhecia. Como as coisas poderiam piorar daquela maneira? Uraraka tremia-se de espanto, mesmo que ainda insistisse em concentrar-se na droga da respiração em meio aos soluços de um choro desabafado. A moça à sua frente parecera desconcertada ao perceber que ela entregara-se às lágrimas após as suas perguntas, e subitamente Uraraka sentira os dedos polegares alheios moverem-se em seu rosto em um carinho inocente.
- A meia-calça! - Respondeu, em uma fala sofrida. - Eu descobri que vou me casar! O meu pai, ele me disse.
- Você tá batendo bem da cabeça ou nem? - Indagou. Ochako pareceu ignorá-la.
- Ele me disse que eu tinha de me casar, mas eu nem sei quem é o rapaz, e eu juro que eu nunca quis me casar com ninguém, ninguém. - Soluçou. - Eu corri de casa porque fiquei brava. Eu nem sei onde eu estou, eu nem sei como vim parar aqui, eu só sei que quando percebi tinham três caras me falando sobre saias e sobre o quão eu fico melhor sem a porcaria da meia-calça, porque já não me basta ter que me casar por obrigação, tenho que ser abraçada por um cara e ser beijada. Aqui! Foi bem aqui! - Ela tocou seu pescoço, um tanto alterada. - Eu juro pra você que preferia eu ter tomado um tiro e ir parar no inferno. Sortudos são eles! Eu queria ter morrido, quem devia estar ali jogada no chão era eu!
Bateu no próprio peito com certa força. A vermelhidão de seu rosto intensificou-se após a moça próxima à si afastar suas mãos, observando-a durante todo aquele desabafo um tanto surpresa. Uraraka soluçara novamente. Tentou falar mais uma vez, mas a voz falhara em razão ao choro que viera todo de uma vez.
- Eu... Eu só não queria casar...
Sussurrou em pura fraqueza. Custava? Custava seu pai tentar entendê-la durante toda aquela discussão idiota? Custava ela mesma construir o seu futuro sem precisar que ninguém lhe dissesse o que fazer e como fazer? Custava apenas ele ter lhe dado motivos para todo aquele assunto sobre casamentos, ou ao menos lhe apresentar ao noivo? Uraraka só queria paz. Sempre fora uma moça extremamente gentil e humilde. Entendedora, companheira, alguém sempre aberta à qualquer opinião ou ponto de vista, mesmo sendo contra o mesmo. Sempre esteve ao lado dos pais, e mesmo que fossem tão somente eles na vasta Osaka, eram felizes em meio ao seu trio até então unido, mesmo que vez ou outra sua mãe lhe mandasse indiretas sobre um suposto namoro e seu pai comentasse sobre um rapaz ou dois que conhecera por aí, filhos de amigos seus ou etc. Talvez fosse até imprudência sua ter agido de tal maneira e parte de si culpava-se por todos aqueles ocorridos sabendo que parcela de culpa ela tinha por ter tido a audácia de sair de casa e correr para bem longe com o intuito de nunca mais voltar. Uraraka costumava acreditar que diálogos sempre resolviam boa parte dos problemas, mas de repente viu-se em meio à algo no qual palavras pareciam não bastar. Nunca passara por nada do tipo em sua vida tão monótona. Nunca tivera o desgosto de ser obrigada à algo e não fazer nada. Casamento era-lhe um termo muito forte.
A expressão da moça desconhecida fechara-se após a conclusão da extensa fala. Se os olhos sem brilho algum já lhe causavam desconforto, imagine agora quando entrando em sintonia à expressão sombria e profunda de sua face alva. Inclusive, Uraraka arrependeu-se de ter dito-lhe tanto naquele momento sem mais nem menos, mas as palavras escaparam de sua boca quando ela movera os lábios e simplesmente não conseguiu segurar. Quem era ela? Deveria confiar? Precisou segurar-se por mais um momento e acreditar plenamente que se fosse para ser morta, já havia levado um tiro à muito tempo. Aliás, o revólver mediano posto ao chão ao lado da garota misteriosa lhe arrepiava a pele. Ela aparentava estar calma demais para alguém que aparentemente acertara dois rapazes à tiros.
- Perdão. - Pediu-lhe, sincera, já controlando um pouco mais as lágrimas teimosas. - Eu não deveria...
- Precisa voltar para casa. - Disse-lhe de maneira firme e seca. Uraraka piscou os olhos inchados em resposta.
- Casa? Mas...
- Casa. De preferência agora. - Dera ênfase à última palavra. Ochako estremeceu por um segundo.
- Eu não posso. Não quero.
- Eu preciso que me ouça. - Chamou-lhe, aumentando um pouco o tom de voz. Uraraka não pode deixar de dar a devida atenção para a moça. - Aqueles caras vão voltar. Não seja idiota e se mova. Ficar se lamentando dizendo que queria ter levado um tiro não vai mudar em nada, muito menos vai salvar sua pele. O mundo é cruel, e se você não queimar aqui vai queimar no fogo do inferno. Acha mesmo que está à salvo? Onde quer que você esteja, eles vão estar lá, te observando vinte e quatro horas por dia. - Fez uma breve pausa. Ochako mantinha-se atenciosa, mesmo que assustada com tais palavras tão carregadas de algo que não sabia dizer ao certo o que era. - Eles vão voltar, e se ficar aqui, mais cedo ou mais tarde eles irão descobrir seu nome e te caçar até no inferno. Você volta pra casa e eu dou um jeito pra acabar com isso. Aqui não é lugar para você.
- Mas é para você? - Indagou impulsivamente. Ela ouviu a moça suspirar pesadamente e logo arrependeu-se de ter lhe dito tais palavras.
- A diferença entre mim e você é que eu mato, cara de lua cheia. Já você é a morta da vez.
Um soco doeria menos, e não sabia se era em relação a saber que aparentemente era fraca o bastante para sequer permanecer viva por dois minutos ou se era por causa da mais nova alcunha que recebera da desconhecia: "cara de lua cheia". Uraraka remoía palavras para responder-lhe naquele momento, mas logo observou a garota levantar-se após pegar a arma e guardá-la no bolso da longa saia preta. Era uma colegial? Ah, sua aparência lembrava-lhe aquelas garotas de filmes revoltadas e corajosas com facas escondidas debaixo das saias e armas variadas em seus bolsos. Os dois homens mortos ali próximos só serviam de apetrechos para que aquela mulher se tornasse aos seus olhos uma personagem de filmes de ação que de repente saíra da tela da TV. Era alguém interessante, até; mas Uraraka já havia vivenciado muito para tentar ao menos conhecer um pouco mais daquela moça que, querendo ou não, salvara a sua vida. Ela lhe esticou a mão. Ochako não ignorou, levantando-se dali com certa dificuldade, sentindo que deveria esforçar-se bastante para não acabar caindo à qualquer instante por conta da fraqueza nas pernas. Por sorte, havia companhia. Ela calou-se por completo após tal ato, não dando brechas para que a menor lhe lançasse a palavra. Diante o silêncio, Uraraka não precisava ouvir sua voz para saber suas intenções; acompanhá-la até sua casa. Seria um bom motivo para apaziguar o seu coração depois de tanta bagunça.
Claro, se não fossem os comentários sobre morte ou qualquer outra palavra que remetia-se ao quão ela estava ferrada depois de tudo.
---- GUNS AND ROSES ---
Japão, Osaka. 22:15.
- Você vai voltar sozinha?
Já eram mais de dez horas da noite. Uraraka e a moça caminhavam lado à lado pelas ruas de Osaka, e aos poucos a movimentação e fluxo intenso de pessoas fez-se presente, mesmo tarde da noite. Fora durante a sua volta que Ochako Uraraka percebera o quão próximo aquele lugar era do centro da cidade, e parecia surreal imaginar dois pontos tão distintos sendo separados por apenas alguns passos. Enquanto caminhava, ela recordava-se gradativamente de alguns pontos pelos quais havia passado após retirar-se de casa daquela maneira e andar sem rumo pela cidade. Uraraka ainda não encontrava-se, de fato, bem. Voltar para casa estava sendo um desafio e tanto e vez ou outra ela mostrava-se desconfiada às demais pessoas ali ao seu redor, esperando que alguma delas pudesse entrelaçar os braços em volta de sua cintura e beijar-lhe o pescoço sussurrando-lhe coisas sobre pernas ou meia-calça. Droga. Mil vezes droga. Demoraria tanto para andar tranquilamente pelas ruas de Osaka sem achar que todo e qualquer homem pudesse lhe tocar insinuando abuso. A sua companheira tinha razão; ela precisava voltar pra casa, mesmo tendo de se casar daqui há exatamente dois meses, mesmo com todo o contragosto vindo do fundo de seu coração. Mas depois de tudo, ela só queria mesmo deitar em sua cama e tentar dormir, mesmo que parte de si soubesse que pegar no sono seria uma tarefa quase que impossível, já que sua mente não aquietara-se até então.
A moça ao seu lado manteve-se quieta. Seu olhar era duro e fixo à frente, como se estivesse a concentrar-se bem em cada detalhe daquela trilha de passos. Ela havia lhes tirado daquele lugar assombroso, e agora cabia a Ochako guiá-las até a sua casa; por sorte, só mais alguns passos e logo logo estaria ali. Ou seria por azar? Ah, como as coisas eram-lhe complicadas.
- Eu sei o caminho.
- Eu sei que você sabe. - Uraraka contra-argumentou, porém de maneira gentil. O estresse de momentos antes já havia dado lugar à menina doce que sempre fora, e que agora já estava a controlar a respiração e os passos desengonçados. - Mas, digo... Não é perigoso voltar sozinha?
- Eu tenho uma arma.
- A-ah! Não precisa falar alto, hn. - Corou bruscamente, olhando para os lados, checando se alguém ouvira. - Tudo bem. Você sabe o caminho e tem uma arma. Tudo bem.
- Você me falou sobre um casamento?
- Eh? - Indagou, logo suspirando fundo, tristemente. - Ah... Sim.
- E você não quer?
- Eu nunca quis. Eu não gosto muito da idéia de... De ter um marido. E de cozinhar para o marido, e de lavar as roupas do marido.
- Homens são deprimentes. - Comentara de maneira fria e firme. Uraraka tentou não ligar para o quão aquilo lhe assustava.
- Não que eu ache casamentos ruins. Eu só acho que não estou pronta para pensar em algo como isso agora. Eu só... Quero terminar o colegial, arranjar um bom emprego e conseguir dinheiro pra ajudar a minha família.
- E o seu pai quer que você case.
- Segundo ele, eu estou prometida à alguém desde meus quatorze anos. - Suspirou. Sentiu o coração apertar em resposta. - E que eu devo me casar com ele daqui a dois meses.
- Deprimente. - Repetou, séria. Ochako sentiu-se nervosa. - Homens são deprimentes.
- N-nem todos são...
Finalmente, a rua de sua casa. As faces conhecidas, a doceria já fechada, as árvores enormes quase que sem folhas, denunciando a chegada próxima do inverno. Ao longe ela avistara a sua casa, e por um moomento pensara em voltar para o meio de Osaka e permanecer lá por algum tempo até que sentisse coragem o suficiente para voltar a encarar seu pai e sua mãe. Inesperadamente, ela sentiu a mão da companheira deslizar por seu braço e segurar sua destra, puxando-a para que não cessasse os passos, provavelmente percebendo o desânimo da Uraraka, que não notara quando o rirmo de sua caminhada diminuíra e seu olhar atento tornou-se turvo novamente, denunciando a sua imersão em pensamentos variados. Aproximaram-se. Quanto mais perto estavam, mais Ochako sentia o coração intensificar suas batidas de maneira acelerada. Nervoso. Seu pai deveria estar com raiva. Sua mãe da mesma forma. Ela queria chorar novamente, mas dessa vez viu-se no dever de segurar-se e encarar aquilo de uma vez por todas. Huh, talvez, não fosse tão fraca quanto aparentava ser. Porém, quando já estavam perto o bastante para notarem certos detalhes de sua moradia, o estranho:
A porta aberta, iluminada tão somente pela luz da entrada.
Sem contar com o carro prateado parado exatamente à frente do portão, carro este que com certeza não pertencia ao seu pai.
Foi o suficiente para fazer com que os sentidos de Uraraka despertassem de uma vez. Sua mão desvencilhara-se da da morena quando apressara o passo em direção à sua casa, parando em frente à entrada, observando-a com cuidado. Seus pais haviam saído? Poderiam ter partido em busca da filha irritada, poderiam até estar em uma delegacia próxima pedindo auxílio da procura de Uraraka Ochako. Mas não; algo lhe dizia que não, e aquele estranho veículo ali servia de confirmação para ter a certeza de que seus pais não foram atrás de alguém; alguém fora atrás deles. Merda. Repentinamente o corpo pesara mais do que antes. E se o noivo houvesse descoberto sobre a sua fuga impensada? E se ele estivesse ali à sua espera, pronto para dar-lhe um baita sermão junto à seu pai? A ansiedade tomara conta de si. Ochako suava frio em resposta àquele aglomerado de sentimentos no qual não sabia ao certo como deveria lidar. Deveria agir, deveria mover-se, deveria parar de remoer-se tanto e partir para dentro do que lhe esperava. Mas não conseguia. Nem seu corpo e nem o seu psicológico atual aturavam tanto. Recordou-se até mesmo da frase dita pela moça durante o seu breve diálogo antes de voltar para casa.
"A diferença entre mim e você é que eu mato, cara de lua cheia. Já você é a morta da vez."
Ah sim. Estava morta por dentro.
De repente, sentiu a proximidade, o que lhe fizera deixar de lado os pensamentos variados por um momento. Sua companheira entrara tranquilamente dentro da casa sem aviso prévio, retirando os sapatos na entrada, fazendo com que a menor se mostrasse desnorteada.
- Ei, espera! O que você...
Não conseguiu concluir a fala. A morena não demorou-se a adentrar ainda mais o recinto, instigando a jovem Ochako à criar coragem o suficiente para entrar ali e seguí-la, provavelmente temendo que as coisas se tornassem piores na presença de alguém de semblante sombrio e uma arma enfiada no bolso da longa saia preta.
Uraraka apressou-se para acompanhá-la. Retirou agoniada os sapatos, tentando equilibrar-se para não acabar caindo enquanto deslizava pelo chão com suas meias brancas. Parecia vivenciar o momento que ocorrera mais cedo por meio de suas ações e pensamentos que surgiam-lhe um por um. Seus olhos pairaram por ali em observação. Sem pai no sofá, sem xícara de café, sem mãe caminhando de um lado para o outro. E então percebeu; como um estalo, suas orbes miraram a cozinha aberta e iluminada, e por um momento ela engolira em seco ao avistar de longe parte dos cabelos negros da moça que lhe acompanhava de costas para si. Uraraka sentiu a respiração falhar, mesmo assim, não pensara duas vezes em inspirar e expirar como ela havia ensinado-lhe antes. Inpire e expire. Inspire e expire. Caminhe, um, dois. Inspire e expire. Seus pais devem estar lá dentro. Inspire e expire. Você consegue. Não seja a morta da vez. Mostre para eles que você consegue. É só inspirar e expirar.
Cautelosamente, ela aproximou-se. Seus passos eram silenciosos como a casa em geral. Finalmente, entrara; seus olhos processaram detalhe por detalhe, mas só lhe importava os mais importantes. De início, haviam seus pais. Sentados à mesa, sua mãe tinha os olhos vermelhos como as maçãs do rosto e inchados, denunciando para todos o suposto choro que ocorrera antes que chegassem. Ela surpreendeu-se levemente com a aparição repentina da filha, mas já parecia ser tarde demais para esboçar qualquer sorriso. Seu pai encarava desconfiado a garota que entrara antes de Ochako, e de repente fitara os homens ao seu lado, como se indagasse-se internamente sobre a relação de cada um deles. Ah, os homens; suas orbes pararam sobre os homens, que aparentavam ter mais ou menos a sua idade, ou um pouco mais. Provavelmente já tinham em torno dos vinte e um anos para já possuírem um carro, mas mesmo assim, aparentavam serem jovens deveras. O primeiro tinha os cabelos loiros e lisos, um tanto curtos, porém muito bem penteados. O segundo, não menos importante, era possuidor de madeixas ruivas, provavelmente pintadas em vermelho vivo, e de fios espetados em um penteado à base de cremes e gel para cabelo. Ambos trajavam ternos e possuíam boa postura, e dentre eles, o loiro não aparentava estar nenhum pouco contente com o rumo que o suposto diálogo estava levando, enquanto o ruivo parecia concentrado em não morrer de tédio naquele exato momento, mesmo que a chegada de ambas as moças lhe houvesse chamado a atenção. Ele fitou o amigo ao lado, que não tirara os olhos da morena. Ouve-se o suspiro da mesma ecoar pelo lugar, antes que ela tomasse a palavra para si.
- Sumiyoshi-rengo.* - Sussurrou, carregando na face a expressão fechada. - Eu já deveria saber.
- Ainda bem que reconhece. - O loiro lambeu os lábios, respondendo-a provocante. - Estranho seria se não soubesse.
- Cara, eu acho que não é uma boa... - O ruivo murmurara alto o suficiente para que Ochako o ouvisse. Por um momento ela desviara a atenção para si, observando a nítida feição de súplica que ele carregava ali. O loiro pareceu dar de ombros. A morena suspirara novamente.
- Pois bem. E você, sabe quem eu sou?
- Por acaso está aberto o momento para apresentações?
- Kaminari...
O ruivo novamente pediu-lhe com o olhar para que parasse. Ele e a moça de cabelos negros fitaram-se por um momento em completo silêncio antes que ela finalmente se movesse; em um ato ligeiro, ela enfiara a mão no bolso, retirando dali a arma que levava consigo. Ochako engoliu em seco, sua mãe e seu pai recuaram um pouco. O ruivo de cabelos espetados pareceu morder o lábio em lástima, levantando os braços como quem dizia "ah, não, não me meta nessa". O loiro, por sua vez, mostrou-se surpreso com o ato da morena, que não satisfeita à apontara em direção ao rapaz que tanto lhe importunara desde o momento em que chegara ali. Uraraka queria correr. Provavelmente deveria ligar para a polícia ou qualquer outra coisa, mas não queria ferrar com a vida de quem havia lhe salvo das mãos de três homens prestes à lhe assediarem. A moça, por sua vez, mostrou-se inexpressiva. Levou lentamente uma das mãos para a nuca, coçando-a devagar, bocejando fraco em seguida. Ela estalou a lingua no céu da boca, e o barulho parecera insuportável para Uraraka, que mesmo pensando em dar fim àquilo tudo, acabou por calar-se quando a companheira retomara a palavra para si.
- Pois bem. Eu me chamo Momo Yaoyorozu. - Esclareceu, sem rodeios. - E se você não parar de encher o meu saco e o da minha garota aqui, eu vou ter que te mostrar com quantos socos se faz uma Sukeban.
××× Notas Finais ×××
* Sumiyoshi-rengo - Uma das principais famílias da Yakuza, estando em segundo lugar. O restante das famílias deverão ser citadar com o desenvolvimebto da fanfic, já que elas são importantes para a trama de alguns personagens.
Os rapazes utilizam-se de ternos tanto para manter a boa aparência quanto para esconder as diversas tatuagens que se espalham por seus corpos.
×××××
Gracias por leer!
Podemos mantener a Inkspired gratis al mostrar publicidad a nuestras visitas. Por favor, apóyanos poniendo en “lista blanca” o desactivando tu AdBlocker (bloqueador de publicidad).
Después de hacerlo, por favor recarga el sitio web para continuar utilizando Inkspired normalmente.