Só quero dizer em primeiro lugar que a Embaixada está de parabéns com esse Desafio!
Foi bem difícil escrevê-lo, digo no sentido psicológico mesmo. Tentei escrever o mais rápido que pude, não por falta de tempo, mas apenas pela história abordar assuntos muito delicados num momento como esse que vivemos...
Talvez a fala que melhor descreva meus sentimentos sobre essa história fictícia seja a de uma personagem histórica de época mais recente:
“Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.”
E lembrem-se: a) qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência; b) o autor não se responsabiliza por interpretações equivocadas dos leitores nem pela captação de falsas referências existentes ao longo da narrativa.
P.S.: cuidado com o Centro Nacional de Terapia Intensiva para Transtornos Mentais, eu soube que eles estão sempre de olho por aí.
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“Ele era um monstro. E agora ele não é mais um monstro. Ele está morto.” – Donald J. Trump
“O meu nome é Messias, mas eu não tenho como fazer milagre.”
Riaj Basonloor empinou o nariz e aprumou os ombros caídos (não que isso fosse deixar sua barriguinha sobressalente mais agradável aos olhos de um público para o qual ele não dava a mínima), amassou o pedaço de papel onde um assessor escreveu algumas frases de efeito (RÁ! Como se ele precisasse daquilo...) e arremessou-o num cesto de lixo: os pés, joelhos e pulsos posicionados como um perfeito jogador de basquete – ele sempre foi considerado o atleta de melhor condicionamento físico no Exército Brasileiro. O papel girou inúmeras vezes no ar, Riaj foi alargando os lábios num sorriso, a bolinha quicou na borda do cesto, percorreu o aro algumas vezes. Riaj fechou as mãos já comemorando o ponto com aquela torcida existente apenas nos seus mais loucos sonhos...!
E de repente, o assessor que ele não sabia o nome abriu a porta abruptamente e o chamou:
– A equipe já está pronta, senhor Presidente.
A bolinha rolou pelo aro por mais um segundo e caiu para fora do cesto. Riaj Basonloor olhou com uma raiva contida para o pedaço de papel e para o assessor estúpido:
– Se alguém perguntar, fui eu que fiz o ponto.
O presidente passou pela porta e deu um tapinha no ombro do Assessor-Sem-Nome que piscou algumas vezes meio desnorteado, até que ele mirou o papel amassado, o cesto de lixo, a posição onde estava o presidente antes de se retirar para a reunião e somou dois mais dois. Então, encarou os pés constrangido, sem saber de fato se o constrangimento vinha do lixo fora do cesto, da constante aprovação que o presidente necessitava possuir diariamente ou do simples fato de que ele – o Assessor-Sem-Nome – era o assessor daquela figura de alto (quiçá um pouco baixo) poder.
“Com o passar do tempo, com as liberalidades, as drogas e as mulheres trabalhando, aumentou bastante o número de homossexuais.”
A sala era grande e decorada com uns quadros de arte duvidosa – ou como diria Basonloor nas suas redes sociais: arte de bosta, provavelmente feita por bichas –, umas plantas de plástico que refletiam as luzes brancas artificiais e uma mesa grande, larga e oval.
Todas as cadeiras estavam devidamente preenchidas com...pessoas? Claro que não. O presidente não precisava de pessoas como fiéis subordinados, bastavam mesmo os robôs prontamente programados pela startup VIDA, cujo sócio majoritário era o filho mais velho da família Basonloor, mas esse era só um pequeno, minúsculo, irrelevante detalhe.
Quando Riaj abriu a porta com um sorriso mecânico e viu que Júlio não estava na sala, um Filho da p* inútil saiu de seus lábios murchos, mas os robôs não pensaram duas vezes antes de cumprimenta-lo:
– Bom dia, senhor Presidente Basonloor, como vai?
Riaj rolou os olhos e puxou a cadeira da ponta da mesa para se sentar. Não se dignou a responder.
– Bom dia, senhor Presidente Basonloor, como vai?
Ele cobriu a boca amarga com uma mão e continuou a ignorar o coro robótico amigável. Não demorou muito para que ele começasse a mexer o joelho de ansiedade.
– Bom dia, senhor Presidente Basonloor, como vai?
Bufou ruidosamente como faria um exímio búfalo (se bem que, em conversa com especialistas, o uso do comparativo é uma afronta a esses animais):
– Tudo em cima.
– Desculpe, senhor Presidente Basonloor, mas não entendo o que diz. Bom dia, senhor Presidente Basonloor, como vai?
– Isso só pode ser piada... – Riaj levantou-se da cadeira, quase derrubando-a e segurou o robô mais perto dele, procurando o botão de desliga.
Durante a exaustiva busca, Júlio, o diretor de tecnologia da startup entrou na sala, logo se desculpando. Mas Riaj ignorou o pedido em meio ao coro incessante de robôs dando Bons dias e não entendendo os xingamentos do presidente.
– Como é que se desliga essa porcaria? Hein! Vocês falaram que essa merda era inteligente? Já tenho um bando de íngua no meu governo e a gente estipulou no contrato que eu não queria íngua nenhuma mais na cara.
– Desculpe, senhor Presidente Basonloor, mas não entendo o que diz. Bom dia, senhor Presidente Basonloor, como vai?
Júlio colocou o tablet na mesa e sorriu temeroso, afrouxando o colarinho. Ele se lembrava muito bem da transcrição do contrato seis meses atrás: o presidente tinha mesmo falado que não queria mais íngua nenhuma na cara dele. Literalmente. Com essas palavras. Em Caps Lock. Negrito. E sublinhado.
– Desculpe, senhor Presidente Basonloor, mas não entendo o que diz. Bom dia, senhor Presidente Basonloor, como vai?
– Senhor Presidente, esses robôs não têm botão de desligar ou ligar, eles funcionam com luz solar...
– Desculpe, senhor Presidente Basonloor, mas não entendo o que diz. Bom dia, senhor Presidente Basonloor, como vai?
– Foda-se a luz solar. Eu quero que essa porra pare de falar!
– Desculpe, senhor Presidente Basonloor, mas não entendo o que diz. Bom dia, senhor Presidente Basonloor, como vai?
– Me dá essa droga de tablet!
– Desculpe, senhor Presidente Basonloor, mas não entendo o que diz. Bom dia, senhor Presidente Basonloor, como vai?
Júlio quase jogou o tablet para o presidente do outro lado da mesa e respondeu aos robôs de uma maneira que eles entendessem, isto é, a única maneira existente para que duas inteligências pudessem se comunicar.
– Bom dia, Eduardo, eu estou bem, obrigado. E como vai você? – enquanto o diretor conversava com o robô, Riaj soltou uma risada seca e balançou a cabeça.
– Bom dia [pausa para reconhecimento de voz], diretor Júlio Sant’Anna. Eu estou bem também, obrigado.
– Como já explicamos, senhor Presidente, os robôs funcionam com esse, uh, reconhecimento de voz e, uh, eles entendem certas expressões inseridas em nosso banco de dados. Então, uh, quando eles perguntam Como vai?, as únicas expressões que eles entendem são: eu estou bem, eu não estou bem, eu estou ótimo, eu não estou ótimo, as coisas estão indo..-
– Tá tá tá tá, puta que o pariu. Certeza que quem criou esse banco aí foi uma mulher, né? Vou te falar... é por isso que a educação desse país continuou na merda depois que eu subi. Onde já se viu tanta besteira num só robô...Olha aqui, nada disso me interessa. Esses gráficos aí que se mexem, tudo coloridinho, coisa de florzinha, tudo baboseira...
Ele fez o tablet escorregar pela mesa até o diretor.
– Eu quero é saber quando é que o negócio vai rolar. Porque a Talitha ligou pra mim ontem de noite e disse que tava tudo em cima.
– Desculpe, diretor Júlio Sant’Anna, mas não entendo o que diz Presidente Basonloor. A expressão não se encontra em nosso banco de dados. Devo fazer nova atualização pendente?
– Atualização pendente? – Júlio olhou para o robô, enquanto tentava ignorar brevemente o falatório do presidente sobre a falência do sistema educacional brasileiro. – Que atualização pendente é essa, Eduardo?
– Para de chamar essa merda de Eduardo. Isso é um robô!
– Atualização número quinhentos e noventa e nove, programada para daqui uma hora.
Júlio passou a língua nos lábios ressequidos e abafou a vontade de jogar o presidente pela janela.
– Interrompa qualquer nova atualização pelos próximos sete dias, Eduardo.
– Sim, diretor Júlio Sant’Anna.
– Obrigado.
– Por nada.
– Ai, Jesus amado...isso é ridículo e bem constrangedor na verdade. Mas é por uma boa causa, ô se é... – Riaj apoiava-se na mesa e olhava com um misto de decepção e nojo para o diretor. Onde já se viu agradecer um robô. No mínimo é bicha, só pode.
– Devo inserir no banco de dados a expressão Tudo em cima como resposta padrão para a pergunta Como vai?
– Mais tarde conversamos sobre isso, Eduardo.
O diretor optou por desviar o conteúdo daquela conversa. Obviamente que ele não poderia programar o Tudo em cima como resposta padrão, uma vez que o sistema dos robôs era integrado com o sistema educacional público. Todavia, Júlio nunca diria que o vocabulário do presidente era chulo demais para que pudesse ser ensinado às crianças; por mais que o sistema tivesse mudado.
A bem da verdade, Júlio não se importava tanto assim em cair nas graças de Basonloor. Júlio só queria ajudar ao menos algumas pessoas se a chance surgisse. Júlio só queria trabalhar com sua Inteligência Artificial. E acima de tudo, Júlio queria viver.
[fora de registro: Sant’Anna confirmou que a criação dos memes viralizados em 16 de Agosto de 2.... “Júlio quer viver” é inteiramente dele. Ele conclui: “O que é uma desgraça moral quando já se está fodido mesmo?”]
– Senhor Presidente, onde está seu celular?
– Por quê? Que que tem meu celular? Ah, sim, claro, eu sempre esqueço disso...essa tecnologia toda. Sempre um espiando o outro...tenho certeza que são chineses...tudo olhinho puxado, não dá confiar em ninguém que coma com palito.
Júlio pegou o celular dele e o do presidente, desligou os aparelhos e colocou-os numa caixa preta cuja função era interromper todo tipo de conexão com qualquer outra máquina que funcionasse como captadora de informação de dispositivos eletrônicos.
Depois sentou-se na outra ponta da mesa.
– Tudo está seguindo os protocolos de segurança, senhor presidente. O nosso sistema já foi programado; nenhum algoritmo apresentou erros muito grandes na fase de testes; os indivíduos testados até agora não apresentaram nenhum sintoma ruim, todos estão bem e sãos; as empresas Elgoog, Africon, Oh-hay, MacroHard, Dukky, Grape e as demais estão todas no Aceite.
Riaj, as costas jogadas no encosto da cadeira, pernas abertas e mãos cruzadas no colo, encarava o diretor do outro lado da mesa. Ele começou a girar a cadeira de um lado pro outro.
– Nenhum sintoma até agora? Certeza? Uh, porque sabe, não quero que isso volte a ser uma cloroquina da vida...Temos que esquecer o passado por um futuro mais próspero.
Júlio engoliu em seco ao ouvir o lema eleitoral que levou aquele homem à presidência da República e observou o Assessor-Sem-Nome passar pelo corredor atrás do presidente e quase empurrar a porta para entrar na sala. Ele fez um sinal mínimo com a mão para o outro. Assessor-Sem-Nome deu um passo para trás e acenou para que Júlio o procurasse assim que desse.
– Os pesquisadores da Stuart & Stuart refizeram pela sexta vez os testes e eles foram positivos. Margem de erro de dois a quatro por cento em grupos de mil. Creem que os remanescentes podem ser tratados de uma maneira, uh, diferente.
– E isso é bom?
– Sim, isso é bom, sim.
– Bom-bom-bom, muito bom.
A sala ficou em silêncio por alguns segundos, até que Júlio juntou coragem para questionar.
– A única coisa que está um pouco obscura para nós é com relação a tecnologia Lamlung.
– O que tem a tecnologia deles?
– Bem, eles foram um tanto, uh, restritos quanto ao compartilhamento de como seria a integração do nosso algoritmo com a tecnologia deles.
– Mas a Lamlung tá no Aceite, não tá?
– Sim, senhor, como as demais.
– Então? Se eles tão no Aceite, eles tão no Aceite, cacete. Qual a dificuldade nisso?
– Nenhuma, nenhuma dificuldade, seu Presidente...Eu só me sentiria mais à vontade se minha equipe pudesse acompanhar a integração. Eu tentei contato por três vezes já e ninguém da Lamlung me retorna. Isso é um pouco frustrante, quer dizer, é a nossa tecnologia, o nosso algoritmo e...
– Tá tá, entendi já. Não esquenta a cabeça que eu tenho esses caras na palma da mão. Se achar melhor, eu posso dar uma ligadinha pro presidente deles e você e sua equipe vão ter acesso até a mulher dos caras.
Riaj levantou-se e foi até a caixa preta, simbolizando abruptamente o fim da reunião.
– Então, quando é que o senhor poderá fazer essa ligação?
Riaj pegou o celular e o ligou antes de encarar Júlio. Abriu os braços.
– Pra quando você precisa?
– O mais cedo possível. Se for hoje, nós já poderemos dar início a todo o processo amanhã.
Basonloor esticou os lábios num sorriso que fez o pelos da nuca do diretor se arrepiarem. Ele apertou a mão dele fortemente.
– Vai pro meu gabinete no café da tarde. Você gosta de pão com leite condensado? Não sabe o que tá perdendo!
E saiu da sala cantarolando.
“Tudo nosso é espontâneo, mas há muitas pessoas que trabalham para mim e que confiam em mim. Não conheço 99% delas.”
Assessor-Sem-Nome andava de um lado para outro no corredor escuro da saída de emergência. Na tentativa de acalmar os nervos, tirou do bolso um pedaço pardo de papel já enrolado num formato cilíndrico e o levou à boca. Seus lábios tremeram brevemente e ele exalou e soltou o ar com alívio, fechando os olhos.
A imagem dos slogans digitais pelas avenidas e ruas, dos posts nas mídias sociais e o som dos anúncios nos podcasts brilhavam em cores neon nas lembranças dele.
Esquecer o passado por um futuro mais próspero.
Esquecer o passado por um futuro mais próspero.
Esquecer o passado por um futuro mais próspero.
Passou a mão pelos cabelos e não teve nem forças para pensar numa piada sarcástica ao ver vários fios presos entre os dedos (Thiago disse mesmo que ele perderia os cabelos antes dos 30 se seguisse com aquela história).
– Thiago... – seu corpo foi escorregando pela parede fria até sentar no chão como um saco de lixo. Ele se sentia um saco de lixo. Cobriu o rosto com as mãos, amassando o cigarro falso. Não queria lembrar de Thiago, não queria.
Todavia a imagem do ex sendo preso assaltava os pensamentos como um ladrão de primeira. A figura dele esquálida no quarto minúsculo e mal iluminado do Centro Nacional de Terapia Intensiva para Transtornos Mentais, e, semanas depois, seu cadáver espancado deitado na mesa metálica para reconhecimento faziam ele ter náuseas.
Thiago foi só uma das milhares de vítimas das curtidas observadas criteriosamente pelos algoritmos das grandes empresas de tecnologia atualmente trabalhando com governos do mundo todo.
“Não foi sua culpa”, Assessor-Sem-Nome se convencia: como eles poderiam pensar que naquela época curtir a foto de uma loja de donnuts e em seguida outra de um artista X esculpindo uma banana seria considerado ato libidinoso ou suspeição de transtorno mental? Quem diabos chegaria àquela conclusão?
Suas mãos não paravam de tremer e ele as apertou firme para que parassem. Aquilo foi há muitos anos, Thiago foi há muitos anos. Não iria chorar, não iria chorar. Mas Thiago era bom em fazê-lo chorar.
A porta de emergência foi aberta silenciosamente, embora aquilo não fizesse Assessor-Sem-Nome se sobressaltar ou sequer mudar de posição; afinal só estavam ele, Júlio e Basonloor (que já devia ter saído) naquele prédio.
Júlio entrou no corredor escuro e cogitou falar para as lâmpadas se acenderem, mas percebeu que nem Assessor-Sem-Nome nem ele queriam luz alguma. A escuridão era reconfortante de certa maneira, como quando uma criança usa o cobertor para se esconder de fantasmas no quarto. Embora ambos soubessem que nenhum cobertor ou escuridão poderia protegê-los da realidade daquele mundo.
O diretor de TI sentou-se de cócoras ao lado do amigo (sim, depois daqueles anos, eles tinham se tornado amigos) e encostou a cabeça na porta de ferro maciço.
– Você está com seu celular ou relógio?
– Não – a voz de Assessor-Sem-Nome saiu abafada por entre as mãos. – Deixei tudo no carro.
– Ótimo, então podemos conversar. O presidente já foi embora.
– Eu não quero conversar.
Os soluços entrecortados vazaram pelo corredor e uma parte do diretor ficou alerta só pela mera hipótese (por menor que fosse) de alguém ouvindo aquele som por lá. Ele passou a mão pela nuca do outro num sinal de companheirismo.
– Assessor...
– Não. Não dá...Eu não aguento mais. Ele não para de aparecer...Talvez...talvez eu devesse me entregar logo, o mais rápido que puder...Vou pra aquela porra de terapia intensiva e morrer logo, já não aguento mais...
Júlio cerrou os olhos e não achou mesmo que diria aquelas palavras. A cada uma que saía, seu coração se apertava um pouco mais:
– É melhor esquecer o passado para ter um futuro mais próspero.
Enquanto o choro se tornava mais alto e Assessor-Sem-Nome se encolhia e abraçava a cintura dele, Júlio se perguntou pela milésima vez se o que estava fazendo era certo mesmo, de verdade.
Era tanto radicalismo antes, tanto ódio e beligerância – ou você tinha que ser de um lado ou tinha que ser do outro. Não havia meio termo, não havia em cima do muro: você tinha que levantar uma bandeira, você tinha que ter uma opinião sobre as coisas, por mais que sua opinião não importasse ou que as coisas não importassem. Na época, quando ainda era um jovem de 12 anos, a gota d’água tinha sido o aplicativo Sua Opinião criado pelo governo que fez o download compulsório nos dispositivos eletrônicos de todos os cidadãos: o intuito era a proteção da democracia. Todos tinham que dar sua opinião sobre algum tópico político publicado pelo Congresso Nacional através do aplicativo em até 48 horas, sob pena de multa e juros de mora (a prisão para tal falta ainda estava sendo discutida por senadores e deputados federais).
Como a bela última gota que foi, a coisa transbordou. Milhões foram às ruas e obviamente que inúmeros tomaram a frente do movimento para se beneficiar de algo; uma delas, que surgiu do nada (porque, sim, foi cogitada a hipótese daquele ser ter surgido por geração espontânea da multidão alucinada), foi ninguém menos que Riaj Basonloor, cristão devoto que segurava numa mão um bastão de diálogo, na outra a Bíblia e na língua um lança-chamas.
Não demorou muito para que Riaj fosse elevado pelo povo irado (o homem fez um bom uso das redes sociais) e seu lema Esquecer o passado por um futuro mais próspero tomasse conta de todo, literalmente todo lugar: celular, aplicativos, memes, podcasts, revistas digitais, webtoons, outdoors digitais nos bairros mais abastados até os mais pobres (afinal de contas aquela era uma geração que estava derrubando todas as estátuas históricas existentes no país – existia melhor slogan que o Esquecer o passado?). Basonloor falava ainda sobre livrar o sagrado país cristão das amarras ideológicas, como não apoiar isso depois de tanto radicalismo?
Levantando bandeira de um lado ou de outro ou sem levantar um mísero guardanapo que fosse, Júlio, Assessor-Sem-Nome, Thiago e tantos outros anônimos foram incapazes de notar que brisas suaves poderiam se transformar em ventos mais fortes, e que estes dariam lugar a furacões. Quando se está no meio do caos, é possível ver o caos? A coisa toda girava num ritmo estonteante demais para que eles pudessem perceber que as amarras libertadoras do novo presidente eram apenas máscaras para uma corrente mais dura, fria e (quase) inquebrável que arrastava quem quer que fosse a um abismo escuro, úmido, fedido e infernal.
Júlio puxou Assessor-Sem-Nome da sua cintura e sentou-o o melhor que pôde.
– Olha pra mim. Ei, olha pra mim! Esquece essa terapia maluca, ok? – Sant’Anna apertava firmemente os ombros do Assessor que o encarava com olhos brilhantes e derrotados. – Acho que o plano deu certo.
Os dois homens continuaram a disputa de quem pisca primeiro. A ficha demorou a cair.
– Você entendeu, Assessor? Acho que Brunx conseguiu – Júlio puxou o rosto do outro para perto do dele, sussurrando aquilo, aquele segredo maquiavélico. Assessor piscou lentamente algumas vezes.
– O quê? Como assim, Brunx disse que não tinha...
– Sim, disse. Mas acho que agora deu certo – a voz dele saia tremida com a excitação. – Durante a reunião Eduardo falou sobre uma nova atualização pendente no banco de dados. Até ontem à noite não existia nenhuma. Eu também verifiquei o histórico agora e vi uma nova atualização esperando autorização às 5:34 da manhã. Assessor, Brunx conseguiu! Conseguiu!
– Ma-mas durante a reunião! Isso aconteceu na frente do Presidente?!
– O brutamontes nem se tocou daquilo e eu desconversei logo em seguida.
Todavia Assessor-Sem-Nome permaneceu temeroso e Júlio demorou a criar a confiança que ele precisava: se pudesse tirar aquela ideia de se entregar para os loucos da terapia intensiva da cabeça dele, Júlio o faria, num piscar de olhos se pudesse ou num clicar de teclas.
– Ele falou pra eu ir ter com ele no café da tarde. Vou poder ir pra empresa ainda hoje e levar Brunx comigo. Vai dar tudo certo. Vai dar tudo certo...
“Tá na cara que estou sendo um problema para o sistema, não é para esse partido ou aquele, é para o sistema.”
Riaj Basonloor lambia os beiços delirantes de leite condensado, mas pelo visto mesmo nesse trabalho ele não era muito efetivo: um longo fio do doce descia pela boca e escorria pelo queixo dele enquanto ele conversava. Júlio sentiu certa náusea novamente e cobriu a boca com uma das mãos fingindo um bocejo.
– O trampo é foda, né. Eu que o diga, amigo. Mas você fez um bom trabalho, bom mesmo. Meu filho disse que seu algoritmo é de primeira.
Júlio arqueou as sobrancelhas na tentativa de brotar algum interesse genuíno no rosto.
– Ah, é mesmo? Seu filho tem feito trabalhos com programação em inteligência artificial?
– Ora é claro, ele é gamer. E dos bons, sabe, fica o dia inteiro no computador. Enfim – Riaj lascou a língua nos dentes da frente para tirar uma maçaroca de pão, encheu a taça de cristal com mais refrigerante rosa e derramou meia lata de leite condensado numa montanha de pães empilhados num prato entre ambos –, conversei com o Hélio sobre você e sua equipe irem lá. Tudo certo já. Reunião marcada pras 18 horas. Em ponto, viu? Esses olho puxado são tudo travado com o relógio, a gente devia ter um pouco dessa, dessa...dessa essência deles, né? Num tô falando deles bonecos dançantes lá de k-pop que parece tudo boiola, não! Tô falando é de seriedade, disciplina, sabe? No nosso Exército Brasileiro a coisa é assim...
– Bom, que bom que deu certo, seu Presidente. Minha equipe também está de prontidão. Pode ter certeza que estaremos lá às 18 em ponto.
– Uh, positivo então. Precisa de algum carro oficial? Tenho alguns disponíveis aí pra você.
– Ah, uh, talvez não se-...
– Carro oficial, então! É sempre bom a nossa gente manter o tom oficial, se é que me entende né.
Riaj Basonloor piscou o olho e deu uma gargalhada. Então, seu celular tocou, era esposa.
– Fala, Melliche. O quê? Você quer mais um tradutor de Libras?!
E fez sinal para que Júlio saísse da sala, coisa que ele fez prontamente e com satisfação.
“As minorias têm que se curvar às maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem.”
“A quinta eu dei uma fraquejada, e veio uma mulher.”
Brunx tirou a tampa do copo de papel para saborear com mais afinco o chantilly vegano do seu café com leite de amêndoas. O som quase inaudível dos computadores ligados trazia uma certa calma à sua personalidade explosiva e elx agradeceu por isso, ainda mais por conta do que estava prestes a fazer.
Foram quantos anos trabalhando naquele projeto? Uh...a pergunta às vezes pulava na cabeça delx como um grilo: nada que não pudesse ser afastado com um sopro mais forte ou um soco inglês.
Enquanto Júlio continuava conversando com um dos diretores da Lamlung, elx aproximou a orelha da CPU mais próxima de uma maneira que ninguém suspeitasse e não refreou o breve sorriso nos lábios. Era uma sinfonia sem igual! Um amontoado de dados coloridos viajando num arco-íris inebriante! Ou talvez aquela sensação fosse apenas consequência dos anos a fio usando miau-miau e flakka, pelo menos era isso que Júlio lhe dizia. Ele também pedia que Brunx se afastasse das drogas, mas, convenhamos, como se afastar daquilo que lhe trazia certo sossegado para a alma ou que deixava seu mundinho um pouco mais colorido?
– Brunx? Vamos seguir? – Júlio se aproximara com os olhos lhe pedindo atenção e um comportamento normal, ao menos por enquanto.
– Ah, sim, claro! Avante!
O diretor da Lamlung alargou o sorriso e anuiu com a cabeça várias vezes.
– Esse é o espírito! Como eu estava dizendo para o seu chefe, os testes foram excelentes, não poderíamos estar mais satisfeitos com os resultados. E a tecnologia? Ah! O que falar dela? O futuro é tecnológico!
– Sim, tecnológico e colorido! – Brunx arregalava os olhos, seguindo o diretor de perto e sem desgrudar do rosto dele. Júlio se perguntou se a ingestão de flakka tinha corrido solta naquela madrugada e se aquilo seria um problema. Ele rezou para o bom deus cristão que não, por favor não.
– Sim, sim, colorido também! Nossa equipe de Design Inteligente está trabalhando nas novas cores a serem disponibilizadas no mercado.
Ele apontou para uma sala com paredes de vidro escuras que imediatamente se clarearam com um toque de sua digital, mostrando um ambiente refrigerado, com longas mesas metálicas onde se encontravam os ares-condicionados.
– No momento só estamos trabalhando com a cor branca, com o sentido de transmitir a paz de espírito que todos precisamos, né. Mas as próximas cores que temos em mente são: verde-claro que remete à saúde e vitalidade; amarelo-claro que remete à alegria e ao otimismo; e a cor cinza, remetendo à estabilidade.
Júlio e Brunx observavam a sala imensa com centenas, ou melhor milhares, de ares-condicionados. De repente as mãos de ambos suaram e suas línguas ficaram secas, grudando na garganta. O diretor interpretou o silêncio como respeitoso, como quando um discípulo encara os olhos de um mestre: ASSOMBRO!
– É magnífico, não? Podemos fazer parte de algo tão grande, tão, mas tão imenso. E é a nossa empresa com a sua tecnologia que tornará isso possível – o diretor da Lamlung falou significativamente: – O esquecimento do passado!
Tirando o dedo indicador da parede de vidro, ato que imediatamente escureceu o lado interior que zelava pelos novíssimos produtos, eles continuaram pelo corredor até uma mesa central que já possuía um computador e seu servidor ligados.
– Nunca pensamos ser possível uma coisa dessas ser feita por humanos, e fomos nós na linha de frente! Trabalho uníssono entre tecnologia, negócio, saúde e, claro, religião! – e, abaixando a voz para os dois – Que seja dito ao nosso querido Presidente que a nossa equipe de Design Inteligente é uma das mais importantes no conglomerado, sim.
– Claro, claro. Com certeza, diretor – Júlio anuiu seriamente.
Brunx exclamou com um ponho levantado:
– A religião ARRASA! HIGH FIVE!
Júlio cobriu os olhos irritado, mas o outro diretor aparentemente gostou da animação e bateu fortemente a palma, gargalhando. Talvez o uso de narcóticos estivesse sendo usado entre as classes abastadas mais do que Júlio esperava.
– Uma última coisa, diretor. Uh...porque Brunx não fica aqui já trabalhando na integração do algoritmo, enquanto o senhor me mostra a realização de um dos testes? No início da nossa conversa, o senhor comentou que um deles estava sendo realizado agora, não?
– Ah, sim, sim, mas é claro! Será um prazer. Na verdade, é mesmo um deleite ver a coisa toda funcionando tão, mas tão bem! Só vou chamar Larsson para acompanhar Brunx, né.
Júlio mirou Brunx com o canto dos olhos. Os pés se mexendo para cima e para baixo, os cantos dos dedos comidos e o olhar vidrado não eram a imagem que ele gostaria de ter num dos seus heróis, se Júlio tivesse um herói. E enquanto o outro diretor chamava Larsson pelo relógio de inteligência interconectada, Júlio deu um passo para mais perto de Brunx e pegou o copo de papel com café.
– Então esse é o nosso famoso café vegano, hein? O cheiro não é de todo ruim.
– Fica melhor quando a gente vê os arcos-íris – Brunx sussurrou, olhando sorrateiramente para o outro diretor que falava ao relógio. – Mas ninguém mais sabe, shhh.
O sorriso de Júlio saiu duro e ele se perguntou se deveria internar Assessor e Brunx no futuro, se é que haveria um futuro...
– Larsson já está a caminho, senhor Sant’Anna. Podemos esperar por ele ou...
– Ora, imagine! Não vamos perder tempo, eu estou é muito interessado em ver o teste acontecendo!
O diretor alargou o sorriso novamente e gesticulou para que o seguisse.
“A escória do mundo está chegando ao Brasil (...)”
“Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.”
Quando Júlio Sant’Anna fincou os pés ao lado do diretor-braço-direito da Lamlung e encarou o que estava atrás da parede de vidro, achou que seu coração não pudesse fazer o que fez. Pensava mesmo que quando visse aquilo com os próprios olhos, seu corpo agiria instintivamente como deveria ser numa situação de potencial perigo: fugir já tinha deixado de ser uma opção instintiva há muitos anos, o que restava agora era só uma parada cardíaca mesmo; tipo um suicídio involuntário.
Mas seu coração não parou. Nem se sobressaltou o infeliz...como se já soubesse o que estava por vir. Será que sabia? Será que seu consciente já havia se misturado com o inconsciente coletivo da nação? O filho da mãe miserável o deixou na mão, criou só um gelo no peito.
Júlio tocou o peito e apertou de leve a camisa, a face pálida.
– Está tudo bem, senhor Sant’Anna?
– Oh, sim, claro. São só gases. Sabe como é...acho que a feijoada não caiu muito bem no almoço – ele voltou as mãos para dentro dos bolsos. – Então, me diga, quantas vezes essa repetição já foi realizada?
– Ah... – o diretor consultou o relógio. – Essa é a repetição número 77. Repetição é sempre, sempre muito importante.
– Entendo, sim, é bem verdade, repetição é a nossa receita de bolo. E o resultado foi sempre o mesmo?
– Sim, sim. Sempre o mesmo, mesmíssimo!
O diretor apresentava o semblante orgulhoso e satisfeito. Júlio seguiu seu olhar para dentro da sala novamente.
O homem de jaleco branco espancava pela septuagésima sétima vez um jovem negro e esfarrapado de olhar sonhador, mas começou a chorar de dor e a tentar reagir. Assim que isso acontecia, o homem de jaleco tomava notas e acionava um controle remoto em direção a um ar-condicionado branco acima do jovem. Não saía vento, dizia o diretor, era Sem-Correntes; o cheiro era condizente com aquilo que cada cérebro considerava agradável (para uns rosa, para outros chiclete); e a substância aniquiladora era imperceptível.
Em poucos segundos, o jovem se acalmava, piscava profusamente, o ar meio desnorteado. Ele se dirigia ao homem de jaleco branco como se fosse a primeira vez que o via: Que lugar é esse? Quem é você? Aconteceu alguma coisa?
Então mais notas era tomadas e um novo espancamento começava, depois um novo acionar do ar-condicionado. Júlio mal piscava.
– A Stuart & Stuart já deu um nome para a ela?
– Ah, sim: SweetDreams. Soube que o fundador deles era fã do Eurythmics.
– SweetDreams? Ah, realmente...realmente. É bem condizente.
Sant’Anna desviou o olhar que do homem de jaleco que reiniciava a sessão de espancamento e impediu que sua mente cantasse a música. Sem que notasse, sua mão saiu do bolso e voltou para o peito.
– Ih, ainda indigesto? – comentou delicadamente o diretor.
Mas a pergunta que Júlio se fazia era: onde estava seu coração agora? Será que deveriam mesmo levar adiante aquele vírus? Assim que descobriram aquele plano bizarro e digno de um troglodita de apagar a memória da população, eles demoraram anos para desenvolvê-lo. Júlio e Assessor-Sem-Nome até haviam desistido para dizer a verdade e Brunx provavelmente só continuava de pé por conta das drogas. Mas será...será que...
Ele observou nostalgicamente o jovem negro espancado.
Será que...não seria bom esquecer?
Assessor-Sem-Nome dissera-lhe que Thiago negaria aquilo. Thiago, assim como outros escondidos por ali, diria que esquecer é que era o tal cobertor a esconder a criança dos fantasmas.
Enquanto voltavam para o lugar onde estavam Brunx e Larsson, Júlio sentiu os pés mais firmes, o peito mais quente.
Embora aquele questionamento pulasse nele novamente, Júlio sabia que seria irrelevante: Brunx já devia ter inserido o pen-drive com o vírus polimórfico gerado unicamente para reverter o algoritmo criado por eles mesmos, que ao invés de processar a substância do esquecimento, faria justamente o efeito inverso – carimbar na cara de todos, as memórias perdidas, as memórias cheias de ódio, rancor, vingança, desprezo, solidão, assim como aquelas povoadas de amor, compaixão, amizade, esperança, união, paz.
Brunx levantou de supetão assim que os dois diretores apareceram.
– Está tudo dando certo?
– Sim, senhor diretor – o gerente de tecnologia sênior levantou-se da cadeira também e apertou a mão de Júlio. – Nós agradecemos muito sua colaboração. Esse aqui é o meu contato pessoal, caso haja algum imprevisto, coisa que espero que exista, não é mesmo?!
Brunx acalmou o novo colega Larsson, oferecendo-lhe um gole do seu café. Depois de meia hora de conversa mansa, cafés e pães de queijo (que Brunx devidamente recusou por não serem veganos), Júlio e Brunx se retiraram da empresa Lamlung.
Ao entrarem no carro oficial ficaram alguns minutos em silêncio. Sem saber de fato se a ficha estava caindo. Seus olhos se encontraram, pois eram olhos que guardavam um segredo, e os desse tipo sempre se encontram, mais cedo ou mais tarde.
Os dois sabiam que esquecer não era a solução e por mais que os tempos fossem sombrios, as memórias deles serviriam como um norte para um futuro melhor, um futuro onde nem ele, nem Brunx ou Assessor-Sem-Nome tivessem que viver sob o ar opressivo de um Riaj Basonloor e seus filhotes. Suas memórias seriam seus soldados e suas armas.
Brunx abriu a palma da mão para que Júlio a segurasse. De mãos dadas seguiram com o carro, tendo o futuro como incerto e apenas suas memórias como promessa de quem eles realmente eram.
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