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Ronaldo Brigeiro


Sebastião de Magalhães Lima


Romance Todo público. © Sebastião de Magalhães Lima

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MARTYRIO D'UM ANJO

Despontara risonho o dia 23 de maio de 1856. Era profundo o anil do céu. Nem uma nuvem sequer toldava o puro azul do firmamento, nem um sôpro de desgosto vinha embaciar o prisma da felicidade humana.

Tudo era bulicio, vida, amor!...

A natureza, revestida das magnificentes pompas da primavera, desentranhava-se em flores e fructos, revelando mais e mais a grandeza e omnipotencia do Creador, que avulta tanto no mais humilde insecto, como no mais esplendido organismo.

Folgava a toutinegra no raminho frondente, dizendo-se ternos amores com o emplumado rouxinol, cujo canto mavioso repercutia em echos longinquos o idyllio melancolico da creação.

Impellida doudejava a mariposa de flor em flor, e a brisa, tepida, ciciava de mansinho ao perpassar por sobre a solitaria florinha.

Em delirantes extasis, suspirava a pudibunda donzella, sorvendo grata a vida num casto e puro anceio.

O amante, sem desfitar os olhos da fugitiva lympha, mudo contemplava, gentil, o retrato da sua amada.

E ao pobre faminto, para quem a ventura fôra meteóro fugaz, no horisonte medonho da humana desdita, sorriu a furto um raio de esperança no seu espirito angustiado por cruciante dôr.

Sublime era o quadro, beatifica a visão!

E qual seria o ente, cuja alma fosse aleitada por uma centelha divina, que não sentisse arrobar-se-lhe a existencia ao contemplar tão sublime maravilha, tão rara formosura!!...

Que Raphael seria capaz de reproduzir na tela esta estrophe melodiosa e suavissima do Senhor, a que os homens deram o nome de--primavera!!...


Mollemente reclinada em flacida alfombra, Leonor, parecera, comtudo, indifferente ás doçuras d'este panorama, e ao brilho da sua divina poesia. Em que scismava aquelle anjo de pudor?... Que fatal magnetismo a arrastara ali?

Ninguem o poderá dizer. Ao certo só sabemos que a sua alma, cheia de sublime poesia, procurara instinctivamente aquella solidão, como que agrilhoada pela necessidade innata de fugir ao mundo e aos seus encantos.

Leonor chegara do Brasil havia poucos mezes. Cecilia, sua mãe, vendo-se viuva, com este unico thesouro das suas entranhas, para logo tractara de alugar casa em Bemfica, não só por ser esse o logar da sua naturalidade, senão tambem pelo desejo de satisfazer ás reiteradas instancias de sua filha, que desde muito aborrecia a cidade. Ali viviam aquelles dois anjos uma vida beatifica, alentados pela mutua esperança, e identificados pelos poderosos laços do amor.

Leonor, no dia em que a encontrámos, completara vinte annos: tinha, portanto, attingido essa idade sublime e mysteriosa, mórmente para a mulher, que, elegiaca por condição, sente o vacuo da sua existencia, arrojando-se loucamente ás ondas do amor, talvez, pela natural fragilidade da sua natureza.

Quem sabe, se n'isto divagaria a nossa poetiza, no momento em que a encontrámos no seu pittoresco jardim?

Uns vislumbres de saudade, de tristeza e melancolia animavam seu rosto naturalmente pallido.--Aquelles olhos pretos e rasgados, enturvecidos por uma nevoa de languidez, provavam bem quantos e quão perigosos seriam os pensamentos que se lhe agitavam na mente.

Sua mãe viera pé ante pé, curiosa, sem duvida, por penetrar no recondito d'aquelle coração. Leonor presentiu-a, e sorriu-se. Cecilia pousou seus castos labios na angelica fronte da filha, e nella depositou, com maternal carinho, o nectar que dimanava de seu extremoso peito. Depois, tomando entre as suas as mãos d'aquella pomba, disse:

--Então que tens tu, minha querida filha? Tão triste e solitaria no dia de teus annos! Ora anda: falla francamente a tua mãe.

--Oh! minha querida mãe, quanto lhe sou devedora! Como havia de eu estar triste, tendo-a aqui ao meu lado? Não vê que sou tão sua amiguinha, e como já estou tão alegre?

--Por quem és, Leonor, nada me queiras occultar. Poupa-me a um sacrificio doloroso, dispensando-me a sinceridade que mereço. Comprehendo a tua dôr, como se minha já fosse. Tu amas, bem o sei. Tenho presenciado tudo. Nada me é extranho.

Leonor córou de involuntario receio, ao ouvir as ternas expressões de sua mãe, e por alguns minutos permaneceu em scismador enleio, como que subitamente preoccupada por estranho pensamento. Recobrando, porém, a serenidade, que momentaneamente houvera perdido, prorompeu nos termos seguintes:

--É verdade, minha mãe, nada lhe desejo nem posso occultar. Eu amo meu primo Mauricio. Amo-o com toda a pureza da minha alma, e em todo o fervor da minha existencia. Uma circumstancia poderosa veio, comtudo, cavar um abysmo entre nós, e forçar-me á dura collisão, em que, máu grado meu, me tenho conservado. Foi esse o motivo por que ha mais tempo lh'o não declarei, intimamente convencida de que a minha bondosa mãe perdoaria mais uma vez esta falta á sua filhinha, que tanta felicidade lhe deseja.

--Julgas, talvez, que te culpo por isso; antes, pelo contrario, não podia achar mais acertada a tua escolha. Mauricio é um rapaz serio, capaz de te retribuir o teu affecto, e de desempenhar no futuro a missão d'um marido exemplar.

--Sem duvida, tambem assim o creio. Mas não lhe tenho já declarado por vezes que só me unirei eternamente a um homem de muita instrucção e de grande saber?

--Isso é uma fraqueza da tua parte, que se virá a dissipar com o tempo; sendo que muitas vezes os homens mais celebres são exactamente aquelles que menos se coadunam com a indole do viver domestico. Além d'isso, teu primo tem o desinvolvimento sufficiente para te saber estimar; e eu morreria tranquilla se um dia tivesse a dita de te ver enlaçada pelo affecto áquelle que já posso appellidar--meu segundo filho.

--Oxalá assim succeda, replicou Leonor, com um disfarce feliz. O futuro só a Deus pertence. Amar a mediocridade, isso só pode ser o apanagio das mulheres vulgares. Por hoje não fallemos mais n'isso. Vamos antes esperar as pessoas da nossa intimidade, que decerto não perderão esta noite, para nos prestarem agradavel companhia.

Dirigiram-se depois para casa, e assim correu o resto da tarde sem maior incidente.

Ás nove horas da noite já se cruzavam nas salas algumas familias, que expressamente tinham vindo festejar o anniversario natalicio de Leonor, com brindes de toda a especie. Esta não sabia como agradecer tantos e tão prolongados obsequios, que a cada passo lhe prodigalisavam os convivas recemchegados. No entretanto todos se retiravam sobejamente remunerados, com o galardão do seu peregrino talento e natural candura.

Mauricio, como era de esperar, abrilhantou esta festa com a sua presença. Logo, porém, notou em sua prima um ardente desejo de o evitar. Na primeira quadrilha viu em Leonor hesitação, e que só forçada condescendencia a obrigava a dançar com elle.

Não sabendo a que attribuir tão rapida transformação, recorreu a sua tia. Cecilia, que a principio vacillara em relatar o acontecido a seu sobrinho, não pôde de modo algum abafar o grito imperioso do seu coração, patenteando-lhe tanto ao vivo o pensamento de sua filha, que Mauricio a custo reteve uma lagrima de saudade por aquella que já ha muito dourava o horisonte de sua existencia.

E quantas vezes um sorriso nos labios occulta uma grande dôr!...

Mauricio, como se nada com elle houvera passado, voltou á sala, e dançou até ver a reunião completamente terminada.

Seriam duas horas da noite. Despediu-se de sua tia, e sahiu. Mas, ai do malfortunado mancebo!...

Longe de se dirigir para casa, divagou triste e pensativo pelas ruas da capital até ao alvorecer do dia, sendo a cada passo assaltado por dolorosas recordações, que lhe dilaceravam as fibras do seu apaixonado coração.

No dia immediato Mauricio havia desapparecido de Lisboa!...


Deixemos agora esvoaçar quatro annos nas azas do passado, e voltemos a Bemfica.

Ali reconheceremos Leonor, proxima de sua mãe, trabalhando diligentemente. Aquella flor, que ha cinco annos se ostentava tão altiva e louçã, vêde-a, presentemente, como vai estiolando e fenecendo, e ai d'ella!... se o céu, na sua infinita misericordia, lhe não enviar o orvalho que lhe restitua o viço e frescor!

Estavamos, então, em maio de 1860, cujo mez fôra assignalado pela rapida ausencia de Mauricio. E n'isto fallava a virtuosa mãe a sua filha, enxugando de quando a quando uma lagrima, que espontanea lhe rolava pelas faces. Não era tanto o desapparecimento de seu sobrinho que a affligia, como ella julgar-se a principal causa d'esse fatal evento.

Leonor vivificava o pezar de sua pobre mãe com gostosas consolações, que, puras e castas, brotavam de seu virginal seio.

Seriam talvez cinco horas da tarde do dia 30 de maio, quando sentiram bater á porta. Sensação particular, por aquelle inesperado toque, fez estremecer mãe e filha. Mysterios ha na vida humana que se não explicam. Este era um d'elles.

A porta da sala abriu-se, e o criado annunciou uma visita, que não queria dar o nome, mas que muito desejaria fallar com a senhora.

Mandaram-na entrar.

Ora imagine o benevolo leitor qual não seria a profunda commoção, sentida simultaneamente por aquella familia, vendo junto de si o sobrinho que que ha muito julgava perdido.

Mauricio tinha chegado naquelle dia de Paris, onde, a grandes e penosos sacrificios, fôra buscar uma solida instrucção com o unico intuito de realisar a sua felicidade futura, unindo-se a sua prima pelos laços matrimoniaes. Cursava, então, o terceiro anno de engenharia, e viera passar as ferias a Lisboa.

Leonor, ao ouvir dos saudosos labios de seu primo a narração circumstanciada dos motivos, que o levaram a executar tão heroico projecto, sentiu augmentar-lhe gradualmente aquella paixão latente, que ha muito ardia em seu peito. Elle, attento ao benevolo acolhimento e fraternal regosijo, que então lhe dispensaram, não duvidou em declarar-se a sua candida prima, que o attendeu com meiguice e amor.

Rapido se passou o tempo de ferias. De dia para dia se iam identificando aquelles dois corações, que tinham nascido para muito se amarem. E, similhante a um grande rio, já não haveria dique capaz de lhe vedar o seu correr impetuoso.

O amor verdadeiro e puro é uma irradiação do sublime, e como tal uma aspiração constante para as regiões do absoluto.

Os esponsaes ficaram tractados, e por elles Mauricio voltaria dentro em dois annos formado, e sobejamente instruido para melhor poder satisfazer as nobres e santas aspirações de sua prima.

O leitor melhor poderá imaginar qual não seria a violenta agitação dos dois amantes ao dizerem-se o adeus da despedida. Um drama intimo, impossivel de descrever-se, e que só poderá ser bem apreciado por aquelle que, no decurso da sua vida, se encontrar algum dia em identicas circumstancias.

Porém o bom senso de Mauricio, e sobretudo a necessidade, que nelle fallava mais alto do que a voz de seu apaixonado coração, estimulou-o a prosseguir na vereda tão briosamente encetada, ainda através dos maiores obstaculos.

Partiu, levando a saudade gravada no intimo do peito, e a esperança a refulgir-lhe por entre as perspectivas d'um risonho porvir.


Ao entrar nesta parte da veridica narrativa, que intentamos esboçar, julgamos mais conveniente satisfazer a curiosidade da amavel leitora, transcrevendo para aqui fielmente a limitada correspondencia que se trocou entre Mauricio e sua prima.

É o que vamos fazer.

CARTA 1.ª
(De Mauricio a Leonor)

Paris, 1860.

«Nem eu sei como relatar-te a minha viagem. Feliz teria ella sido, por certo, se te tivesse visto sempre a meu lado. Mas... não digo bem... a tua terna imagem acompanhou-me sempre. Na onda, que preguiçosa ia beijar a fulva areia; na estrella, que á noite scintillava nos céus; no espaço, que infinito se me antolhava; por toda a parte, emfim, meu anjo, a tua melancolica figura vinha sempre afagar a minha tetrica existencia, e contornar uns doces effluvios de amor no meu angustiado espirito.

Oh!... e quem me dera poder hoje abraçar-te, e depois n'um extasi delirante, dizer-te:--Leonor, benefica luz dos meus olhos; amo-te, adoro-te, sou teu. Mas um dia virá em que te poderei dizer desafogadamente:--agora, por toda a vida, meu amor, jámais me verás longe de ti!

Louco, que eu sou, na verdade! Insensato!... a dispôr do futuro, como se meu já fora. Embora! Deus é bom! Não sejamos incredulos! Elle, que na sua infinita bondade não esquece o desgraçado agonisante no leito da dôr, por certo não consentirá que uma negra nuvem venha toldar o puro azul do nosso céu.

Leonor, por quem és, envia-me o balsamo para as saudades que me opprimem o coração.--Mauricio.

CARTA 2.ª
(Resposta de Leonor)

Bemfica, 1860.

«A tua carta veio encontrar-me agonisando nas vascas d'uma paixão febricitante.

Um dia sorriu-me o oasis mimoso no deserto da vida, acerquei-me d'elle extenuada de fadiga, e com o meu pobre coração dilacerado por uma lucta gigante, que me fôra impossivel evitar. Julgava ser aquelle o alento para proseguir na minha espinhosa tarefa!... Illusão!... Sinto-me fraca, e não sei se terei forças para resistir ás agitações febris que hoje me dominam.

Pede a Deus, meu bom amigo, me prolongue os dias da existencia, para poder abraçar-te mais uma vez ao menos, e morrer depois com a consolação derradeira do moribundo, que vê junto do seu leito o vulto venerando do presbytero, amenisando-lhe a algidez do sepulchro com a uncção da sua divina prece.

Lembra-te sempre da tua amiga, que, ao longe, vela por ti dia e noite.--Leonor.»

CARTA 3.ª
(De Mauricio a Leonor)

Paris, 1860.

«Não sei como communicar-te o temor violento, que se apoderou da minha debilitada existencia ao ler e reler a tua carta. Aquellas linhas, dictadas pela fatalidade poderosa do amor, e escriptas por tua angelica mão, que tantas vezes beijei com o anceio de largas esperanças no futuro, compungiram-me profundamente.

Justamente, quando o meu espirito allucinado procurava o calix da ventura para docemente o libar, veiu a desdita sentar-se ao lado, e involver-me no luto de medonha desesperança.

Meu Deus! meu Deus! Quanto a vida é cruel, sem uma esperança fagueira que nos alimente os sonhos radiosos do porvir! Quão duro é de tragar o absintho d'esta existencia ephemera!

Porque será que o espirito do homem é tão possante librando-se nos vôos d'uma phantasia ardente; e cahe depois prostrado pela vertigem das paixões no mais temeroso de todos os precipicios?

Insondaveis são os arcanos do Creador!

A esperança vivifica; o amor martyrisa!

Podesse ao menos o holocausto do meu doloroso soffrer resgatar os dias sanctificados de Leonor, e eu satisfeito deporia a minha cruz, orvalhada pelas lagrimas de eterna saudade.

A ventura é um anceio febril em espiritos privilegiados. Mas a ventura é uma vaidade, uma chimera, entrecortada, apenas, pelas alternativas radiantes de melhores horisontes!

Feliz o homem que tem fé; porque a fé, para almas bem formadas, é a agua redemptora do seu baptismo.

Porém o homem, que sente o gêlo da descrença no seu coração; o homem, que não pode evitar a peçonha corrosiva do cynismo e da perversidade; esse homem é um desgraçado, um miseravel, como muitos, que a sociedade escolhe para instrumento da sua implacavel vingança, e opprobrio da humanidade!!

E quem me permitte ajuizar da minha virtude?...

Só Deus o sabe, meu anjo, quanto é leal e verdadeiro o pranto acerbo, que derramei ao saber da tua sentida doença.

Possa, emfim, o Senhor ouvir a sinceridade da minha supplica, e fazer descer sobre ti o anjo da felicidade e do amor.--Mauricio.»

CARTA ULTIMA
(De Leonor a Mauricio)

Bemfica, 1860.

«Apezar da expressa prohibição dos medicos de me evitarem tudo o que possa prejudicar o meu estado melindroso de saude: não pude, ainda assim, furtar-me a um desejo imperioso de me associar ao teu pezar, mitigando-o, no caminho espinhoso do meu Golgotha.

É uma expiação, que a mim propria imponho, sem outro galardão, que não seja a retribuição do teu entranhado affecto.

As lagrimas têm um condão mysterioso. Adoçam a adversidade terrestre, com a consolação extrema d'um futuro incerto. Assim eu podesse encontrar n'ellas o topico provavel para a medonha enfermidade moral que hoje me devora.

Tudo creio impossivel.

Só a tua presença me poderia ser, talvez, refrigerio momentaneo para o meu aturado martyrio, e doloroso esquecimento.

Regressa, portanto, á patria, meu bom amigo. Vem engrinaldar a fronte da esposa com as flores amarellecidas do sepulchro, e prestar um derradeiro tributo áquella que te amou na terra com o fervor da virgem e pureza dos anjos.

Só Deus poderá abençoar o nosso amor!...

Não posso mais,... Mauricio... Sinto-me desfallecer sensivelmente.

Adeus... adeus, e talvez... para sempre.--Leonor.»

Inutil se tornaria aqui dizer, que Mauricio obedeceu peremptoriamente ás ordens de sua saudosa noiva, tomando bilhete para o primeiro vapor com escala por Lisboa.

Fôra, porém, intempestiva a sua viagem.

Quando chegou a Bemfica, encontrou a nudez e a solidão enthronisadas no solio, onde deveria ter existido o jubilo e a gloria de dois amantes ditosos.

Leonor havia desapparecido para sempre d'este mundo!...

O anjo da morte, extendendo suas negras azas sobre aquelle coração de pomba, arrebatou-o para sempre á humanidade.

Eclipsou-se no céu uma estrella, e da terra voou um anjo á mansão dos justos!

Mauricio libou até ás fezes o calix do infortunio.

Aquelle amigo verdadeiro e fiel; aquella intelligencia robustecida á luz da profunda meditação; aquelle coração de poeta; aquella imagem continuamente açoutada pelo tumultuar de sentimentos encontrados, onde meigamente vinha transparecer a morbidez e o desalento d'uma paixão precoce,--nunca mais transpoz o limiar da casa de Bemfica, que outr'ora pisava, sentindo a vida a rejuvenecer-lhe a cada passo.

Ainda houve quem o visse, um mez depois, com as faces pallidas, os olhos cadavericos e um semblante sepulchral.

Não era passado muito tempo, quando Cecilia recebeu uma carta de seu sobrinho, concebida nos seguintes termos:

--Minha excellente tia.--Ao deixal-a em contristante e dolorosa desolação, tendo-se associado á dôr e orphandade do espirito, como unicas companheiras, que lhe restavam no areal sombrio da vida, era mais do que dever d'um filho allivial-a, quanto em si coubesse, dos transes medonhos e caprichos da sorte, por que acaba de passar o seu bondoso coração.

Porém, minha tia, se neste mundo pode haver perdão para um desgraçado, conceda-lh'o.

Já a meus pés se abre o abysmo incommensuravel do cynismo e da descrença, que dentro em pouco me ha de absorver.

Haverá muito quem me censure, chamando-me--louco!

Louco!... porque não soube abafar a palpitação febril d'um sentimento elevado e nobre!

Louco!... porque não tive a resignação, para oppôr ao marulhar tremendo das vagas da desventura!

Louco!... porque cri na sanctidade do amor; ajoelhei perante um archanjo celeste, e senti o fogo da inspiração a enroscar-se-me voluptuosamente pelos membros!

Louco, emfim, porque soube desprezar a imbecillidade dos homens pelo gozo ineffavel d'uma ventura celeste!

O suicidio é a suprema aspiração d'uma imaginação sublimemente grandiosa, que, não podendo suster o vôo audacioso a que se arrojara, se despenha fatalmente no oceano do nada.

E a resignação o que é?...

A immobilidade physica e moral, uma profunda negação do ser humano, e uma violação flagrante dos verdadeiros sentimentos.

O homem, que vê o seu nome malbaratado, a sua honra vilipendiada; sem ter uma mão caritativa, que lhe sirva de luz por entre as fragas estereis da vida; sem mesmo um refrigerio para as chagas do seu pobre coração; sem uma esperança, ao menos, que lhe acalente os sonhos radiosos do existir durante o correr tempestuoso, que vai do berço á sepultura: esse homem, digo, descrê da Providencia; torna-se cynico; e vai buscar na ponta d'um punhal aquillo que não pôde encontrar no meio d'essa sociedade estulta e devassa.

E, ainda haverá quem condemne o suicidio?!...

Condemna-o, sim, a mediocridade, porque o não comprehende; porque lhe é mesmo impossivel conceber a lucta gigante que se trava a cada passo nos espiritos altaneiros entre a razão e a vontade,--duas faculdades de que depende toda a nossa vida e bem-estar terrestre.

Por isso, minha bondosa mãe, e deixe-me chamar-lhe assim nos ultimos instantes do meu passamento neste mundo, abençôe pela derradeira vez o seu desgraçado filho, que sem saudade abandona este theatro maldito, para ir tributar perante o throno do Altissimo o sanctuario das puras affeições e leal obediencia.

Adeus, minha desvelada mãe, e adeus para sempre. Não descreia do seu filho, e lembre-se que só no céu se poderá encontrar a remuneração condigna ás virtudes mundanas.--Mauricio.

Cecilia ficou como que petrificada, ao receber o golpe inesperado, que lhe causara a carta de Mauricio. Desvairada pelo infortunio, assaltada por uma visão sinistra e cruel, aquella extremosa mãe vendeu a sua casa em Bemfica, que lhe era recordar amargo d'uma felicidade radiante e fallaz, e recolheu-se a um convento, onde vive ainda hoje, acompanhada pela resignação, e alimentada pela virtude esperançosa de que um dia se irá reunir no seio do Creador áquelles dois martyres bemaventurados, a quem o vulcão das paixões sorveu para sempre na sua cratera de fogo.

AMOUR ET CHAMPAGNE

AMOUR ET CHAMPAGNE

Vive l'amour! Vive le champagne!...

O amor é o nosso heróe, mas um heróe comme il faut; o champagne o seu condigno satellite.

A scena passa-se n'um baile, se bem me recordo.

O protogonista da acção é um mancebo de vinte annos, pouco mais ou menos; alto, magro, de cabello e bigode alourado, testa rasgada e ampla, olhos pequeninos e vivos, e com todos os signaes visiveis d'uma imaginação eminentemente fogosa, mas, em parte, já obscurecida pelo contínuo perpassar de medonhas orgias e pelo roçar de perigosas paixões.

Agora, com estes preludios, leitor amigo, acompanhemos o nosso personagem, e perscrutemos, sem escrupulo, alguns episodios da sua tragica vida.

Silencio, pois!

Eil-o ali, áquelle cantinho! Lá caminha passo lento e medido! Os sons da orchestra attráem-n'o irresistivelmente ao salão! Aquelle esplendor, aquella voluptuosidade oriental, que se respira n'aquelle recinto ideal e angelico, despertam em sua alma febril o enlevo de mais venturosos dias, evocando á sua phantasia amortecida esses phantasmas crueis e fagueiros, que outr'ora lhe alimentavam os doces sonhos do porvir.

Alvaro, dirigido para ali automaticamente, foi sentar-se na primeira cadeira, que, ao acaso, encontrou.

A dança tornara-se delirante, e a sua alma, já de muito saturada com a triste realidade do mundo, palpitava-lhe no seio com a violencia de prolongadas e suaves sensações.

Senão quando, o som desconhecido d'uma voz argentina e doce lhe attraíu a attenção desvairada por longinquas paragens.

Despertou do lethargo, o nosso galan. Acercou-se d'aquelle vulto gracioso e nobre, e, convidando-o a dançar, entrou n'uma quadrilha.

Alvaro encarou tres vezes o seu mimoso par. Não sabia devéras, como encetar a conversação. Dirigir-lhe alguns requebros frivolos e banaes, em que tanto abundam estes bailes da nossa moderna sociedade, isso não. Não se coadunava com a sua indole, em extremo sensivel, o compendiar meia duzia de palavras semsabores, para entreter uma dama, cuja belleza elle, aliás, admirava.

Era dura a collisão, mas tinha de acabar, e acabou com effeito, explosiva, mas real.

E senão, ouçamos o resto do dialogo, se nos apraz. Esqueçamos, por um momento, os outros pares dançantes, e concentremos a nossa curiosidade sobre os heroes d'esta pequena scena, que intentamos esboçar.

--Nem v. ex.ª é capaz de avaliar quanto foi poderoso e salutar o feiticeiro sorriso de seus labios sobre o meu pobre coração, minha senhora. Já esquecido, ha muito, d'este mundo hypocrita e ridiculo, estava longe de me reputar feliz um momento sequer, quando divisei, na orla do meu horisonte, a terna imagem de v. ex.ª E, com effeito, não houve resistir-lhe. Cedi a um impulso intimo; compenetrei-me da gravidade do caso, e agora aqui me tem completamente escravisado e rendido aos pés de v. ex.ª

Emilia, e porque não? Seja-nos licito revelar aqui o seu nome, Emilia nada respondeu; baixou sua loura cabeça em scismador enleio, e teve a loucura de o acreditar, a desgraçada.

Horas depois, Alvaro, ao vêr os salões de todo desertos, saíu, como sempre, tetrico e pavoroso.

Entrou no primeiro café, que se lhe deparou; mandou vir champagne e cognac; e bebeu, bebeu até á embriaguez! O ultimo calix voou pelos ares, em pedaços ao clamor estridulo e rouquenho de--Vive l'amour! Vive le champagne! Vive l'ivresse! Vive la folie!...

A prostração, comtudo, não o tornou em completa demencia, nem tão pouco as forças physicas se lhe esgotaram.

Passeou a vista pelas mezas da casa, e apenas avistou dois meliantes ainda profundamente encarniçados no delirio do jogo.

Levantou-se, e foi direito a elles. Apontou a uma carta, e perdeu; apontou a outra, e tornou a perder; á terceira, entisicando-se-lhe a bolça, soltou um derradeiro e sentido suspiro!

Já não havia mais recursos: saíu, pois, do botequim.

A aurora começava, então, a roxear o oriente com o clarão da sua divina poesia. Ao longe, a cotovia annunciava um dia ameno e bello. A brisa mórna do crepusculo bafejava de mansinho, ao brando contacto de solitaria violeta, que se espreguiçava indolentemente, qual indiana lasciva na sua rede de pennas!

Alvaro nem sequer se commoveu com aquelle espectaculo.

Pobre desgraçado! como seria elle capaz de poder comprehender essa epopeia gigante, que tão evidentemente nos revela a existencia d'um Deus omnipotente e justo, n'aquelle estado deploravel e asphyxiante?!

Passou, como se tudo lhe fôra indifferente.

Subiu, depois, uma longa e sinuosa escada, que conduzia a uma agua furtada, cuja era a sua residencia. Veio abrir-lhe a porta uma joven mulher pallida e alta, de feições distinctas e ainda delicadas, mas já quasi extinctas pelo marulhar tenebroso do gêlo da desventura!

Uma luz baça allumiava o humilde aposento. Pela fresta da janella apenas se coava um tenue raio de luz, que contrastava singularmente com a pobreza e nudez d'aquelle exiguo e acanhado recinto.

Mas quem era aquella mulher? Que vida era a sua? Que fazia ella ali?

Aquella mulher era uma d'essas creaturas, como muitas, que Deus arrojou ao mundo, para justa punição do homem, e opprobrio eterno da humanidade.

Filha de paes abastados, aquella mulher, teria sido rica, outr'ora, nimiamente formosa e sublimemente ditosa, se a fatalidade do destino, peior que a fatalidade das paixões, não tivesse vindo macular para sempre a sua reputação ephemera.

Paulina amara Alvaro ardentemente; mas o traidor, longe de sanctificar aquelle amor com uma união licita, prostituiu torpemente a victima indefesa de seus nefastos designios, sempre indifferente ás suas agonias e ás suas dôres.

Paulina aproximou-se do seu amante, com o intuito de o beijar docemente, segundo o seu costume, quando elle a arremessou brutalmente ao meio da casa:

--Afasta-te, mulher vil! Para sempre! Não me tornes a beijar! Não queiras, ainda mais, manchar a minha fronte com o teu osculo impudico e pestilente. Julgara-te uma mulher, e não passas d'uma desgraçada! Reputei-te um anjo, e és um demonio! Cri, por algum tempo, na sanctidade do teu amor, e illudi-me, illudi-me sim, vibora dolosa e maldicta!

Triste verdade!...

Ah! Ah! Ah!

Neste ponto, Alvaro soltou uma d'essas gargalhadas estridentes e medonhas, que causam horror até ao maior heróe d'este mundo. Depois caíu sobre um canapé esfarrapado e sediço, que elle herdara de seus paes, em tempos mais ditosos, e ao lado do qual existia uma mezinha tosca e ligeira, onde se accommodava invariavelmente uma botija de genebra, que elle collou aos labios, tractando de a sorver diligentemente.

Paulina, embrulhada n'um roupão rôto e velho, com as suas longas madeixas em completo desalinho, foi-se arrastando insensivelmente no pó da sua ignominia, até chegar ao pé de Alvaro, cuja mão ainda tentou beijar mais uma vez.

Elle, quasi adormecido, soffreou aquelle golpe como lh'o permittiam as suas debeis forças.

Paulina ajoelhou perante o seu algoz. Mal começara, porém, a introduzir suas pequeninas e niveas mãos por entre os avelludados cabellos de seu amante, prodigalizando-lhe toda a especie de blandicias e carinho, de que só uma mulher é capaz,--Alvaro, como que tomado de subito desespero, levantou-se, e, tomando do braço d'aquella pobre mulher, exclamou:

--Paulina, é preciso que tu me entendas, d'uma vez para sempre. Eu não te amo, nunca te amei, nem te poderei jámais amar. Has de ser desgraçada toda a tua vida, porque nunca me soubeste comprehender,--porque nunca foste capaz de imaginar que, em logar d'um amante, só tinhas diante de ti um leproso vil, a quem a sociedade contaminou com o seu halito corrompido, para depois o deixar triste e solitario neste theatro ignobil da humana corrupção. Tu, que foste boa e meiga para comigo, procura outro mais digno de ti. Não faltarão homens, que te saibam estimar. Vae, vae correr mundo; e deixa-me, deixa-me por uma vez!...

Neste instante, desabotoou-se, por acaso, o casaco de Alvaro, e de seu seio caíu um leque, que lhe havia sido dado poucas horas antes por aquella joven e espirituosa Emilia, de quem já nos occupámos no principio d'esta narrativa.

Paulina empallideceu terrivelmente, e ia para apanhar aquelle objecto, tão caro e saudoso, de seu amante, quando elle se interpoz á sua vontade, collocando-se de modo a impedir a realisação, bramindo rancoroso e medonho. Os olhos chispavam-lhe sangue, e a bocca espumava-lhe de satanica raiva.

Tambem não articulou nem mais uma palavra. Apanhou o leque com soffreguidão inaudita; abriu-o, e começou a reparar n'uma borboleta que alli se achava gravada. Depois sorriu-se, e, sempre com os olhos fitos no mesmo ponto, exclamou:

--Qual te via sempre, mariposa gentil, adejando mimosa por sobre os meus sonhos radiantes, appareceste-me hoje, mais bella e sublime como nunca te havia imaginado. A tua imagem despertou ao longe os echos da minha alma; consolou-me o fulgor da tua benefica luz, na esperança d'um ditoso porvir!

Sê grande, minha Emilia, dá-me a crença e a vida outra vez! Suavisa o meu penoso soffrer, com o teu balsamo salutar, e, com o orvalho de teu doce coração, refrigera as chagas da minha imaginação enferma!...

Alvaro saíu, então, com tenções de nunca mais voltar áquella casa.

Paulina, essa jazeu por muito tempo n'um abatimento deploravel, até que, ao fim de alguns dias, se resolveu a ir mendigar de porta em porta o pão ázimo da desventura e do arrependimento.

Enganara-se, porém, aquella pobre mulher, quando julgara ter perdido para sempre o seu amante, que, ainda no opprobrio da sua existencia, não podera olvidar.

Um dia Alvaro regressou a casa, completamente regenerado d'aquelles vicios hediondos, que nós lhe conhecemos na sua mocidade estouvada, e perfeitamente arrependido das passadas loucuras.

Emilia fôra o seu anjo da guarda. Quando soube da mulher vilipendiada, d'aquella boa e angelica Paulina, longe de a rivalisar, pelo contrario, tractou de lhe promover o seu maior bem. E foi tanta a longanimidade do seu coração, que um mez depois Alvaro era legitimo esposo de Paulina e um dos mais honrados e bemquistos cavalheiros da invicta cidade do Porto.

Deixal-os ser felizes. Que a benção do Senhor se compadeça dos seus peccados, e faça descer sobre elles o anjo da felicidade e do amor.

O mundo é assim!

UM DRAMA INTIMO

UM DRAMA INTIMO
Ao meu amigo Agostinho F. Velho

La vie en effet n'est qu'une idée sans valeur, une page blanche, qu'otan n'y a pas écrit ces mots:--J'ai souffert, c'est à dire, j'ai vécu.

Baron de Feuchtersleben.

I

«Como Amelia era formosa! que bondade a sua! que terna expressão a do seu rosto angelico; e, que sentimento! que grandeza d'alma!...

«Como não eram radiosos aquelles sonhos da loura criança, que á noite ia segredar á brisa os seus amores sentidos, em infantil rubor!...

«Oh!... e que meiguice não era a sua, espalhando tão docemente o aroma de seus argenteos cabellos á viração perfumada da tarde, e despertando, ao longe, os echos da solidão com o brando dedilhar da sua harpa portentosa!...

«Phantasma cruel, que, por tanto tempo, me alimentaste o porvir grandioso das minhas aspirações ephemeras! Sombra implacavel d'um destino fallaz! Effigie derradeira d'uma chimera inutil! Espectro medonho da medonha existencia! Mulher! anjo! demonio! tudo emfim!...

«Porém, não!... renasça uma crença, ao menos! reviva a fé, em nossos corações! dissipem-se as negruras da vida, e surja a aurora boreal d'um futuro certo, e de uma verdade eterna!...

Nestes termos apaixonados fallava o venerando presbytero, Francisco de Castro, ao seu affectuoso amigo, Alberto de Carvalhal, quando um raio furtivo do sol, penetrando de soslaio por entre a coma dos pinheiraes, que se erguiam altivos lá no cume das montanhas, os veio despertar do inebriante gozo e suavissimo prazer, em que, desde longas horas, se haviam esquecido dois amigos desditosos, profundamente adormecidos nos braços d'uma saudade infinda.

O pescador deixara a choupana, que lhe era consolação extrema nas horas de afflictivos transes e doloroso penar, para ir estender a rede na praia mais proxima!

Ao longe ouvia-se a voz rouquenha e estridula do gondoleiro, accordando aos echos da sua alma o doce nome da amante ditosa, que, em terra, por elle velava, dia e noite.

O astro do dia, erguendo-se phantasticamente das salsas, escumosas ondas em que parecera mergulhado, havia desfeito as obscuras brumas, que lhe empanavam o brilho, espargindo sua luz etherea pelo espaço infinito.

Tudo rejuvenescia, ao seu halito bemfazejo!

A planta, modesta e grata, elevava para o céu a corolla de feiticeiro encanto, gottejando compassadamente a ambrosia celeste de suas elegantes petalas, matizadas d'ouro e prata.

Rejubilava o passarinho no ramo frondente, pipitando a medo um eterno canto de amor e saudade.

A abelha, com a cabeça esmaltada de pedras e diamantes, as azas variegadas como o iris, encetava sua laboriosa tarefa, sorvendo diligentemente o succo da nectaria, que junto lhe acenava.

Neste comenos, Francisco de Castro enlaçou seu braço direito pelo corpo do idolatrado amigo, convidando-o fraternalmente a retirar-se para casa.

--Vamos, meu bom amigo,--dizia elle,--recolhamo-nos ao meu humilde presbyterio, e lá lhe contarei então, mais desafogadamente, os lances da minha existencia, se a tibieza do meu espirito tanto m'o permittir, e, antes d'isso, não afrouxar.

II

Francisco de Castro era natural de Aveiro. Filho de paes indigentes, e de baixa condição, a sua juventude deslisara, naturalmente, por entre o vegetar monótono d'aquella cidade, sem outro incentivo que não fosse a salutar influencia de algum parente mais proximo, ou o conselho leal e franco de algum amigo intimo.

Chegado, porém, que foi á edade da razão, os seus sentimentos abriram-se-lhe em sensações suaves n'um porvir radiante, e despertaram n'elle um prurido irresistivel de ir em cata de melhores horisontes por esse mundo além.

Com este intuito, pois, deixou o nosso provinciano a terra da infancia, antecipadamente recommendado, e sobejamente abonado por um commendador, seu padrinho, com destino para os portos do Brasil.

Que saudades se lhe não avivaram na mente, ao ver-se longe da patria e dos seus! que pavor não affrontou com o rugir da procella, e horrores do naufragio no alto mar! elle, que jámais havia ultrapassado os estreitos limites da sua terra natal! mas tambem, com que deleite, com que profunda emoção, não mirava elle, por noites calmosas, o manto do firmamento azul, magestosamente recamado de estrellas, que se lhe desenhavam por cima da sua fronte! e o sereno marulhar das vagas, quebrando-se de mansinho no dorso da fragil embarcação! e aquelle continuo acastellar de nuvens, debuxando tão ridentes e phantasticas figuras por sobre a vastidão dos mares!...

Como elle sonhava, então!... Como se deixava arrastar tão docemente pelos mundos ethereos de ignota phantasia, julgando ter já encontrado o almejado thesouro que ao longe lhe sorria! regressando rico e feliz ao solo natalicio, e vendo já os seus, agrupados em torno de si, beijando-o alegremente! E, comtudo, como foi diversa a realidade!...

Francisco de Castro desembarcára no Rio de Janeiro a 30 de março de 1849. Procurando saber immediatamente onde era a rua Direita, ahi se dirigiu, sem mais delonga, aos srs. Costa Pereira & C.ª, ricos proprietarios d'uma casa commercial, e correspondentes de seu padrinho n'aquella cidade.

Tanto que foram entregues as cartas, que devidamente o recommendavam, appareceu um caixeiro convidando-o a entrar, e, apertando-lhe fraternalmente a mão, como signal evidente de futura e benevola camaradagem.

D'aqui foi o nosso provinciano levado á presença d'um dos donos do estabelecimento, que o interrogou minuciosamente ácerca da sua vida passada, animando-o amigavelmente a entrar no escabroso labutar d'aquelle labyrintho commercial, e acolhendo-o para logo em sua casa, consoante a praxe de ha muito estabelecida n'aquelle paiz.

Eis aqui, pois, como Francisco de Castro se iniciou na vida activa do commercio, desejoso, sem duvida, de trabalhar, quanto o comportassem as suas forças, e esforçando-se o mais possivel por grangear, dentro de pouco, os meios de subsistencia necessarios para prover decentemente ás necessidades de sua familia, que tanto o havia mister.

A fortuna foi-lhe, porém, adversa. Cahiu, quando menos o julgava, e cahiu, para nunca mais se levantar.

Repugnava lhe á sua indole, em extremo ardente, o vêr-se um dia inteiro acorrentado a um balcão, não mirando a outro horisonte, que não fosse o sediço positivismo do--Deve--e Ha de haver.

Cançado já d'aquelle pandemonio tumultuoso de gelo e de cifras, intentava uma ou outra vez espairecer os olhos lassos de fadiga e semsaboria, levantando um olhar modesto e casto para uma casa fronteira, em cuja janella voejava brandamente uma andorinha gentil.

Foi isto mais que sufficiente para elle ser despedido, ao cabo de alguns mezes, da residencia, onde tão familiarmente havia sido acolhido, logo após a sua chegada.

Assim vagueou incerto, por alguns mezes, bemquisto por uns, odiado por outros, sustentando, a cada passo, uma lucta ingente e dolorosa comsigo proprio; e regressando, mais tarde, á patria com o vivo remorso de nada haver contribuido para o bem estar de seus paes, e de ter ido, além d'isso, semear a desordem e a confusão no seio d'uma familia extranha.

Por isso, mingoado de recursos, apenas chegou a Portugal, Francisco de Castro, não contando mais de trinta annos de edade, resolveu-se a tomar ordens, expiando, com o sacrificio de seus derradeiros dias, uma mocidade, no parecer de muitos, estouvada e febril, que jámais podera olvidar.

Estava elle, um dia, meditando deliciosamente, á sombra de annoso cedro, recolhendo, na sua debilitada imaginação, as sombras longinquas d'esta tragedia estupenda, que se passa entre Deus, o homem e o universo, quando um desconhecido, eventualmente, se acercou d'aquelles sitios!

Era Alberto de Carvalhal!

Movido pela profunda tristeza, que subitamente accommettera Francisco de Castro, e pela curiosidade irrequieta de querer sondar os arcanos d'aquella alma formosa, que bem se deixava entrever na sua fronte generosa e ampla, e n'aquelle seu vulto insinuante e nobre, já curvado ao peso d'uma paixão prematura, e d'um destino atroz, que lhe seccára a seiva da vida, e lhe emmurchecera as flores mais ridentes da sua primavera; Alberto aproximou-se do logar, onde o presbytero se sentára, e prorompeu nos termos seguintes:

--Não sei se, da minha parte, haveria indiscrição, em vir quebrar-lhe este momento de goso ineffavel e placida meditação, accordando-o á triste realidade da vida?! Confio, porém, no perdão da sua generosidade.

--Bem pelo contrario, meu caro. Um amigo é sempre bemvindo, e, se uma ou outra vez nos apraz a solidão, é certo que a sua continuação nos causaria insupportavel tedio. Precisamos d'uma urna depositaria dos nossos segredos; do mesmo modo que a planta carece do orvalho para vicejar e crescer. Sente-se aqui ao meu lado, e assista comigo ao mais pavoroso de todos os espectaculos que só a natureza nos sabe prodigalisar, e que a maioria dos homens, no meio de seu estupido orgulho, olham indifferentes.

Travada, assim, a intimidade entre estes dois corações, que á primeira vista pareciam entender-se bem; facil lhe foi, a Alberto de Carvalhal, que Francisco de Castro lhe narrasse circumstanciadamente os tristes episodios de alguns dos seus dias passados.

Com este alvitre pois, enlaçados pela mutua sympathia, aquelles dois amigos encaminharam-se para casa, onde, depois de terem almoçado jubilosamente, Francisco de Castro, coadjuvado pelo attencioso ardor do seu companheiro, encetou o drama da sua vida com as palavras, que vão ler-se no seguinte capitulo.

III

«Foi por uma tarde serena de abril. Eu, criança ainda, dos meus 13 annos, divagava, triste e solitario pela margem graciosa do meu limpido Vouga, contemplando aquelle espectaculo de mystico enlevo, aquella hora de profundos arrôbos e de gostosa melancholia, em que o Creador mais parece fallar directamente ao coração do homem,--quando, inopinadamente, me pareceu ouvir, a poucos passos do logar onde me encontrara, o estalido rapido e secco d'um instrumento metallico. Em poucos minutos galguei um comoro, que me separava d'aquelle sitio desastroso, encontrando-me face a face com dois personagens, que, muito intencionalmente, tinham escolhido o silencio d'aquella hora para ali virem bater-se n'um duello de morte. Quiz dissuadil-os de similhante proposito: nada consegui.

«Travou-se uma lucta feroz, e, dentro de pouco tempo, um dos adversarios jazia por terra, coberto de pó, e revolvendo-se cruelmente no sangue de suas proprias feridas. Ainda experimentei, uma e muitas vezes, levantar o moribundo, e conduzil-o á primeira guarida, que se me deparasse opportunamente. Tudo foi baldado, porém.

«O outro adversario, apenas viu o contendor prostrado, e sem forças, abandonou o campo, e fugiu. Que fazer, em tal conjunctura? Eu, só, ali, sem uma pessoa unica, que podesse velar por elle. nem sequer uma gotta d'agua para o refrigerar momentaneamente!!

«Felizmente, meia hora não era passada, quando, ao clamor da minha voz, accorreu áquelle logar um trabalhador, que, casualmente, se recolhia a casa. Em poucas palavras, contei-lhe o succedido, convidando-o a que velasse pelo ferido, emquanto eu, açodado, correria á cidade a dar parte do acontecido.

«E assim foi com effeito. Dei-me pressa em correr á visinha povoação. Em vinte minutos estava de volta com dois valentes companheiros para logo o conduzirmos a um logar seguro, como a urgencia do caso nol-o ordenava.

«Sem saber, porém, o nome do individuo, nem tão pouco a sua procedencia, julguei prudente entregal-o ao cuidado d'um desgraçado, mas honrado agricultor, que, de bom grado, o acolheu no seio de sua familia, dispensando-lhe todo o desvelo e sollicitude, que sóe sempre encontrar-se no tugurio do pobre.

«O ferimento não fôra mortal. O cirurgião assistente, apenas decorrido o primeiro mez, para logo o declarara livre de perigo, concedendo-lhe egualmente a liberdade de dar alguns passeios pelos campos e devezas mais proximas, com o intuito de tornar mais rapida a sua convalescença.

«Pouco tempo depois, instaurou-se um processo para proceder a uma averiguação rigorosa sobre aquelle facto lamentavel. No dia aprazado para esse fim fui obrigado a comparecer na audiencia, como testemunha ocular, que, infelizmente, houvera sido.

«E fui pontual, n'esse dia, apparecendo, sem difficuldade no tribunal, onde pouco depois teria de julgar-se um crime de ha muito reprovado pela moral, e pelo direito. Estava impolluta a minha consciencia, não me arguindo de cousa alguma, a não ser o ter eu envidado todos os meus esforços, posto que inuteis, para salvar um desgraçado.

«Por isso, quando me chegou a vez de fallar, contei singela e lealmente o que me fôra licito vêr e presenciar. O juiz figurára-se-me satisfeito com o meu depoimento. A minha má sina, porém, já então me começava a perseguir.

«Após alguns momentos de silencio, e geral expectação, o réu começou a narrar circumstanciadamente tudo o que lhe houvera succedido; vindo eu, finalmente, ao conhecimento de que elle era um mancebo natural de Lisboa, descendente de preclara stirpe, a quem uma paixão violenta, e uma rivalidade sem limites haviam arruinado physica e moralmente.

«Estavam as cousas neste ponto, quando seus olhos, por acaso, se fixaram na minha humilde pessoa. Parecera-me encontrar n'aquelle olhar o quer que era de satanico e sinistro, que me horrorisou até á medulla dos ossos. E, de feito, não me illudi.

«Alguns instantes depois, aquelle individuo, para quem eu fôra o anjo custodio n'um momento de suprema desventura, apontava-me ao publico como um dos principaes cumplices n'aquelle crime; e asseverando até abertamente ter sido o meu desejo immediato o assassinal-o para lhe roubar o pouco que comsigo trouxera, se, por ventura, um transeunte não tivesse ido em seu auxilio, arrancando-o ás minhas mãos.

«D'esta vez a minha indignação tocou o seu zenith. Os olhos chispavam-me fogo; o coração, afogueado em cholera, batia-me apressado e violento. Quiz fallar, mas não pude. A voz prendera-se-me na garganta. Alcei os olhos para o céu, e caí, subitamente accommettido por dolorosa syncope. O que depois d'isto se passou, nem eu o sei, meu amigo.

«Quando, no dia immediato, descerrei as palpebras amortecidas ao astro do dia, encontrei-me isolado, n'uma alcova escura e humida, com uma estreita gelosia apenas, no vão da parede, por onde se coava, a custo, um tenue raio de luz.

«Por informações colhidas posteriormente, concluí ser aquelle o carcere, que, logo após o julgamento, me fôra predestinado para justa expiação do meu delicto. Appellei para a acção da divina Providencia, e soffri resignado o peso da minha cruz.

«Lembrei-me, então, de minha pobre e santa mãe, ralada de desgosto, de meu excellente pae, de meus pequeninos e innocentes irmãos, emfim, de tudo o que me era caro neste mundo, e chorei... chorei... muito...

Neste ponto, o venerando apostolo de Christo, não pôde, por mais tempo, suffocar a sinceridade de seu coração. Levantou-se do escabello, em que se havia sentado, com dois fios de grossas lagrimas a deslisarem-lhe brandamente pelas faces macillentas; e, de subito, alçou a adufa da janella, como se pêso enorme lhe affrontasse a vista. Alberto acompanhou-o n'aquelle movimento convulsivo, auxiliando-o de boa mente a volver as negras paginas do livro fatal da sua vida. Depois, sentaram-se novamente, e Francisco de Castro, fortificado pelas ternas consolações d'um amigo sincero e bom, continuou, mais alentado, a sua historia até ali encetada.

IV

«O desgraçado havia ensandecido. Por isso, reconhecida a verdade do facto, me concederam a liberdade, e me restituiram ao seio da familia. Ainda assim, não havia furtar-me aos olhares perscrutadores e cubiçosos d'aquella gente hypocrita e ridicula da terra.

«Foi, pois, com este intento que meu padrinho, Francisco Marques, homem solteiro e de grandes haveres, se resolveu a persuadir minha mãe, a fim de me deixar embarcar para o Brazil, pretextando ser aquelle o unico meio, não só de me subtrahir ás linguas viperinas, que, a cada passo, intentavam empeçonhar o sanctuario da minha reputação, até ali intacta, senão tambem o caminho mais seguro para alcançar no futuro uma posição certa e definida.

«D'ahi a dois mezes já eu estava no Rio de Janeiro como caixeiro d'uma casa commercial.

«A ingenua hospitalidade, e natural lhaneza, com que ali me tractaram, deixara-me de todo captivo d'aquella sancta e boa gente. Fôra-me, porém, impossivel contrariar a minha natureza, já de si sobejamente expansiva e juvenil, escravisando-a a tão arduo e difficil mister.

«Todavia, a despeito das mil e quasi insuperaveis contrariedades, que então se me antolharam no horisonte da minha vida social, estava intimamente convencido, ainda assim, que a fouce do tempo, roçando ao de leve por sobre os sonhos e illusões da minha mocidade, faria de mim um bom negociante, e um verdadeiro automato das minhas necessidades, sempre crescentes de dia para dia, se um motivo inopinado não viesse, por uma vez, cercear o nó fatal de todas as minhas aspirações no porvir.

«E foi o caso:

«Na rua Direita, onde eu residia, havia dois annos, habitava quasi vis-à-vis de nossa casa, um diplomata de grande nomeada n'aquelle tempo, muito affeiçoado a meus patrões, com quem nutria tambem algumas relações commerciaes.

«Descendente de illustres avoengos, este personagem, pelos seus ademanes e acções, affigurara-se-me, desde a primeira vez que o vi, um senhor feudal da edade-media, no entranhavel rancor e odio feroz, com que olhara sempre os que lhe eram inferiores em categoria e nascimento; ou, por outra, esse bando de mecanicos, que por ahi tropeça a cada canto, especie de bestas de carga,--segundo elle--uteis, apenas, para ludibrio dos grandes e descredito da sociedade.

«Já vê, pois, o meu amigo, quão longe estaria eu de sympathisar com aquelle homem, sinceramente estulto e fatuo, que receiava macular as insignias do seu brazão hereditario, apertando a mão impolluta d'um pobre, mas honrado plebeu. E, no entretanto, a minha má estrella parecia caprichar em me ter escolhido, um monstro d'aquella casta, para meu implacavel algoz.

«Do seu primeiro matrimonio, que elle concebera apenas obtida a elevada posição de embaixador extrangeiro junto á côrte brazileira, houve elle tão sómente uma filha, em quem debalde procurou imprimir o cunho dos seus depravados sentimentos. Amelia era o seu nome.

«Inebriado pela seducção de seu olhar magnetico, e lisongeado pela magia de celestial encanto que me sorria ao longe por entre o anil da minha primavera; eu, atomo insignificante, ousei, um dia, alçar a minha fronte obscura para aquelle astro de divina poesia. Contemplei-o, por longas horas, n'um extasi de ineffavel ventura, e reconheci, alfim, a grandeza e immensidade d'aquelle coração, para quem não fôra indifferente o meu olhar receioso e temerario.

«Porém, entre mim e aquella mulher existia um abysmo incommensuravel; um inferno medonho nos separava. Ella era rica, e nobre; eu era pobre, e plebeu.

«Era, sem duvida, uma attitude dolorosa, aquella, em que inesperadamente nos collocara um caso fortuito, e meramente instinctivo. Todavia, não desanimei, e cedi machinalmente aos impulsos poderosos do meu destino, alentado apenas por uma esperança vaga e indecisa, que me adejava furtiva e longinqua por sobre a orla do meu horisonte.

«Ao tempo em que primeiramente a conheci, Amelia não contava mais de 18 annos de edade, ostentando então toda a formosura e transparencia de seu elevado espirito, n'um rosto profundamente sereno e angelico, onde scintillavam, como esmeraldas, dois olhos verde-negros e seductores, que me deixaram devéras captivo e enleiado.

«Quando, pela primeira vez, fitei a gentileza d'aquella imagem radiante, d'aquelle corpo donairoso e alabastrino, d'aquella mãosinha tão delicada e quasi impalpavel, d'aquelle pésinho de sylphide, d'aquelles cabellos, pretos como azeviche, ondulando naturalmente por sobre os seus hombros de cysne, á mercê da branda e tepida viração do crepusculo; senti-me enlevado em mysticas harmonias; convulso, não pude suster o vôo da minha phantasia. Crêra-me até arrastado no mimo da flor, e na melodia do rouxinol, a um novo mundo; julgara entrever um paraizo, n'essa exuberancia de seiva imaginativa, que produziu em mim um mixto de sentimentos indiziveis e mysteriosos.

«Dir-se-ia uma visão oceanica!

«Amelia, para quem a minha presença fôra de todo indifferente, no principio, começou por me corresponder, dahi a um mez, com um amor apaixonado, e tão verdadeiro como era o meu. E, em verdade, tudo nos corria auspicioso e promettedor. Quasi nos haviamos esquecido d'este mundo, com as suas paixões e odios ruins, para nos extasiarmos perante o desabrochar d'aquella ventura celestial, cujo ambiente nos envolvia n'um deleite imperceptivel.

«Porém, tudo tinha de acabar irremediavelmente; e foi exactamente, quando menos o esperavamos, que o sopro terrivel da realidade nos veio dissipar, n'um momento, todas as doces illusões d'aquelle immenso amor, que nos absorvia, desfolhando-nos, impassivel, todos os sonhos que nos alimentavam o ideal da nossa juventude esperançosa e meiga.

«O diplomata, tendo sido competentemente avisado d'esta nossa mutua affeição, não só me ameaçou logo com toda a casta de doestos e convicios, como tambem o participou immediatamente aos meus patrões, que me despediram, n'esse mesmo dia, com uma desculpa ridicula e alvar.

«Amelia, essa, coitada! teve de luctar, e luctar muito, para arcar com os instinctos ferinos de seu pae, a quem prestes occorreu a idéa nefasta de sacrificar aquella victima innocente a um interesse sordido e vil. Aquelle miseravel concebera a satanica inspiração de vender sua filha a um millionario devasso, que, anteriormente, lhe havia manifestado o desejo de casar um unico filho que possuia com o doce objecto dos meus sonhos sobre a terra,

«Por maiores que fossem as imprecações d'aquelle anjo celeste, allegando a impossibilidade d'uma tal união com um homem, que mal conhecia, e cuja desventura seria infallivel no futuro, não houve, comtudo, resistir-lhe. A resolução, uma vez tomada, tinha de seguir o seu curso violento, ainda através dos mais insuperaveis obstaculos.

«E, de feito, assim succedeu!

«Um mez depois, Amelia, aos olhos do mundo, era legitima esposa do tal millionario. Seu pae havia attingido o auge de gloria e contentamento, julgando ter encontrado a maxima felicidade para sua filha. Era, porém, grande a illusão. E muito callejado, por certo, deveria de estar aquelle homem no vicio, para não resistir ao remorso da sua consciencia, e não conhecer toda a vastidão da sua perfidia e do seu crime.

«Mas esqueçamos esse homem hypocrita e embusteiro, se tanto nos for possivel, de que anda tão colmada esta nossa sociedade, e voltemos a rematar a nossa historia com os ultimos episodios de meus desgraçados dias.

V

«Apenas sahi d'aquella primeira e ultima casa, em que me fôra licito entrar no Rio de Janeiro, nunca mais consegui empregar-me em parte alguma. A minha reputação estava de todo perdida e manchada. Como valer-lhe? d'onde haver recursos, para voltar á patria? Em tal caso, o unico refugio seria, talvez, mendigar de porta em porta um mesquinho ceitil, com que podesse matar a fome que me devorava as entranhas; mas, como o havia de fazer, eu, um homem robusto e apto para trabalhar? quem ousaria acreditar-me, n'aquellas circumstancias? e qual seria o meu denodo para arcar peito a peito com a indignação da sociedade, arrojando-me ás faces os meus erros, e passadas loucuras?!...

«Todas estas interrogações dirigia a mim proprio, apertando, por vezes, entre as mãos convulsas, as minhas faces afogueadas em colera e subito desalento. Procurei repousar o meu corpo abrazado, e não pude. Experimentei distrahir-me, e tudo cri impossivel. Que fazer, pois? Appellar para a acção da divina Providencia; isso seria, além de demasiada temeridade, um puro lazzaronismo. Emfim, nem sei como possa descrever-lhe aquelle momento de suprema angustia, e fatal desesperança?! Só lhe direi que em poucas horas me senti envelhecer, como se já tivesse cincoenta annos de edade.

Oxalá Deus me tivesse chamado a si n'aquelle intervallo de pungente dôr e lucta tenaz!...

«No entretanto, a incredulidade ía-se apossando do meu debilitado espirito, e o cynismo não tardaria, de certo, a vir fazer-lhe companhia; quando senti um clarão de luz banhar-me a furto a minha existencia fallaz.

«N'esse instante, tinha eu recebido um bilhete, concebido nos seguintes termos:

--«Meu caro Francisco.--Espero-te hoje, sem falta, ás 11 horas da noite, junto de minha casa. Sempre a mesma--Amelia.»

«Esperei, pois, por essa hora, caminhando, lentamente, para o logar aprazado. Incitava-me uma curiosidade espantosa, e um desejo violento de poder dizer um derradeiro adeus áquella perola da minha alma.

«Apenas soaram 11 horas nos relogios da cidade, de subito Amelia, surgiu a uma das janellas da casa, acenando-me cautelosamente para que me aproximasse sem receio. Acerquei-me, portanto, d'aquelle logar; porém, oh! meu Deus!... o que vi eu?!... nem quero que tal cousa me lembre! Amelia, tão formosa outr'ora, como estava mudada!... As rosas das faces tinham-se-lhe seccado profundamente; os olhos encovados, e sem brilho; as palpebras apenas se volviam morbidas, e sem significação. Tudo denunciava terrivel cataclysmo, ruina inevitavel!

--«Mandei-te chamar, Francisco, porque me custava desprender d'este mundo, sem me despedir do unico amigo que ainda possuo na terra. Perante o despotismo da força foi cega a minha humilhação, como sabes. Obedecendo a meu pae, julguei cumprir um dever filial, e nada mais. Ao menos ninguem ousará taxar-me de ingrata, nem de insubordinada, creio eu. Agora, consumou-se tudo. A vingança está prestes. Deus, de certo, não me poderá recusar a bemaventurança d'uma outra vida. Os anjos esperam-me no céu, meu amigo, e só lá então poderei encontrar a verdadeira felicidade. Lembra-te sempre da tua Amelia, meu caro, e não percas jámais a esperança da nossa união ante o throno do Altissimo. Tambem imagino bem quantas privações terás passado, meu bom amigo. Não julgues, por acaso, que tenha esquecido a tua dedicação e infortunio, no meio do fausto e esplendor em que vivo. Não; pelo contrario. Desculpa, se antes te não mandei chamar; mas só hoje me foi possivel levantar as algemas de meus pulsos. Agora... adeus... sinto... passos... preciso retirar-me... Lembra-te sempre de mim... Não me esqueças.... por quem és... Toma lá... recebe, agora, a ultima lembrança... da tua querida... E adeus... adeus...

«Amelia retirou-se logo, para dentro, cerrando vagarosamente a janella, como para evitar que alguem a podesse vêr e ouvir. Eu, afastei-me immediatamente d'aquelle logar, suffocado, sem poder articular nem mais uma palavra. Por pouco se me não esvaíram os sentidos.

«Apanhei o pacote que Amelia me pedira para acceitar, como um penhor de reminiscencia das nossas horas venturosas. Abri-o, e encontrei um masso de notas do Banco, que subiam a um valor nada vulgar. Emmudeci, e ajoelhei automaticamente, levantando as mãos aos céus, n'um acto de piedosa contrição. Volvi, depois, a casa, ancioso por dar largas á sinceridade das minhas lagrimas, longo tempo represadas, e ao brado da minha consciencia generosa.

«D'ahi a um mez estava eu no alto mar, em regresso para Portugal.

«Alguns dias, porém, antes de partir, tinha, por acaso, encontrado Amelia, pelo braço de seu respeitavel marido, que me lançou um olhar torvo e sinistro. Foi tambem a primeira vez que o vi, e, valha a verdade, poucas ou nenhumas impressões me deixou. Apenas me recórdo ser elle um homem de estatura elevada, muito magro, tendo um espesso e elegante bigode a cobrir-lhe os labios, naturalmente grossos e rudes. De nada mais me recordo. Hoje, se o visse, estou intimamente convencido, que me seria impossivel conhecel-o.

«Mas, como lhe dizia, desembarquei no Porto a 2 de julho de 1852. Ahi mesmo consegui a minha entrada no seminario episcopal da cidade, d'onde saí, cinco annos mais tarde, já com ordens sacras.

«A despeito de todos os despotismos e ameaças, Amelia continuou a escrever-me todos os paquetes, até que chegou um dia em que deixei de receber noticias suas. Foi isto, cinco mezes depois da minha chegada a este paiz. Soube, finalmente, por carta d'um caixeiro da casa commercial, onde eu estivera, que ella havia succumbido a uma phthisica pulmonar, acompanhada de doloroso soffrimento e pranto acerbo.

«O diplomata, ainda hoje me consagra um odio feroz, attribuindo á minha pessoa toda a origem dos seus males e desgraças. Emquanto a seu genro, nem sei o que lhe terá succedido. Disse-me alguem, ha poucos dias, que elle viera fixar a sua residencia em Portugal. De certeza, porém, nada posso affirmar-lhe.

«Em conclusão, o que bem lhe posso asseverar é que, apezar da grande aversão com que aquelle homem ainda hoje me olha, talvez, eu, pelo contrario, nunca lhe desejei senão o seu bem e completa felicidade. Pois, em verdade, bastava ver n'elle o marido de Amelia, para não poder resistir a um profundo respeito e sincera veneração.

--E que faria hoje a esse homem se, por acaso, o encontrasse?--interrompeu finalmente Alberto de Carvalhal.

--Perdoar-lhe-ia, como expressamente m'o ordenam os preceitos de Christo.

--Ora até que emfim! sou feliz, meu amigo. Deus seja louvado!--exclamou Alberto, cahindo aos pés do padre Francisco de Castro, que debalde procurou sustel-o em seus braços.

Quem era pois Alberto de Carvalhal, já o leitor, de sobejo, o terá imaginado. E a razão por que elle sempre se conservara silencioso, no decurso da triste narrativa do padre Francisco de Castro, facil nos será suppor tambem, por isso mesmo que elle não fazia mais do que ouvir, em parte, a sua propria historia, e chorar nos seus proprios infortunios.

EPILOGO

Dois annos depois Alberto era monge benedictino. Ao cilicio do penitente junctara elle as lagrimas d'um peccador contricto.

O padre Francisco de Castro, ao receber esta nova, que lhe era de tanto prazer e consolação, deu-se pressa em ir abraçar o seu amigo, e, por longo tempo esquecidos, permaneceram nos braços um do outro, extasiados da mutua ventura e jubiloso alvoroço.

A felicidade os acompanhe! Que a gloria do Eterno lhes alente o espirito por entre as lagrimas e abrolhos d'este mundo, e que a certeza d'um beatifico porvir os inicie na practica das grandes virtudes!...

15 de Febrero de 2018 a las 20:51 0 Reporte Insertar Seguir historia
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