Caleb
Liguei a TV.
Um dos tele shows mais importantes do dia está acontecendo, já está próximo do final. A popularidade deste show se deve ao único apresentador.
História, contos, curiosidades, segredos e piadas. O homem que é dito ser o 'confidente' dos Reis de Legionária, aquele que conhece toda a história obscura das Legiões.
Conforme ele andava até o outro lado do cenário, tratou de acomodar os fios de cabelo grisalhos organizados em um rabo de cavalo e ajustar seu terno branco ao corpo, destacando o colete com bordados vermelhos.
O cenário arremete a uma sala de estar. Um sofá para convidados e uma mesa no qual o apresentador se assentaria para entrevistar.
Dei uma olhada no relógio, ainda tenho tempo até a comida ficar pronta.
Ele sorriu perante as câmeras e moveu-se até a entrada de convidados do cenário.
Bardo. Este é o seu apelido.
Não sou muito de ler, mas devido a minha amiga, li a breve bibliografia dele. Não tem como ficar desanimado com a história de vida dele.
Ele é um dos poucos homens que presenciou acontecimentos históricos, um dos milhares que sobreviveu durante a época de guerras e alcançou a fama com suas habilidades com oratória e liderança. Tornou-se conhecido por ter uma relação intima com todos os reis da geração que mudou Legionária. E há rumores que ele é mais do que isso, como também é uma das pessoas que mais investiram no futuro de Legionária.
Ele convidou um idoso já na casa dos seus cento e três anos. Um senhorzinho comum e que aparentemente é uma pessoa com muitas histórias para contar, embora não tenha fôlego para isso.
O velhinho tem em seu ombro direito uma capa verde e dourada com uma medalha distinta. Uma capa dessas é dada somente a colaboradores do exército, dos caçadores e instituições que estão envolvidos na proteção de Legionária.
Nosso apresentador interrompeu a conversa e convidou uma idosa desta vez a entrar. Ela veio em um terno que somente militares possuem, sua capa sobre o ombro é azul escura e branca.
Os dois idosos se abraçaram.
Percebi que a pequena e frágil mulher de idade não tem ambos os braços e seu lado direito do rosto estava marcado por uma enorme cicatriz. Ela usa próteses quase reais no lugar dos membros perdidos.
- Como todos devem saber, neste final de ano estaremos completando treze anos em que a Primeira Guerra Unida acabou. Treze anos. – Frisou ele, como se estivesse contando uma história de terror – Legionária cessou suas guerras internas para lutarmos pela nossa sobrevivência. Todas a seis Legiões sentiram a dor de perder centenas de milhares de pessoas para as quase infinitas bestas que nos atormentavam – Um fundo musical iniciou. Melancólico e claramente patriótico.
O Bardo virou-se para os dois convidados que estavam cochichando felizes entre si com o reencontro. Eles são companheiros que não se encontravam a anos. Algumas lágrimas puderam ser vistas.
- Estas duas pessoas foram um dos milhares de irmãos de Legionária que protegeram aqueles que não podiam lutar nas linhas de frente. E, vivenciaram um dos momentos mais trágicos e importantes de nossa história – A música tornou-se mais grave e as imagens no telão mostravam dados históricos. Imagens e uma representação das posições de batalhões de soldados durante a guerra. Sei disso por que tive que estudar isso na escola.
Algo curioso que lembro bem, é que não eram "soldados", e sim pessoas comuns. Para não morrerem tiveram que aprender a lutar rapidamente e ir para o fronte.
O Bardo prosseguiu.
- Como todos sabemos, a maior parte dos vídeos e imagens feitas durante aquele período estão proibidas de circular aos cidadãos devido ao seu teor brutal. Mas hoje, sob consentimentos destes dois heróis – Ele apontou para os seus convidados experientes que agora focavam no Bardo – Nós obtivemos acesso a uma série de áudios gravados em ação.
Arqueei as sobrancelhas. Isso é algo raro de acontecer. Recebi uma mensagem no celular, já imaginava quem devia ser e, portanto, não toquei no aparelho para responder.
Fiquei vidrado no que iria ocorrer.
Durou alguns segundos e o primeiro áudio iniciou. Uma transcrição apareceu na tela para que soubéssemos quem estava falando. Já vi poucos vídeos ou áudios assim na escola.
Voz A: “Chegamos na quinta base e estamos preparados para a construção das barreiras e torretas nas Paredes. Câmbio. “
Voz B: “Entendido. Prossiga o mais rápido possível com a construção. Uma pequena horda escapou e está prosseguindo até a sua localização. Devem chegar ao meio dia de amanhã. Câmbio. “
Voz A: “Entendido. Quando que a segunda remessa de suprimentos chegará? Estamos esperando a dois dias. Câmbio. ”
Voz B: “Não se preocupem. A carga foi destruída por um ataque, mas uma segunda já saiu sinalizada como urgência. Chegará em algumas horas a sua posição. Câmbio. ”
Parece ser a conversa entre o comando e uma base fixa. Dá para perceber nas falas informais que são apenas pessoas comuns e não soldados.
Depois de uma pequena pausa, outro áudio iniciou. Obviamente em outro contesto.
Tiros e rugidos fizeram os dois velhinhos se assustarem. Ambos fecharam os olhos e buscaram o contato com o outro.
Voz C: “Precisamos de ajuda. A carga de suprimentos foi perdida. Precisamos recuar. Duas dúzias de feras estão atrás de nós. ”
O som parou após um baque grave. O áudio terminou ali. O Bardo fitava ambos os seus convidados de olhos fechados.
Outro áudio iniciou. Desta vez o ambiente estava mais calmo em comparação ao anterior.
A mesma Voz A falava, de forma ansiosa e confiante.
Voz A: “Sim. Entendido. Que assim seja. ”
E desligou. Sequer falou 'Câmbio'.
Parece que quem gravava está se movendo. Portas sendo abertas e fechadas, passos pesados e alguns suspiros pesados.
Um ecoar de conversas iniciou e parou. Nosso gravador acabou de entrar em alguma sala cheia de gente.
Voz A: “Como todos sabem, a companhia de Santa responsável pela entrega de nossos suprimentos foi dizimada. Sem sobreviventes. ”
Alguns poucos murmúrios foram ouvidos. A voz A continuou. Soava um pouco abalado.
Voz A: “A falta de suprimentos é nossa menor preocupação. Um dos avanços foi um fracasso e as linhas de base foi quebrada. ”
Podia estar ouvindo apenas um áudio, mas sou capaz de sentir o impacto que aquelas palavras significavam.
Animais furiosos estavam avançando contra a região que estavam defendendo. É certeza que alguma cidade ou base seria apagada do mapa devido a essa falha.
Voz D: “Senhor! Onde houve a quebra? ”
Uma voz roca e tremenda ecoou e as conversas que surgiram pela notícia pararam.
Ouve uma pausa. Parece que a Voz A estava se preparando para dar uma péssima notícia.
Voz A: “A linha de base vizinha a nossa. Infelizmente não podemos sair daqui por isso. ”
Uma sucessão de gritos começou e vários por quês foram lançados.
Voz A: “Não foi uma ordem. " - Gritou ele - "É por que estamos no local mais seguro possível. ”
Todos silenciaram.
Voz A: “O comando de cima estava planejando nos fazer recuar. Mas o avanço inimigo já nos contornou. Ainda não atacaram, pois, a nossa localização os retarda. Temos algumas horas para nos preparar. Temos vantagem geográfica. Temos munição e poder suficiente para nos defender. ”
Voz E: “E os suprimentos? ”
A voz E é de uma mulher. Imagino que seja da moça presente no palco.
Voz A: “Uma entrega emergencial deve chegar em minutos. Se quisermos sair vivos daqui devemos nos preparar. Receber a entrega e nos firmar aqui. E esperar que haja alguma retaliação contra as feras que irão nos atacar. ”
O áudio acabou. O silêncio mortal pairava sobre aquele palco. Não havia um fundo musical. Apenas movimentos do Bardo se aproximando para junto de seus convidados.
Eles devem ter vivenciado aquele momento. Estão tremendo, mas tranquilizaram o Bardo que estava tudo bem.
O Bardo falou algo para eles. E o homem de idade direcionou-se para a plateia.
Sua voz revelava o passar dos cem anos. Ecoava de forma falha e baixa.
- Nós estávamos lá quando aquelas coisas vieram. Elas atacaram de dia logo após recebermos os suprimentos mencionados na gravação – Ele explicou.
Fiquei tenso.
Não é fácil escutar histórias daquela época. Imagine comentar sobre um acontecimento onde o seu pai, mãe ou amigo da pessoa ao lado tenha morrido.
Perdemos muitas vidas devido aos ataques selvagens de animais.
O homem comentou sobre a sua posição na hierarquia de comando e suas responsabilidades. Ele fazia parte de um grupo pequeno que sobreviveu ao ataque.
- Nos primeiros dois dias foi fácil suportar as investidas. Eles atacavam em horário alternados durante o dia e como o nosso batalhão possuía experiência, nos preparávamos para o pior a cada dia.
- Como assim, senhor? – Perguntou o Bardo.
- As feras que nos atacavam não são consideradas secientes - animais com capacidade de raciocinar como humanos - como os que conhecemos. O categorizamos como selvagens. Mas isso não significa que não eram capazes de ter atitudes inteligentes.
- Então, por dois dias ninguém caiu – Bardo falava com calma. Ele sabe que muita gente é sensível as mortes que ocorreram – Se vocês estavam bem preparados, como as criaturas conseguiram desestabiliza-los?
“Desestabiliza-los”. Bardo estava perguntando como as criaturas romperam a defesa e mataram os soldados com outras palavras.
- Nós nos revessávamos para defender nosso território. Isso fazia que todos estivessem bem descansados e ativos. Porém, em determinado dia as feras avançaram com mais ferocidade. Os vencemos, mas tivemos que utilizar soldados que deviam estar descansando. Foi uma atitude fria e calculista. Por que as criaturas interviram pela primeira vez no período noturno. Se escondendo no breu e lançando ataques as nossas defesas. E como a maioria estava cansada de lutar de dia, foi difícil... – O bom e velho soldado começou a fraquejar. Isso não é bom, ele está vivenciando aqueles momentos em suas lembranças. O Bardo não o forçou, pelo contrário, pediu que aguardasse – Meu melhor amigo e irmão foi o primeiro a cair.
Quem estivesse assistindo com certeza sentiu uma dor no peito. Irmãos. Ele comentou, enquanto lágrimas desciam pelo rosto que ver sua mãe o recebendo de volta após a guerra doeu ainda mais.
- Nós... nós lutamos. Fomos caindo de um a um. Quando nosso comandante se sacrificou por nós. Tomei a frente da liderança. Meu peito estava cheio de ódio e a fúria estava no olhar de todos - Sua expressão mudou, a testa franziu e aquela aparência convidativa de bom velhinho sumiu, seu peito inflava de ódio conforme falava - Gritávamos a cada fera morta para enfurecer ainda mais essas aberrações. Eles nos causavam dor e nós estávamos apenas os alfinetando. Todos. Todos nós iríamos morrer. Um batalhão de duzentas pessoas. E.… somente trinta. Trinta – Vociferou o homem em meio ao choro – Nossos irmãos de arma não morreram gritando de dor e sim rugindo de furor defendendo Legionária.
Uma salva de palmas solene começou.
Foi um depoimento incrível.
O guerreiro enfraquecido pela idade foi confortado pelo Bardo e sua companheira de batalhas. O Bardo se mantinha inexpressível.
A conversa retomou após os prantos encerrarem.
Estratégias e contos de coisas que aconteceram naquele ambiente foram ditos. E alguns sorrisos aliviaram o clima.
O Bardo é um homem incrível, controlou a situação até que retornarem ao assunto principal, como se estivesse conversando sobre algo comum.
- Naquela mesma noite – O bom guerreiro começou a falar novamente sobre o assunto anterior e todos no estúdio atentaram-se – Nós fomos salvos.
- Por quem? – O Bardo perguntou. Notei que seus olhos estavam interessados nisso.
- Pelo amanhecer – Respondeu o bom guerreiro.
Imagino que não fui o único que estava assistindo que não entendeu.
- Ele chegou rapidamente... – Divagou o idoso.
Ele? Me perguntei.
- Como falei, o local onde estávamos possuí duas grandes paredes rochosas altas e nós ficávamos no centro. As primeiras luzes surgiram detrás de uma delas. O céu brilhou. As nuvens pareciam estar queimando. Antes não conseguíamos olhar dois metros a nossa frente e naquele momento não havia um inimigo ou canto que não pudesse ser avistado.
Ele estava animado e olhou para o teto do cenário, como se estivesse revivendo p momento que está nos contando.
- Ele surgiu. Lá no topo. As chamas brilharam fortemente. Eu mesmo quase fiquei cego pela mudança de luz. As feras pararam o ataque por um segundo. E no segundo seguinte estavam preparando-se para fugir. Um ato em vão, é claro. Pois todo o lugar se tornou fogo. As chamas passavam por nós como uma corrente de um rio bravo. Nos tocava e não queimava, seu calor era agradável, porém triste. As feras que estavam nos encurralando foram dizimadas. Tornando-se pó consumidas pelo fogo.
Foi um legionário com a capacidade de manipular chamas. Essa é uma habilidade rara em nosso mundo, especificamente de minha Legião.
- Nós. Aqueles que lutaram naquele terror contam sobre um homem de Ígnea. O chamam de Amanhecer, pois suas chamas iluminavam a noite. Você não foi o único a vê-lo.
Arregalei os olhos e arqueei as sobrancelhas.
O Bardo acabou de comentar sobre algo que ocorreu consigo. Ele acabou de admitir na rede principal e ao vivo que foi um combatente.
Sei que deve ter muita gente surtando agora.
Ele aparenta ser jovem em seus trinta anos. É bem possível que lutou nas guerras quando era criança. Isso é um segredo... na verdade, era um segredo. Um baita de um segredo. Mas por que ele divulgou isso somente agora?
Eu e minha amiga, Liana, sabemos que o Bardo não se deixaria emocionar fácil assim e divulgar algo desse tipo sobre sua vida.
Semicerrei os olhos. Parece que algo está acontecendo.
É baixo, mas alguns sussurros da plateia puderam ser ouvidos na TV.
- Sim. De fato, caro Bardo. Aquelas chamas nos motivaram. Aquele único homem fez uma chama ascender em nosso peito. Ele saiu após terminar com as feras que nos atribulava e seguiu caminho, rumo as linhas de avanço sozinho. O resgate veio em seguida. Centenas de pessoas. Não! Milhares de pessoas. Não sabíamos, mas outras bases foram atacadas. E todas foram resgatadas por um único homem e agora o seguiam para as linhas de frente – O guerreiro chorou junto com a companheira ao lado, mas sorriam entre as lágrimas – Eles cuidaram de nós e nos despedimos dos corpos de nossos irmãos mortos, pegamos nossas armas e avançamos junto com a multidão.
Meu coração tremulava no peito.
Posso imaginar milhares de pessoas avançando para as linhas de frente seguindo a luz de um único homem. O avanço que ficaria marcado na história de Legionária como a principal investida que contribuiu para a vitória de Legionária.
A plateia se ergueu e gritou de alegria. Milhares de vidas morreram... não, milhares de vidas se sacrificaram para que outras milhares pudessem viver.
O Bardo e seu principal convidado conversavam mesmo com a plateia batendo palmas.
Uau. Realmente estou animado. Minha respiração está tensa.
Olhei para o relógio, está na hora.
Desliguei a TV e parti para a cozinha. O programa já estava em seu fim, então não me importei em assistir o final.
Com luvas térmicas em mãos, apaguei o fogo do forno e o abri.
Nunca vou me cansar desta sensação, receber o ar quente carregado de aroma da comida no forno. Somente pelo cheiro dá para sentir fome.
Estendi o braço para dentro sem temer o calor.
Uma única travessa ocupa todo o forno. E esta é bem especial, contêm uma receita bem que demorei um mês para aprender a fazê-la e duas semanas para fazê-la.
Retirei e conferi o conteúdo. E como pensei, está perfeito.
Enrolei a travessa com alumínio, este é um prato que é mais gostoso se estiver bem quente. E como não iria comê-lo agora, melhor preservar o calor.
Dei-me por satisfeito.
Três caixas de comida ocupavam o chão da cozinha. Este foi o último prato para a comemoração de hoje.
Acho que não me apresentei. Meu nome é Caleb Ruber. Tenho dezesseis anos e acabei de me formar no colégio. Faço alguns pequenos trabalhos como cozinheiro e estou responsável por parte do Buffet de uma pequena comemoração da cidade hoje à noite.
Foi necessário um dia inteiro para fazer tudo.
Cortar, temperar, cozinhar, enfeitar. E tudo isto, sozinho.
Pode parecer um pouco cansativo, porém gosto de cozinhar.
Aprendi a cozinhar a partir do dia em que meu pai falou que eu já tinha idade para isso, na época eu tinha apenas seis ou oito anos. Aprendi bem cedo que facas podiam machucar fácil e que panelas quentes podem fazer um bom estrago. E mesmo depois de tudo, tomei gosto por isso a ponto de se tornar uma fonte de renda para mim.
Por fim, falta levar tudo isso para o local da reunião, mas infelizmente meu corpo magricela não conseguiria carregar as três caixas de comida, teria que pedir ajuda a Richard.
Pensar em Richard me fez notar que ele saiu de manhã e não voltou até o momento. E para minha surpresa alguém bateu a porta. Com certeza não é Richard, ele tem a chave de casa.
Atravessei a sala até chegar à porta de entrada e a abri. Uma garota de pele branca e cabelos negros, altura inferior à minha e de mesma idade que a minha se encontrava a minha frente. Vestia apenas uma calça jeans e uma blusa branca de mangas longas, na quais estavam enroladas. Esta é minha amiga Liana. A garota me analisou rapidamente e falou.
- Uou! Você está cansado, sabia? - Perguntou ela.
- Entre logo, o cheiro da comida com certeza deve ter atraído alguns animais – Uma luz ascendeu em minha mente, deve ser por isso que Richard ainda não retornou.
- Obrigada – Ela agradeceu e entrou. Como imaginava, ela adiantou-se para cozinha – Viu que o Bardo participou da guerra?
- Na geladeira tem alguns doces que sobraram – Avisei antes que ela abrisse as caixas para roubar um pouco da comida que fiz – E sim, eu assisti. Nossa, ele aparenta ser tão novo.
- Ele tá conservado, querido. Tem dinheiro para comprar os mais poderosos cosméticos para manter aquele rosto lindo do jeito que está.
- Mas, é bem possível que ele tenha participado da guerra enquanto criança.
- Sim. Tem essa chance - Comentou ela.
Ela abriu a geladeira e retirou uma pequena vasilha de doces.
Ela fica bem à vontade em minha casa, assim como eu na dela. Afinal, ela nos visita quase todos os dias mesmo que minha casa fosse fora da cidade.
Adiantei-me e peguei alguns doces para mim antes que ela comesse todos.
Digamos que Liana sempre foi uma de minhas cobaias para testar minhas receitas. E incrivelmente nunca engordou por isso. Usá-la assim a fez ficar viciada em minha comida.
- Então? O que veio fazer aqui? – Perguntei. Já está quase no horário de restrição aos moradores da cidade de saírem.
- Só vim comer algo – Ela já está sentada no sofá com a vasilha de doces. Posicionei-me próximo do ouvido de Liana e ousei falar quase como um sussurro.
- Vamos lá. Admita que você está querendo aproveitar o tempo com o seu amigo – A garota parou de comer e fez beicinho.
Logo meu pai e eu partiríamos de Merôni.
Foi à decisão de Richard e obviamente eu também estava triste, mas Liana iria para faculdade e infelizmente não passei no curso que queria. E quando Liana for embora, esta cidade ficará um pouco sem emoção para mim.
Não iríamos apenas viajar. Após o termino da viagem, não voltaríamos para aqui. Começaremos nossa vida em outro lugar. Agora, onde seria?... Richard não me disse.
Desde criança observei os mesmos morros e árvores e quero viajar pelas seis Legiões e descobrir coisas que nunca vi. No fundo, sempre senti algo pulsando dentro de mim, algo que não estava aqui.
Liana relaxou a cabeça sobre o sofá e me atentei a olha-la, sentirei saudade de sentir a presença dela.
É estranho pensar que todos aqueles anos brincando e conversando iriam mudar. Pensávamos que aquilo seria para sempre.
- Você vai tentar entrar na faculdade de novo?
- Não. Não estou muito a fim de passar o meu tempo com a cara em livros e fazendo provas e trabalhos – Já basta o que sofri no ensino médio.
- A ideia de se tornar um Caçador ainda continua na sua cabeça? – Liana parou de comer para olhar para mim.
Legionária é repleta de pessoas capazes de fazer coisas inimagináveis. Liana é uma delas. Devido aos seus olhos, ela é capaz de ver o que não pode ser visto e sentir em si mesma o sentimento das pessoas em que seu olhar se posiciona.
Agora, sobre seguir uma profissão de Caçador. Meio que isso me atraiu com o tempo, assim como a culinária.
Desde criança Richard me levava para suas rotinas como caçador. Pode ser estranho uma criança estar presente em caçadas perigosas, mas Richard tinha um motivo para me levar.
Também possuo uma habilidade natural, assim como Liana.
Na verdade, não é uma habilidade e sim um instinto apurado. Muito legionários possuem algo assim. Consigo sentir se alguém olha para mim mesmo que esteja de costas. E sim, Richard me usava como um radar para achar animais tentando fazer emboscadas. Porém, as criaturas que habitam nossa região não são de perigo extremo, apenas alguns de médio e pequeno porte. Já cheguei a enfrentar alguns, mas na maioria das vezes auxiliando Richard com tiros à distância.
- Já contou a seu pai? – Liana perguntou, mais interessada nos doces do que na conversa.
- Não. Não contei sobre isso a Richard – Eu posso ter um pouco de experiência em enfrentar animais pequenos, mas pessoas que já toparam com a fauna de Legionária é bem normal. O que diferencia um civil de um caçador são as habilidades e técnicas – E, também creio que você nunca contou a ele, certo?
- Nunca – Respondeu novamente enquanto degustava mais um doce. Com certeza a quantidade de açúcar que ela está ingerindo a faria ficar bem ativa hoje de noite – Ele suspeita. Acho que ele deve ter visto você pesquisando sobre isso, você é mais fácil de ler do que imagina também.
Deixei escapar um leve suspiro.
Não sei como falar para Richard sobre isso. Entretanto, esse não é o momento para pensar nisso.
Liana me passou a vasilha vazia. Olhei surpreso para baixo.
Estava cheia a um minuto. Sorri. Realmente acabei criando um monstro.
Por centenas de anos a humanidade rastejou pelo mundo tentando sobreviver as feras selvagens. O ambiente hostil acima e abaixo da terra quase extinguiu as poucas centenas de humanos que restaram. Após anos de peregrinação, seis grupos de humanos alcançaram onde hoje é Legionária. E ali, apoiada por grandes feras inteligentes, prosperaram e multiplicaram-se em segurança das feras selvagens, desenvolvendo as chamadas Seis Legiões. A paz não perdurou e guerras ocorreram, guerras tão brutais que suas histórias foram esquecidas. Hoje, anos depois das guerras brutais, a paz chegou novamente em Legionária. Leer más sobre Wiki de Legionária.
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