Você era só uma criança quando as coisas começaram a ficar ruins.
Jovem demais para entender bem o que estava acontecendo, mas um pouco da cautela de seus pais acabava passando para você. Nenhum de seus colegas se comportavam daquela maneira, e se lhe perguntassem, não saberia explicar seus motivos ainda. Tudo o que sabia era que, à noite, entre os braços de sua mãe, vocês observavam a rua quase deserta exceto pelos homens armados patrulhando o lugar. Não conversavam muito. Com as luzes apagadas e o silêncio vigilante, era como um daqueles filmes de ação, mas seus personagens não tinham importância, eram aqueles no canto da tela que apenas existiam para que um outro alguém se levantasse como um herói. Nos primeiros dias parecia um daqueles filmes, e você queria ver o herói surgir. Depois começou a entender que sua família não estava protegida por uma tela de televisão, e as noites que sua mãe passava em vigília na varanda eram porque ela queria ver seu pai voltar.
Obviamente, as coisas não mudaram de um dia para o outro, e aquelas memórias da infância traduziam apenas a existência de um grupo testando limites, testando quanto caos poderiam provocar antes que as ações atraíssem consequências. Aquele primeiro ato foi durante a pandemia, aproveitando da desordem e preocupações com o vírus, e durou pouco mais que um mês. Então deixaram a ostensividade de lado e se recolheram novamente sob a máscara discreta dos bons cidadãos. Crianças como você esqueceram o acontecido, seus pais não. Eles assistiam estarrecidos às notícias. Milícias nacionalistas e invasões ao STF, o sequestro total de três cidades do interior durante uma noite. Acusações, ameaças e perseguições contra a oposição de seus ideais. Um grupo testando limites, testando o que podiam fazer antes que o governo precisasse discipliná-los, e descobriram que era bastante coisa se atacassem nos locais certos, aqueles que raramente alguém se preocupava em defender.
Você já era um pouco maior quando voltaram pra valer, com o governo reeleito ao qual eles associavam muitos de seus valores. Seus ideais, os corretos, os morais. Os ataques aconteceram primeiro em regiões precárias, frágeis, onde poderiam crescer em área sem que a população percebesse, pois um ataque a um bairro nobre da capital chamava muito mais atenção do que bairros marginalizados inteiros sofrendo em terror. Era a revolta da nação brasileira exigindo novas leis que a guiassem pelo caminho certo, diziam aqueles com as armas, e aqueles sem elas não ousaram contradizer. O presidente não aceitou o acordo com os terroristas de primeira. Ele precisava aparentar resistir ao caos como se não fizesse parte dele, como se não o agradasse ver o pouco esforço que precisaria fazer para manter aquele caos, já que parte da população também o desejava. Os terroristas lhe deram o ponto de virada perfeito. E quando os ataques pioraram, ele veio a público anunciar que, apesar de ter lutado e resistido contra aquelas milícias, pelo bem da população acataria seus termos. Os terroristas desapareceram milagrosamente, abrindo espaço para o Novo Governo. Exatamente igual ao velho, só que sem máscara. O povo lutando pelo direito de serem cerceados como gado em uma criação.
As primeiras mudanças foram discretas. Você ainda lembra de quando sua mãe voltou para casa com uma expressão incrédula no rosto e todas aquelas caixas cheias de livros no carro, porque tinham fechado a biblioteca, e de jeito algum ela poderia confiar os livros a um destino incerto. O país estava redefinindo suas prioridades, cortando gastos, eliminando cargos em diferentes áreas. Bibliotecas fechadas, pesquisas e projetos científicos cancelados, cursos e matérias apagados das ofertas nas universidades públicas. Os fundos seriam redistribuídos para o que realmente importava, “segurança”, nada mais do que a espionagem da população, e “desenvolvimento”, na forma de tecnologias bélicas e de controle. Como se pudesse existir desenvolvimento real em uma nação ignorante. Jornalistas como o seu pai também foram os primeiros a sentir na pele, às vezes sendo silenciados de forma descarada, às vezes sendo tão desacreditados por escândalos falsos de origem incerta que ninguém daria atenção ao que escreviam, e quanto mais denunciavam, menos credibilidade tinham. E uma vez instaurado, quando o poder mudou para mãos mais competentes, mas não menos cruéis, as mudanças maiores chegaram, porém não tinha ninguém para denunciá-las e muito menos para ouvi-las. Era o “Ministério da Verdade” agindo diante de todos, mas estava tudo bem, porque era a verdade deles.
Houve uma época em que disseram que não havia nada a temer, mas sempre há perigo em dar palco para ideias como aquelas, em assistir inerte enquanto políticos flertam com autoritarismos do passado, confiando o futuro à própria sorte. O povo é uma terra fértil para ambos os lados, as raízes do autoritarismo sempre encontrarão onde crescer. E isso lhe lembra de um livro que hoje você não pode mais ler, sobre o perigo da loucura dos grandes. Porque todos são loucos, os grandes e os pequenos, mas permitir um louco no poder dá aos outros a confiança de que estão lúcidos.
E você já esperava ter de lutar contra aqueles de cima, mas lutar contra as pessoas ao seu lado, vizinhos, colegas, amigos, era uma surpresa decepcionante. Revoltante e triste ao mesmo tempo, e extremamente cansativo.
Você sente falta daquele livro e de muitos outros que também foram recolhidos.
“Material subversivo.”
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O homem no canto do bar grita por outra rodada e lhe tira de seus pensamentos melancólicos sobre os últimos 20 anos. Você sabe que ele não está bêbado de verdade e nem deseja ficar, mas serve um copo de algo que apenas parece alcoólico. Marcos é uma presença ocasional, quase todo mês está na sua frente, e apesar de você não ser muito gentil com ele, sempre divaga sobre o tipo de imprevistos que devem ter acontecido quando ele passa muito tempo sem aparecer.
Você sente falta de quando as pessoas não desapareciam. Como seu pai e seu irmão, sem vestígios, mas sempre depois de algum ato considerado incivil. Agora você sente conforto ao rever alguém que mal conhece, apenas porque a presença dele mostra que nem tudo pode ser controlado. Ou ele também seria só mais um fantasma a lhe assombrar.
O sorriso que Marcos lhe dá parece genuíno, apenas uma provocação de um bêbado ou uma cantada, não daria para discernir, mas você sabe que significa apenas uma conversa no final, quando os outros clientes já tiverem saído. Uma conversa previsível, sempre um punhado de informações e um convite. Você sempre aceita um, mas não o outro. Ainda não. Mas hoje talvez você o surpreenda.
O movimento está rareando, finalmente. Apesar do relógio analógico na parede estar parado, você sabe que faltam apenas alguns minutos antes do toque de recolher. Os ponteiros congelados entre os números 5 e 6 apontando para a parede lisa logo abaixo como se indicassem um segredo. Aquele lugar era construído em segredos e abrigava mais alguns. Você sente uma ponta de apreensão pensando nas duas crianças no apartamento sobre o bar, e torce para que não façam barulho até que estejam apenas você e Marcos no lugar. O último cliente sai, Marcos se aproxima sem perder tempo, chamando-lhe pelo nome que ele conhece:
– Pacem.
Você sente falta de ouvir seu nome real. O apelido vem da frase no seu pulso, tirada de um livro que leu há muito tempo. Si vis pacem. A tatuagem foi feita anos antes, mas era estranha e deslocada no país de agora, então você costuma escondê-la. O apelido ficou de forma que mesmo pessoas que não sabiam sobre a frase lhe chamavam assim.
As crianças descem a escada, filhas de um daqueles fantasmas desaparecidos. Marcos iria tirá-las da cidade, mas quem sabe o que aconteceria depois? Não estariam seguras enquanto não passassem pelas fronteiras. Filhos eram um trunfo do governo contra aqueles fantasmas. Crianças eram torturadas para obter informações de seus pais, e mesmo que você nunca tenha sido uma pessoa envolvida naquelas batalhas urbanas e quase, quase, invisíveis, não poderia fechar os olhos para isso.
Nenhum de vocês possui celular ou qualquer aparelho que possa ser monitorado, mas ainda preferem conversar em voz baixa. Sem celulares, redes sociais, sem rastros, você é uma dessas pessoas que preferem não ser vistas. É uma escolha sua, mesmo que sempre seja vista com desconfiança. Se ocultar pode lhe manter fora do radar, mas também lhe impede de arranjar empregos formais, matricular-se em cursos públicos ou contratar alguns serviços. Marcos lhe conta pouco dos movimentos dos militares, apenas o bastante para que continue em segurança tanto quanto possível, mas ele não lhe confia mais do que essas migalhas de informação. Afinal, você nunca quis ser parte da luta, sempre negando o convite dele. Dessa vez, você o surpreende.
Você diz que quer entrar.
Marcos lhe olha com curiosidade. Você sempre foi só uma pessoa normal. Não era de organizar atos ou pegar em armas, não, isso era coisa do seu irmão.
– O que fez você mudar de ideia?
Uma vez, você conversou com seu pai sobre como gostaria de ser uma das pessoas de coragem a lutar pelo que era certo, mas que pensava que o medo lhe impediria. Ele disse que todas as pessoas pensavam igual. Ninguém luta apenas por coragem. As pessoas lutam porque algo foi tirado delas e elas querem de volta. Seja liberdade ou justiça por entes perdidos. Você deseja paz. Deseja voltar para quando podia ler os livros que quisesse e terminar sua licenciatura, voltar para quando as pessoas não desapareciam e vidas inteiras não eram destruídas como as folhas rasgadas da Constituição. Antes de descobrir que o escudo do povo é feito de papel.
Você queria paz. E se precisasse ir à guerra por isso, então que fosse. Era como a frase em seu pulso. Si vis pacem…
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Os anos seguintes foram ainda mais difíceis. Mesmo que soubesse de todas as coisas grotescas cometidas pelos militares, antes você estava distante. Fechar os olhos permitia que anestesiasse a revolta por alguns instantes, então você respirava fundo algumas vezes e voltava a viver. Era diferente de estar no meio de tudo. De conhecer outras pessoas a mesma situação e saber que podia perdê-las a qualquer momento. Não, não era afeto o que você tinha por elas, afinal, mal se conheciam, mas faziam parte do mesmo grupo resistindo pelos mesmos ideais. Era uma dor diferente cada vez que perdiam alguém. Algo que minava a determinação e a força que tinham. Você tinha raiva das pessoas que tornaram a vida tão difícil. Não apenas daqueles que estavam no comando, mas de cada um de seus vizinhos e conhecidos que sorriam para a violência legitimada dos militares, tão institucionalizada naquele novo país que seria impossível imaginar a vida sem ela na rotina. “As coisas são assim, vai fazer o que?” você ouviu alguém dizer.
Seu bar tornou-se um ponto de triagem. Você escondia pessoas, redistribuía armas e dinheiro. Com toques de ironia, Marcos o rebatizou como Parabellum.
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Os anos de planejamento recompensaram, mas demora alguns dias para que você entenda que finalmente venceram.
Venceram. Venceram. Vocês venceram.
É estranho demais para compreender de imediato. Você não pensou que veria o “depois do fim”. Lutava porque a alternativa seria aceitar, mas nunca pensou que veria uma nação livre de novo.
Você para na frente da parede com o relógio, o relógio parado cujos ponteiros marcavam o segredo escondido em Parabellum. Marcos pergunta o que você vai fazer agora. Você sorri e estende a mão para receber o martelo que ele segurava. E pela primeira vez, você diz a ele seu nome de verdade.
As marteladas ecoam pelo bar vazio enquanto pedaços inteiros desprendiam da parede para o chão. Você passou anos querendo fazer isso. Por causa da sua mãe. Por causa do seu pai.
Marcos não disfarça a risada quando a parede começa a revelar lombadas de livros protegidos das pessoas e do tempo. Uma pena que precisaram ser escondidos, afinal, livros não cumprem seu papel longe dos olhos alheios. Mas agora voltaram à luz e alcançarão muitas pessoas, você vai garantir isso.
Porque sabe que não acabou totalmente. O risco nunca desaparece, pois sabe que o que aconteceu durante esses anos já tinha acontecido antes, mas as pessoas esqueceram. Esqueceriam de novo, se permitissem. Você não permitiria.
Você diz a seus filhos como aqueles anos foram ruins. Diz sobre como as pessoas desapareciam sem julgamentos, suas crianças sendo torturadas. Mas sabe que em outra casa, na mesma rua, alguém diz aos filhos que tudo estava bem. Que aquela época é que era boa, quando as pessoas andavam na linha, e que era assim mesmo que “criminosos” deveriam ser tratados.
Você diz a seus filhos todas as coisas que aconteceram, e sabe que essa é a segunda parte da luta. A parte que nunca acaba. Lembrar do passado para garantir o futuro.
Gracias por leer!
Com uma narrativa imersiva que envolve o leitor do começo ao fim, Si vis Pacem nos faz encarnar o personagem principal da trama em um Brasil distópico que nos remete aos tempos da ditadura. A autora desenvolve sua obra com maestria, de modo que é impossível não encarnamos o papel de protagonista e nos vermos dentro dos cenários. Com muito mérito, leva o primeiro lugar no desafio #DistopiaBR.
Si Vis Pacem possui uma narrativa envolvente, que nos insere dentro da trama. Com o decorrer da leitura, conseguimos nos sentir parte integral da história e nos vemos devorando a escrita para descobrir o desfecho da história. É um conto que nos faz refletir sobre o passado, o presente e o futuro.
Além de fascinante, intrigante! Si Vis Pacem, indiretamente, nos comprova que já estamos encaminhando para uma distopia (ou já vivendo em uma). Quanto tempo falta para que nossa realidade se mescle com a desta história? Com uma narrativa e ortografia impecáveis, a trama aqui se desenrola de uma forma incomum, mas que nos trás um misto de sentimentos gigantesco!
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