amanda-kraft1664221938 Amanda Kraft

Nem sempre um orfanato é o que parece. Às vezes algo de estranho acontece.´ Essa capa foi um presente de um grande amigo aqui da plataforma: Giovanni Turim. Muito obrigada, amigo.


Cuento Sólo para mayores de 18. © Todos os direitos de uso pertence ao autor

#horror #terror #suspense #sobrenatural
Cuento corto
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O Mistério do Renascer

O sol batia nas janelas do edifício em forma de U do Orfanato Renascer, dificultando a visão das crianças, que mantinham os olhos grudados no vidro, encarando o jovem casal que acabara de descer do Ford preto. Se o casal pudesse vê-los se assombrariam com as expressões taciturnas nos jovens rostinhos. Entretanto, estavam felizes demais para olharem para o segundo andar. A Irmã Paulinha os esperava na escadaria que os levaria à Madre Superiora que os aguardava, sentada à mesa de mogno escuro, tendo um livro de capa preta aberto com páginas cuidadosamente preenchidas.

— Bom dia, meus filhos. Sentem-se, por favor.

— Obriga por nos receber, Madre. Quase nem dormi essa noite de expectativa — disse a jovem com um sorriso nervoso nos lábios.

— Entendo, criança. Apenas assinem os papéis e logo o bebê será liberado.

O casal tratou de assinar na linha pontilhada deixando a apreensão de lado, sem notar o sorriso indulgente da velha senhora, ao guardar o papel pardo volumoso na gaveta à sua esquerda, que o rapaz acabara de lhe entregar.

— Então é apenas isso? — perguntou o pai novato.

— Sim. Em breve a criança estará em seus braços. Vou pedir à Irmã Imaculada para ir buscá-la.

— Essa certidão é oficial, Madre? Não teremos problema em registrar a criança como se fosse nossa, sem os trâmites legais?

— Já conversamos sobre isso, meu jovem. Mas se estiver arrependido, nós podemos... — disse, abrindo a gaveta e retirando o pacote pardo de dentro dela.

— Não será necessário, Madre! Não quis ofendê-la — sorriu envergonhado diante do olhar enfastiado que a esposa lhe desferira.

Em poucos segundos a porta da diretoria foi aberta e logo a criança recém-nascida foi entregue aos braços da jovem mãe que a encarava embevecida. Essa é a imagem romanceada que trago comigo quando me vejo diante das manchetes antigas e meio apagadas dos jornais da época. De tempos em tempos a imprensa gosta de relembrar os fatos que envolveram o orfanato. Fatos esses jamais explicados. E como poderiam? Nem mesmo eu, que estava lá, sei dizer ao certo o que se deu naquela noite em que o Menino Jesus nasceria mais uma vez em nossos corações. Nem por isso deixei de gostar do período natalino, entretanto, a cada ano sinto um estranho vazio, uma sensação de que fui deixada para trás. Talvez tivesse tido o mesmo destino que eles, não fosse a mão firme de minha mãe.

Tinha quatorze anos quando tudo aconteceu, mas a lembrança do terror daquela noite ainda é vívida. Há uma atmosfera no que restou do lugar e é como um ímã a me chamar quando galgo aqueles degraus. Fecho os olhos e quase posso ouvir os risos baixinhos e o confabular das crianças. Então deixo as ruinas, assustada. Não tenho coragem de ir além.

Trabalhei na cozinha do orfanato, junto de minha mãe, por dois anos inteiros. Mantinha-se calada diante do que acontecia ali, mesmo quando eu a importunava com perguntas sobre as crianças e as jovens que trabalhavam na lavanderia. Dizia-me para atentar ao trabalho de cortar cebolas e legumes. Precisávamos do dinheiro. Mas não conseguia impedir minha mente de pensar nas mais de cem crianças e moças de ventres avantajados que vagavam por ali. Não entendia porque a despensa sempre abastecida e a mesa farta para as irmãs de caridade, cada vez mais roliças, não se comparava à das internas. Para elas uma sopa rala com alguns legumes boiando. Algumas vezes, escondida pelas sombras das paredes, presenciei o modo como as moças eram tratadas pelas Irmãs. Referiam-se a elas como Perdidas. Demorei a entender o termo pejorativo.

As pobres trabalhavam arduamente na lavanderia do orfanato. Durante a semana, eram obrigadas a se levantar as quatro da madrugada e, em silêncio, seguiam até a capela e lá ficavam em oração até às cinco horas, quando começava o turno na lavanderia que se estendia até às oito da noite.

Minha mãe havia me proibido de conversar com as Perdidas. Havia uma delas que me incutia uma pena desacerbada. Seus olhos estavam sempre mirando o chão, como se não tivesse o direito de erguê-los. Era mirrada. Do pouco que vi dos olhos, tinham olheiras profundas. Apiedei-me dela e sempre que podia, roubava alguma fruta da despensa e lhe dava, quando não havia ninguém olhando. De início ela pouco falava, porém com o tempo, tomou-se de confiança. Lembro-me de uma conversa, quando entrei na lavanderia a pedido de minha mãe e lá estava ela, no meio das outras moças, com as mãos cheias de sabão.

— Por que está me ajudando? — perguntou-me após morder vorazmente a maçã verde, assim que a estendi para ela.

— Não sei. — disse-lhe dando de ombros.

— Nesse lugar são poucas as pessoas de confiança. Quantos anos você tem? Não parece ter mais que quinze. Estou certa? — encarou-me de cenho franzido.

— Acabei de fazer quatorze.

— Não devia estar ajudando na cozinha? Daqui a pouco elas virão atrás de nós.

— Minha mãe precisa de guardanapos limpos.

— Você vai se meter em encrenca, menina. Sabe que não deveria estar falando comigo.

— Não ligo.

Ela me olhou intensamente e senti um arrepio percorrer o corpo ao mesmo tempo em que tudo pareceu se desmaterializar ao meu redor, num átimo de segundo. Sensação que não me esqueço até hoje. Perguntei-lhe por que estava ali e não em sua casa com o pai da criança. Ela riu com escárnio, assustando-me, antes de dizer que em breve ele viria buscá-la. Deixei-a quando voltou aos seus afazeres, após o olhar conspirador que as outras garotas lançavam para ela. Sabia que todas odiavam o modo como eram tratadas pelas Irmãs e que de alguma forma, protegiam as crianças.

Seu ventre crescera absurdamente naquele Dezembro de 1932. O Renascer estava decorado para o Natal, mostrando à cidade um esplendor que não existia naqueles cômodos frios. Na Missa do Galo, a capela abrigava as Irmãs sentadas em frente ao púlpito onde o Monsenhor celebrava o ofício natalino. Atrás das Irmãs, os pequeninos de idade entre três e oito anos e, em pé, encostadas nas paredes, as Perdidas. Dentre elas, a moça de olhos sombrios. No meio da celebração, um grito nos congelou. Os olhares se voltaram para o fundo da capela onde a moça segurava o ventre inchado, indo ao chão.

A Madre ordenou e uma das Irmãs foi até ela, arrastando-a para fora. Nem mesmo os cânticos de vozes femininas abafaram os gritos. Assustei-me. Quase no final da Missa, a porta da capela se abriu com estrondo e a irmã que saíra, retornara com a criança nos braços. A Madre se levantou e caminhou até a criança, tomando-a para si. Creio que sua intenção era levá-la até o púlpito, mas antes que pudesse fazê-lo, outro grito cortou o ar. A jovem mãe surgiu e atrás dela um homem alto de vestes brancas. Havia uma débil luz que parecia irradiar dele, hipnotizando-nos. As crianças se agitaram, mas foram contidas pelas Perdidas. Ele caminhou até o altar, agora impregnado de silêncio.

— Dê-me a criança. — ordenou educadamente à Madre, que se negou a entregar.

Estendeu o braço e a criança flutuou até ele. Entregou o menino à mãe e então uma luz fulgurante nos cegou. Ouvi gritos e senti a mão de minha mãe me puxar para baixo. Arrisquei a abrir os olhos e vi as freiras, uma a uma, terem seus corpos fundidos às paredes da capela, numa impressão negra, cada vez que o homem se voltava para elas. Gritei. Nossos olhos se encontraram e sua mão se dirigiu a mim, mas foi impedida pela moça, minha amiga. Ela acabara de me salvar do mesmo fim do corpo religioso. A luz que irradiava se intensificou fazendo-me abaixar a cabeça. Quando o brilho cessou, as crianças e as Perdidas haviam desaparecido.

Mamãe me arrastou para fora assim que as paredes ruíram. Proibiu-me de falar sobre o assunto. E hoje, mais de sessenta anos depois, não sei o que era aquele homem. O que fez e nem para onde as levou. Mas sei o motivo. Anos após a tragédia foram encontrados mais de oitocentos corpos de crianças e adultos dentro das fossas sépticas do orfanato. Bebês mortos por desnutrição, e outras doenças, além das moças mortas no parto, sem que lhes fosse dado um enterro decente e uma certidão de óbito.

28 de Septiembre de 2022 a las 21:36 5 Reporte Insertar Seguir historia
5
Fin

Conoce al autor

Amanda Kraft Participo com mais de cem contos em diversas antologias de várias editoras. Livros lançados: Somente eu sei a verdade; Traição; Uma Segunda Chance; A Noiva da Neblina e o Segredo de Lara pela buenovela.com e também contos e livros inéditos na Amazon kindle.

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SJ Sandro Jarbas Malheiros
Muito bom esse conto, verdade. Você consegue criar um clima assustador que me move a seguir em frente até o desfecho da história.
February 05, 2024, 00:54

  • Amanda Kraft Amanda Kraft
    Mto obrigada, amigo. Fico mto feliz! February 05, 2024, 01:11
Norberto Silva Norberto Silva
Caceta! História tensa, pesada e muito bem escrita! Você traçou um fio narrativo que foi aumentando o escopo do terror e quando chega ao clímax... Incrível moça, você manda muito bem nesse clima de terror e, ao ver seu comentário, falando sobre o último parágrafo ter sido um fato real... Deixou seu conto ainda mais impactante. Parabéns!
September 30, 2022, 12:27
Donnefar Skedar Donnefar Skedar
Assustador imaginar tal situação e mais ainda, se por no lugar da personagem.
September 29, 2022, 20:47

  • Amanda Kraft Amanda Kraft
    O último parágrafo do conto foi um fato real. Isso é mais trágico ainda. September 29, 2022, 22:12
~