O Porão
Isso aconteceu há 6 anos.
Eu tinha apenas 14 anos.
Tenho certeza disso. Era uma das poucas coisas de que me lembrava com certeza e clareza; a data do meu aniversário. Tinha 14 anos quando acordei no quarto daquela fazenda. Era tardezinha e, da cama, me recordo de ver as cortinas brancas balançarem preguiçosamente na janela e de sentir a brisa da tarde deslizar para dentro do quarto junto da luz quente e aconchegante do sol. São sensações das quais me lembro, quase podendo senti-las agora. Minha cabeça doía e latejava, como se o cérebro pulsasse e se expandisse contra o crânio, quase explodindo. Alguns minutos depois – o que na minha cabeça parecia uma eternidade, como se o mundo inteiro fosse um enorme retrato estático daquele quarto rústico de madeira – ele abriu a porta e entrou.
Digo ele porque a verdade é que nunca soube seu nome ou quem ele era. Ao menos não de verdade. Chamava-o somente de Tio, porque foi assim que ele se apresentou e porque parecia o natural a se fazer. Afinal, quando o mundo ainda era mundo, aos meus olhos e dos meus amigos da escola, todo adulto era um Tio. E assim ficou.
Ele era meu Tio. Embora não tivéssemos laços sanguíneos.
Quando acordei naquela cama, algumas lembranças emergiram em um turbilhão intenso na minha mente. Lembrava de ver meu pai morrendo, dilacerado ainda vivo por uma dessas coisas que rastejam lá fora. Lembro do medo que senti e de minha mãe gritando para que eu corresse quando três pessoas a seguraram. Lembro de correr. Correr muito, até que meu peito começasse a doer e minha barriga desse pontadas. Tenho guardado a nítida imagem de, enquanto corria assustado, olhar para trás e ver uma daquelas criaturas – uma das que atacou meu pai – me perseguir campo adentro, correndo nas quatro patas e babando como um louco atrás de mim. E, finalmente, lembro de tentar descer um barranco lamacento. Meus bracinhos de criança tateando, tentando encontrar pontos de apoio e galhos para se segurar enquanto eu arfava e o mundo girava e, depois, nada mais.
Então acordei no quarto.
Ele – meu tio – contou que me encontrou caído entre algumas pedras, com a cabeça sangrando e com machucados por todo o corpo. Eu estava desacordado e, nesse meio tempo, ele me trouxe para sua fazenda, afastada de tudo aquilo que acontecia e cuidou de mim. Me deu comida, trocou minhas ataduras e limpou a ferida. Ele disse que era bem feia, e que foi muita sorte eu ter sobrevivido. Nunca acreditei em sorte. Sei disso também. Porque sei que eu e minha família íamos todos os domingos à igreja. Mas entendi o que ele quis dizer.
Foi uma puta sorte mesmo.
Quando fiquei melhor e já conseguia fazer certo esforço, ele começou a me ensinar as tarefas básicas da casa e da fazenda. O terreno era enorme e cheio de cantões com milhos dourados crescendo, trigo, pés de acerola e jabuticabeiras. A casa não era dele. Ele a encontrara vazia, quando procurava algum lugar para se esconder da loucura que acontecia. Sendo assim, não era o maior entendedor de como cuidar de uma plantação ou de qualquer outra coisa. Mas nós nos viramos bem.
Sobrevivemos.
Ele não me deixava ultrapassar os limites da fazenda. Havia coisas rastejando lá fora. As mesmas que mataram meu pai e que me seguiram. Elas eram mais ativas à noite, pelo que podíamos notar. De dia, elas se escondiam em buracos, dentro de sótãos ou porões de casas abandonadas ou nos galhos das árvores. O Tio dizia que elas sugam memórias. Puxam suas lembranças para fora como um super aspirador de pó e que é disso que eles se alimentam, principalmente. E que, se elas me pegassem, sugariam minha vida para fora e depois me matariam. Disse que esse era o motivo de eu não me lembrar de algumas coisas de meu passado.
Segundo ele, quando me encontrou caído entre as pedras, havia uma dessas criaturas empoleirada como um abutre em cima da minha barriga. Ele a afugentou e acertou um tiro de espingarda no dorso da coisa, que chiou e fugiu rastejando pra dentro da mata.
Talvez essa coisa ainda esteja por aí, perambulando por sob a copa das árvores com algumas de minhas memórias guardadas. Não sei como elas funcionam e, sinceramente, nem quero saber. Mas acredito nisso. Acredito que elas retenham nossas ideias e memórias. Que, com o tempo e a quantidade, adquirem inteligência.
Os primeiros dias na fazenda foram os mais difíceis.
Eu saia para colher e plantar milho de baixo do sol quente, as costas queimando e o suor escorrendo em rios por todo meu corpo. Quando manejava a enxada ou a foice, sentia os dedos e os músculos dos braços doerem, extenuados e forçados ao limite. Lavava o pouco de louça que tínhamos, pegava algumas acerolas para comer – nunca gostava de seu sabor. Mas insistia. A fome era uma amiga presente e nós só usávamos a carne da caça na janta – enquanto fazia as tarefas, separávamos algum dia da semana para limpar o poço de água. Pela tarde, enquanto eu realizava algumas das tarefas, ele saía para caçar. Pegava sua espingarda, entrava na picape vermelha e suja de terra e desaparecia, indo para algum lugar que eu nunca via. Geralmente, ele ia até a cidade e passava pelas lojas abandonadas para ver se ainda restava alguma coisa que pudesse ser aproveitada. Muitas vezes tinha. Pelo que eu entendo, quando a humanidade decidiu dar um tiro na própria cabeça, tudo foi muito rápido. Então, quase tudo sobrou e ficou por aí, pegando poeira como peças velhas em um museu.
Eu ficava de longe olhando a picape vermelha desaparecer no horizonte, o escapamento pipocando e soltando uma fumaça preta no ar. Eu queria ir lá fora. Ver como era. Às vezes – a maioria das vezes, na realidade –, quando ele saía e eu já tinha acabado as tarefas, eu me sentava em uma colina e ficava observando o pôr do sol. Sentado, me esforçava para trazer mais lembranças à tona. Eu conseguia. Lançava o anzol e a linha em algum canto vazio e esperava. Sentia fisgar, me agarrava com força na memória e a puxava. Eu era como um paleontólogo, descavando fósseis do passado, tirando sua poeira e os colocando junto dos outros, até montar um quebra-cabeça histórico.
Fiquei em dúvida se eu realmente acreditava em Deus ou se só frequentava a igreja porque era obrigado pelos meus pais. Descobri que um dia eu estava sentado no canto da garagem de nossa casa, vendo meu pai consertar o carro enquanto ouvíamos no rádio A Horse With No Name, do America. Esse fóssil veio inteiro. Os cheiros, a música e os nomes, o rosto de meu pai, o carro. Tudo. Não me lembrava da casa, nem de termos um carro, mas tudo estava lá. Vivo. E eu amei e sonhei com aquele momento vezes sem conta. Também achei minha mãe e meu pai me levando a uma loja de DVD’s e me presenteando com uma coleção de episódios dos Looney Tunes. Eu adorava o episódio do Perna-Longa no castelo do cientista louco.
Às vezes, sentado na colina, eu enxergava e construía rostos, talvez de familiares ou amigos. Embora eu nunca tivesse certeza, os guardava para mim. Por duas ou três vezes, vi em minha mente o rosto de pessoas que achei serem minha mãe, mas os descartei acreditando estar errado.
Isso dói.
Sinto como se houvesse mil vidas; centenas de caminhos que se prolongam para além da minha vista sem que, no entanto, eu consiga discernir o caminho de casa. O caminho por onde andei por toda minha vida. E isso me assombra, porque todos eles parecem caminhos corretos.
Atrás da casa onde agora morava com meu tio, havia um alçapão e, toda vez que eu, por acaso, passava em frente as portas duplas de madeira que se erguiam tão convidativas do chão, sentia vontade abri-las. No entanto, elas eram fechadas com um cadeado e ele me proibia de entrar lá. Eu não sabia o motivo, ele não me explicava e eu não questionava. Para mim, adultos eram assim. Sempre foram. Havia algo que eles não queriam que você fizesse, eles te proibiam sem explicações e ponto final. Quando eu morava com a minha família, também havia várias portas proibidas em que eu simplesmente não podia entrar.
O rock era uma delas. E, quando questionava minha mãe, ela dizia que era “coisa do demônio”, fechava a porta e pronto. Você tinha que aceitar. Afinal, era sua mãe. Também tinham certos amiguinhos – quais eles eram e seus nomes não posso dizer, porque já não me lembro, são todos máscaras em branco pra mim. Espectros sem nome ou endereço – que eu não podia visitar. Seja porque eram má influência, porque a família não era boa ou qualquer outro motivo. Outra porta fechada.
Assim, encarei aquilo com naturalidade e a mantive trancada, o que não significa que eu deixara de percebê-la. E, mesmo que eu quisesse entrar, não conseguiria. Eu não tinha a chave. Não sabia onde ele a guardava.
A noite na fazenda era assustadora. Não tínhamos energia elétrica – e, afinal, quem tinha? Estavam todos mortos e o mundo eram uma sombra do que já fora – e, dessa forma, ali, afastados de todos em uma fazenda, sem prédios e postes de luz, a escuridão era total. As estrelas brilhavam incandescentes no céu, mas, aqui em baixo, o mundo era tomado por um breu absoluto. Nós posicionávamos velas pela sala, onde passávamos a maior parte do tempo, e ficávamos ali, fazendo qualquer coisa sob as luzes bruxuleantes e fantasmagóricas das velas. No silêncio, eu ouvia o cantarolar dos insetos e o sussurrar do vento.
Em uma de suas visitas à cidade, o tio voltara com pilhas de livros na caçamba da picape.
Li e reli todos eles.
Não havia mais nada para se fazer. Tudo era um tédio e o tempo se arrastava lentamente sobre nós. Os livros, ao menos, além de me fazerem viajar para fora da fazenda, para lugares longínquos e inexplorados, me despertavam memórias e jogavam luz sobre cômodos esquecido da minha mente. Li o Velho e o Mar, torcendo para que o senhorzinho pegasse aquele peixe-espada de uma vez. Também viajei pelos Campos de Centeio com Holden Caulfield e até comecei a ler um chamado Memórias Póstumas de Brás Cubas, em que a história é contada por um defunto. Mas acho que eu não tinha idade para me importar com o que acontecia com o personagem. Havia também uma coletânea de contos de terror do Lovecraft, que me fizeram ficar apavorado com a ideia do mar. Passei alguns dias me cagando de medo de ficar sozinho na fazenda, imaginando que uma estranha criatura ancestral sairia do milharal ou do porão para me buscar. Mas o que mais me apavorou foi Frankenstein... Tenho arrepios só de pensar na cena em que o monstro abre as cortinas da cama de Victor e olha para o cientista com aqueles olhos aquosos e amarelos. Cara, esse me pegou de jeito. E eu me via no monstro. Me via em sua situação, sem saber quem era e como fui criado. Sem entender quais peças me formavam. Quais eram as memórias reais e que constituem o que sou.
Meu tio às vezes ficava pela cozinha, preparando nossa janta no forno a lenha. O cheiro nunca era dos melhores, mas era o que tínhamos. Além disso, era muito melhor do que o milho ou as frutas. A carne, por pouca que fosse, era sempre muito melhor do que qualquer outra coisa. Quando ele terminava, vinha até a sala, onde eu provavelmente estaria deitado, lendo sobre o tapete, batia levemente na moldura da porta e falava, com um jeito curto, mas amigável:
“— Anda, garoto — era assim que ele me chamava: garoto. Porque eu não me lembrava do meu nome. — Já tá tudo pronto. Vamos comer.”
E eu ia.
Nós rezávamos antes de comer. Não porque ele era religioso, mas porque eu queria. Me fazia bem, e ele não se importava. Sei que minha família fazia isso todos os dias. Ou só no domingo? Já não sei... Eu agradecia e, quando terminava, nós comíamos. Era sempre algum tipo de ensopado de carne com legumes. Sempre rendia mais dessa forma, e alimentava bem. Eu esvaziava a tigela e raspava o fundo. A carne costumava ser dura e borrachuda, mas eu nunca deixava sobrar nem um pedaço. Se não fosse ela, o gosto de tudo seria simplesmente intragável.
Enquanto eu comia, ele olhava lá para fora, pela janela na sala:
“— Acho que hoje vai ser uma noite difícil, garoto. Parece que vai chover. Temos que ter cuidado, ouviu?”
Eu assenti, sem nem olhar para ele. Eu gostava dele. Gostava mesmo. Depois de um ano de convivência, nós nos tornamos uma família, nos virando como podíamos, embora nenhum de nós fizesse menção a qualquer tipo de palavras afetuosas. Eu tinha consciência disso. E acho que ele também.
Para ser sincero, vendo agora, sei que ele gostava pra cacete de mim. Me via como um filho.
Ele sempre me dizia para ter cuidado com tudo. Falava que em dias de chuva as coisas corriam pra buscar abrigo. Mas eu não dava bola. Só as tinha visto uma vez, me seguindo e na vaga lembrança que tinha de meu pai morrendo. Não tinha medo.
Mas tudo tem sua primeira vez. E aquela noite foi a primeira de muitas.
“— Tá tudo bem, Tio — eu falei enquanto raspava com a colher o fundo da tigela. — Você tem aquela sua espingarda. E se você me deixasse ter uma também....”
Ele bufou e se levantou. Pegou sua tigela e a minha e as levou para a cozinha.
“— Já disse que essa hora vai chegar, garoto. Enquanto isso, se contenta em colher milho.”
Nós então apagamos as velas, pegamos nossas lanternas e subimos. Havia quatro quartos lá em cima. Eu dormia no último da esquerda, ao fundo do corredor. Ele dormia no ao lado do meu. Nos demos boa noite e fomos dormir.
Mas eu acordei de madrugada. Precisava desesperadamente mijar.
Peguei a lanterna que eu deixara no móvel ao lado da cama e, na ponta dos pés, atravessei o quarto. Chovia lá fora. Muito. O mundo parecia cair. As vidraças balançavam na moldura, chacoalhando sob o vento forte. A casa estalava e o vento assobiava, deslizando pelos buracos. Os cômodos escuros adquiriam um tom azulado de eletricidade quando a luz de um relâmpago invadia pelas janelas.
Tinha um banheiro no segundo andar, ao lado do terceiro quarto. Corri para ele no escuro, apenas com a lanterna para me ajudar. Fechei a porta. O som de chiado da chuva ficou abafado, e o ribombar dos trovões, explodindo sobre nossas cabeças, distante. Apoiei a lanterna sobre o tanque do vaso e fiz xixi, tomando o cuidado para acertar a água no escuro.
Quando terminei, olhei lá para fora pela janela do banheiro. Estava um caos. A grama e as plantações balançavam de um lado para o outro sob a escuridão, como sombras dançantes. De vez em quando, um relâmpago explodia no céu e lançava uma luz momentânea e elétrica sobre as coisas. Foi em um desses momentos em que vi aquela coisa lá fora.
Estava no pequeno depósito que ficava ao lado da casa. Quando a luz do relâmpago se irradiou sobre a construção, pude ver o contorno de algo rastejando pela parede molhada do depósito, como uma contorcida lagartixa humana. Foi só por um momento e, quando o próximo relâmpago surgiu, ela já não estava mais lá, havia rastejado para algum outro lugar.
Com a curiosidade e o medo de uma criança, abri a porta do banheiro e desci com rapidez silenciosa as escadas e fui até a sala. Meu coração palpitava forte e meu corpo tremia. Se eu tivesse de falar, não conseguiria. Minha garganta estava entalada.
Corri pela sala, desliguei a lanterna e me debrucei sobre o vidro da janela fechada para olhar lá fora. Fiquei alguns minutos ali, capturado pela luz da tempestade. Preso em minha própria tensão e, por algum motivo, sem conseguir me mover para sair dali, apesar de sentir muito medo. Talvez fosse a maneira hipnótica como a curiosidade capta as crianças. Só sei que fiquei ali, encarando o depósito, sem encontrar nada.
Foi quando ouvi um barulho.
Alguma coisa estalou e, por baixo da chuva, eu tive a impressão de ouvir sussurros e gemidos vindo de baixo de mim, se é que isso era possível. Olhei para trás, sentindo um arrepio percorrer meu corpo, mas não havia nada ali. A sala estava vazia, mergulhada em sombras. Voltei meus olhos para a janela e mexi a cabeça contra o vidro para procurar outros ângulos. Olhei para frente e algo invadiu meu campo de visão. Não lá no depósito. Mas em cima. Em cima da janela por onde eu olhava. No primeiro momento, vi apenas uma sombra com o canto superior do olho direito. Fiquei travado, angustiado demais para me mover.
Tomei coragem e olhei para cima.
Uma sombra me olhava, pendurada na janela pelo lado de fora.
Outra vez, um relâmpago estourou e um raio espocou a terra como um tridente azul brilhante. A luz iluminou a sombra que me olhava do outro lado e eu pude ver suas feições molhadas e gotejantes pela chuva que despencava sobre ela. Meu coração parou no mesmo instante.
Não gritei.
Cambaleei para trás, desesperado para fugir para longe daquela coisa que me observava com assustador interesse. Seus olhos eram grandes e vidrados, afundados na cavidade mal iluminada que era aquele rosto sombrio. A boca era uma linga fina e retesada. O resto de seu corpo estava escondido por trás da moldura, pendurado de alguma forma na parede exterior da casa. Era muito parecido com um ser humano em aparência – bem, um humano molhado de chuva e com olhos intensos e ávidos, desgrenhado e fustigado pelo vento –, porém, em matéria do que se escondia por trás dos olhos abertos, não havia humanidade alguma. Eram famintos e destituídos de inteligência. Onde eu esperava encontrar compreensão e reconhecimento, havia apenas instinto. Eram olhos que me enxergavam apenas como um pedaço de carne.
Olhos que observavam através de mim.
Retomei o pouco de controle e corri para cima, mantendo a calma para não gritar. Entrei com tudo no quarto daquele que chamava de tio e o chacoalhei na cama. Ele se levantou assustado, já tateando no escuro em busca de sua espingarda:
“— Lá em baixo, lá em baixo, tio... — eu falava, quase chorando e com a garganta embargada. — Tem uma daquelas coisas lá fora! Ele me viu!”
A esse ponto, ele já empunhava a espingarda carregada e destravada. Tinha vestido sua capa de chuva amarela.
Nós descemos a escada, ele na frente, mirando com a arma e eu atrás, iluminando o caminho com a lanterna, cada degrau rangendo à medida que avançávamos. Passamos pela sala e eu mostrei a ele a janela por onde havia visto a coisa rastejar. Ele olhou para fora, para o depósito, para baixo e cima da janela, mas não encontrou nada.
“— Garoto, pega uma faca na cozinha.”
Ele falou e eu obedeci. Fui até a cozinha e voltei com uma faca de cortar carne na mão direita.
“— Muito bem — ele falou, se aproximando de mim. — Escute bem. Se o que você falou é verdade, nós vamos ter que ir lá fora, ou ele vai pegar toda nossa carne e nosso estoque. Tá me entendendo? Ei. Você vai ter que ser forte, tudo bem? Você consegue?”
Eu respondi que sim com a cabeça.
“— Ótimo. Vamos lá.”
Ele apertou meu ombro com gentileza, destrancou a porta da frente e saiu. Eu o segui de perto, uma das mãos iluminando o caminho e a outra pronta para se algo me atacasse.
A chuva ainda caía forte e, do lado de fora, o chiado e os trovões eram muito mais altos. Fechei a porta atrás de mim e o segui. O vento lançava nossas roupas para trás e atrapalhava nossa visão. De alguma forma, ele parecia saber aonde ir. Começamos a dar a volta na casa. Através da chuva, consegui ouvir um murmurar estranho, como se alguém resmungasse. Havia também um som de metal balançando.
Com os cabelos molhados, ele olhou para mim, levou o dedo em riste à boca e fez sinal de silêncio. Eu assenti e continuei. Já havia entendido onde estávamos indo. Íamos na direção do porão. E, quando viramos a esquina, ali estava ele. A porta dupla estava fechada, intacta como sempre esteve, mas alguém (alguma coisa) a forçava. Balançando com raiva o cadeado, a criatura que eu havia visto na janela tentava arrebentar e invadir o porão. Era grande, as pernas longas e magras, assim como os braços. E as mãos acabavam em dedos longos e curvados, como finos galhos de uma árvore seca. Estava curvada, arranhando e batendo no cadeado. Quando nos viu, virou-se para nós com aqueles olhos grandes e soltou um guincho horrível, mas não nos atacou. Não estava feliz com a nossa presença. No entanto, não houve ataque.
Não entendi o motivo na hora. O tio vivia dizendo que eles atacavam tudo que viam pela frente. Mas aquele não fez isso. Estava focado em sua tarefa e eu imaginei que era ali então que ele guardava a carne da caça. Mas eu estava apavorado. Apesar de ter ido ao banheiro alguns minutos antes, quase me mijei nas calças, temendo que ele roubasse as poucas memórias que eu já tinha.
Acho até que me mijei mesmo.
Me empurrando um pouco para trás, o tio levantou a espingarda e mirou na criatura, que nem parecia mais reparar no fato de estarmos ali. Ele atirou. Houve um clarão e houve um estrondo. O cheiro de pólvora dançou sutilmente no ar, mas foi logo levado pelo vento. A chuva voltou a tampar nossos ouvidos com seu chiado.
O tiro pegou no braço da coisa, um pouco abaixo do ombro e, com um movimento extremamente rápido, ela saltou em cima do velho. Fiquei sem reação enquanto os dois lutavam na grama molhada. As patas do bicho balançavam a arranhavam o rosto marcado de rugas do homem. Ele resmungava e falava para eu usar a faca. Com medo, comecei a me aproximar devagar, encolhido de pavor. Porém, logo tomei coragem e corri. Investi contra a cabeça daquilo, enfiando a faca bem na bochecha branca. Ela largou o homem e contorceu-se para trás, erguendo as costas e guinchando outra vez, agora de um modo mais perturbador e louco.
Ela olhou para mim.
Arranhado e sujo de terra, o homem se levantou e recuou enquanto a criatura gritava. Depois de um tempo, ela logo caiu, se debateu por um tempo e morreu.
“— Essa foi por pouco, garoto — ele falou, arfando e fazendo caretas de dor. — Amanhã a gente decide o que fazer com o corpo”
No entanto, quando acordei no outro dia de manhã e a chuva já havia parado, ele já tinha cuidado do corpo.
Aquela noite foi a primeira vez em que eu vi um daqueles de perto. E a primeira onde as dúvidas começaram a me invadir por todos os lados, como no casco de uma canoa cheio de furos. Por que ele não nos atacara? Ao menos não logo de cara. E, pelo que ele me havia contado, aquelas criaturas comiam apenas carne humana. Eventualmente algum animal aparecia mordido ou comido, mas era exceção. O que aquele em específico queria no porão? Talvez apenas um abrigo ou tivesse sentido o cheiro da carne, eu pensei.
Foi então que eu decidi descer lá.
Depois de um ano e alguns meses morando com ele, desci pela primeira e última vez naquele porão.
É difícil para mim relatar estes eventos, mesmo depois de anos de distância. O mundo continua o mesmo. As mesmas criaturas – como aquela que vimos na madrugada tempestuosa tentando invadir o porão – continuam rastejando, deslizando e se escondendo por aí. Sair é um perigo e, se vi 3 seres humanos durante esses anos que não estive na fazenda, foi muito. Tremo a cada letra que escrevo. Por duas vezes já abandonei esse diário surrado. Todas as noites, quando me deito para dormir, me pergunto qual o sentido disso tudo. Ninguém jamais o lerá. Não há quem possa lê-lo. Eu queria conversar. Falar com alguém. Mas...
Acho que escrevo para libertar-me disso. Aplacar o que sinto. E porquê... porque quero me lembrar.
De alguma forma, quero me lembrar.
Afinal, me restaram tão poucas coisas. Meus pais são apenas gravuras desbotadas, que desaparecem cada vez mais, deixando em minha memória apenas um sentimento. Não consigo me lembrar do rosto de minha mãe; de seus olhos; de seu sorriso. Não conseguiria nem mesmo dizer a cor de seu cabelo ou como era sua voz. O mesmo ocorre com meu pai. Como já relatei antes, tenho alguns flashs de memórias. E, na maioria dos casos, não são memórias inteiras, como um rolo de filme gravado. São muito mais... sensações; ideias.
E os detalhes são sempre diferentes. As cores mudam.
Nas noites em que passo em um apartamento abandonado, uma loja empoeirada ou qualquer outro lugar, quando me deito no chão duro para, em vão, tentar dormir, choro como uma criança. Como a criança que era naquela fazenda, porque é dessa que me recordo. Vagueio pelos recônditos de minha mente, mas tudo que encontro são cômodos vazios. Deitado e sentindo frio eu choro. Sentindo saudades de algo que nem sei se vivi. Amo minha mãe. Sei disso. Mas só consigo amar uma ideia e o sentimento de nostalgia, porque dela, não consigo mais m...
***
Precisei de um tempo para continuar. Aquela noite foi... difícil de escrever.
Bem, vou continuar.
Era uma madrugada quente, apenas dois dias após o incidente em que nós matamos a coisa. Esperei bastante tempo na cama, até ter certeza de que o homem que cuidara de mim durante esse tempo estava dormindo. Quando tive certeza, peguei minha lanterna, joguei luz de baixo da minha cama, enfiei meu braço pelo espaço e peguei a chave enferrujada. Eu tinha visto ele a deixando no alto de um armário ainda de tardezinha e, quando ele foi fazer outras coisas, corri e a peguei. Deixei-a guardada o dia inteiro sob a minha cama. Agora, estava em minhas mãos e, Deus do céu, eu tremia feito um chocalho.
Desci as escadas na ponta dos pés, atravessei a cozinha e sai pela porta dos fundos. Era um daqueles dias de verão onde tudo parece paralisado, como se o próprio ar tivesse estancado. Ao longe uma cigarra (era esse o nome?) cantava junto dos grilos. Eu estava com medo de muitas coisas. Temia que ele acordasse e me visse abrindo o porão; também tinha medo que uma daquelas coisas aparecesse de novo e me pegasse.
Meu Deus, eu só tinha 15 anos!
Pisando descalço na grama fofa, dei a volta na casa, exatamente como fizemos daquela vez, só que agora vindo da cozinha. Para o meu alívio, não havia monstro algum parado ali.
Então eu me abaixei, peguei a chave do bolso e, tremendo e suando, destranquei o porão. O cadeado caiu na grama. Eu fiquei um tempo olhando para a porta dupla de madeira. Finalmente, estiquei os braços e puxei as duas abas.
Assustado, olhei lá para baixo.
Uma escada gasta descia até a escuridão. No mesmo instante, um cheiro de carne e podridão subiu no ar quente da noite.
Domando o medo, respirei fundo e comecei a descer.
Meus passos ecoavam nos degraus e ressoavam pelo porão. As paredes e o chão eram de cimento, fazendo com que a projeção dos sons adquirisse um ar cavernoso e ecoante. Era muito escuro lá em baixo. Não enxergava nada além de mim mesmo. Acho que fiquei tão aterrorizado com a atmosfera do local, com o que eu estava fazendo e com o cheiro dali que não me lembrei de ligar a lanterna. Fui apenas caminhando a esmo, adentrando aquelas trevas que se erguiam imponentes e densas diante de mim.
Dei de cara com alguma coisa.
Houve um som metalizado de correntes e alguma coisa balançou a minha frente. Me aproximei ainda mais, ficando colado, e vi que era carne pendurada no teto por um gancho. Aquilo não me assustou. Eu suspeitava que ele guardava a carne da caça ali.
O problema é que eu estava errado.
Não sobre a caça.
Continuei andando e, finalmente, dei de encontro com uma porta de ferro. Sem hesitar, coloquei as duas mãos sobre a válvula que havia em seu centro e a girei, destravando-a e a fazendo deslizar para trás. Houve um rangido de ferro enferrujado.
Não era possível enxergar nada lá dentro. Tudo era preto.
Foi quando algo acariciou um de meus pés. Eu titubeei para trás e, lá de dentro, ouvi gemidos vindos da escuridão. Respirando rápido, tateei o bolso em busca da lanterna. Encontrei seu cabo, puxei e apontei para baixo, onde estavam meus pés.
Havia um homem ali. Ou o que restara dele.
Era quase um esqueleto vivo de tão magro e, do chão, ele segurou meu calcanhar com uma força que não seria capaz de esmagar nem mesmo um inseto e olhou para mim, pedindo socorro com os olhos.
Ele gemia, e sua boca se abria, tentando formar frases, mas sem conseguir.
Agora ciente do que causava o barulho, apontei para o resto da sala, revelando o abominável festim que se escondia na escuridão.
Havia outros ali.
Tão magros quanto aquele que se rastejava aos meus pés. Alguns estavam de pé, e seus olhos aterrorizados e brilhantes me encaravam com pavor. Eram coisas curvadas e esqueléticas, destituídas de qualquer carne ou humanidade. Mas eram humanos. Ou foram um dia. Outros, por sua vez, estavam jogados pelos cantos, encolhidos e chorando.
Senti cheiro de fezes e urina.
Um dos homens que estava em pé, quando viu que eu não era seu algoz, arregalou os olhos e cambaleou até mim. Vi aqueles olhos cavados na face profunda, os lábios finos se contorcendo em uma semi-fala e me desesperei. O cheiro que pairava no ar me dava náuseas. E os gemidos, pelo amor de Deus, os gemidos saiam daquela tumba em ondas palpáveis de horror.
Me desesperei e sai correndo.
Era um sentimento de criança; infantil. Queria tirar aquilo da minha frente, aquela imagem. Apagá-la. Fazê-la desaparecer. Esquecer-me dela. Então corri. Corri para longe da fazenda, sabendo que a comida que comi – e sabe-se lá mais o quê – durante mais de um ano era fruto de um ato profano.
Vomitei no caminho, mas não parei de correr.
***
Sobrevivi sozinho desde então, mas a imagem do dia em que abri pela primeira vez aquele portão ainda assombra minhas noites. Penso no que aconteceu com aquelas pessoas, quando sai, correndo desvairado, deixando aquela porta aberta atrás de mim. Também penso no que aconteceu com o velho, que me alimentou com...
Estou escondido agora.
O que mais me aterroriza é não saber... não saber se as memórias que tenho são de fato minhas. Rezo pelo Deus que acreditava temer durante toda minha vida para que elas sejam. Porque... Porque se não forem...
Não sei se posso suportar.
Acho que não posso continuar.
Além disso, tantas outras surgiram nesse meio tempo em que estive... vagando por aí...
Eu sinto tanta fome. Como o que encontro, mas nada me satisfaz. A fome persiste, como se ela não pudesse ser apaziguada.
Deus do céu, eu sinto tanta, mas tanta, fome...
Gracias por leer!
Podemos mantener a Inkspired gratis al mostrar publicidad a nuestras visitas. Por favor, apóyanos poniendo en “lista blanca” o desactivando tu AdBlocker (bloqueador de publicidad).
Después de hacerlo, por favor recarga el sitio web para continuar utilizando Inkspired normalmente.