asheviere Marianna Ramalho

Ao contrário do que Hades pensava, Eros fizera-lhe uma gentileza. Duas flechas foram disparadas naquele dia.


Cuento Todo público.

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Cuento corto
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Único - Flechas e Raízes

Havia bastante tempo que Hades era o Senhor do Submundo.

Para os deuses, isso significava muito. Séculos, milênios, eras. Sem sombra de dúvida, Hades conhecia seu reino como a palma de sua mão, e não havia nada no Mundo Inferior que pudesse surpreendê-lo. Mas ele não saberia dizer quando isso se tornou um tormento. No começo, o controle e a imposição lhe transmitiam apenas uma grande segurança; ali, era o senhor absoluto, inalcançável e temido por deuses e humanos. Agora ele vagueava por suas terras, quase como uma daquelas almas torturadas pelos arrependimentos do passado, perguntando-se quando seu próprio reino havia se tornado uma prisão, e quando ele deixara de ser governante e carcereiro para se tornar um penitente.

Ah, mas ele sabia quando… No íntimo, sabia. Todo o poder que ele pensava ter havia sido tomado dele com a velocidade do disparo de uma flecha. Ou talvez ele não tivesse assim tanto poder quanto pensava. Não quando seus próprios domínios tornavam-se sufocantes pela ausência de alguém com quem nunca trocara mais que olhares à distância nos campos verdejantes da superfície quando ocasionalmente deixava o Mundo Inferior.

Então, pela primeira vez em muito tempo, o Submundo presenteou o monarca com uma surpresa. Algo estava diferente, algo que ele não pôde definir de imediato. Uma aura completamente diferente da sua, e que, portanto, não podia pertencer ao seu reino.

– Quem está aí? – perguntou, aproximando-se de uma figura sentada nas rochas cavernosas, observando com curiosidade o Campo de Asfódelos. Antes da resposta, porém, Hades já a reconhecera. Não poderia não reconhecê-la, o sopro vívido e o espírito observador. A surpresa de vê-la em um lugar como aquele o impediu de medir suas palavras, então questionou: – O que faz aqui?

Perséfone olhou em sua direção, os lábios entreabertos em surpresa por tê-lo encontrado. Surpresa, apenas, não medo. Não era comum para Hades receber aquele olhar. Mesmo entre os deuses, poucos não o temiam. Ela se levantou, recebendo respeitosamente a presença do sombrio monarca.

– Perdão, meu senhor. Sei que não deveria estar aqui sem aviso – respondeu, calmamente, sustentando seu olhar.

– Não deveria. – Ela desviou o rosto, esperando. Hades pensou em mandá-la embora e dizer para que não voltasse. Era o que deveria fazer, se fosse esperto. Perséfone não era para ele, e tentar mudar isso seria um caminho tortuoso para ambos. Mas estava curioso. E também ávido pela conversa, embora não fosse admitir. A voz melodiosa que nunca ouvira antes era tão intrigante quanto a dona. Reconfortante, como o deslizar suave do orvalho nas folhas ao amanhecer, mas também possuía uma força oculta, como as raízes que irrompem a rocha sólida. – Como veio até aqui?

– Encontrei uma passagem nas montanhas.

– E… apenas entrou?

Ela abriu um sorriso leve, um pouco sem jeito.

– Eu precisava vir aqui.

Hades não sabia qual resposta esperava, mas certamente não era aquela. Sabia que Perséfone era jovem e, como todos, era curiosa, mas nunca a tomou por ingênua, mesmo que essa fosse a imagem que os outros tinham dela. Mesmo sempre distante, Hades enxergava algo por trás daquele olhar. Não se enganava pensando que poderia conhecê-la apenas por olhares trocados, mas certamente enxergava mais do que os demais deuses que conviviam com ela.

– Por quê?

Perséfone desviou o olhar para o Campo de Asfódelos em uma pausa pensativa, voltando a se sentar na terra árida.

– Ouvi algo… – confessou, na esperança de que ele a entendesse. – Um lamento, um sofrimento melancólico. É surpreendente o quanto a solidão pode ser ouvida de longe, não é?

Apesar de rodeada de deuses, Perséfone sabia o que era solidão, e não gostaria de deixar alguém passar por isso se pudesse fazer algo. Ainda que o olhar dela fosse direcionado às almas errantes, Hades teve a impressão de ser o verdadeiro alvo de seu comentário.

– Eu não sofro de melancolia alguma, jovem deusa. Eu sou o rei do mundo dos mortos.

– Então deve ser muito solitário.

A resposta imediata o surpreendeu. Perséfone ainda vagueava o olhar pelos campos, mas observou-lhe de esguelha, confirmando suas impressões.

– E você deve ser muito imprudente. Quem desceria ao submundo para consolar a morte? – Apesar da defensiva, Hades a imitou, sentando-se também, acompanhando a paisagem que ela tão atentamente observava.

– Ninguém… Os que mais precisam são sempre esquecidos.

– Veio apenas me insultar, Perséfone?

Ela ergueu uma sobrancelha, a ameaça de um sorriso desdenhoso que ela sabiamente conteve pairando em seu rosto.

– Como conseguiu tirar algum insulto das minhas palavras, senhor? Apenas disse que todos precisam ouvir e ser ouvidos de vez em quando.

– Eu sei. E acho extremamente insultante que me coloque no mesmo grupo que “todos”.

Perséfone não se conteve dessa vez, soltando um riso fraco em concordância.

– Entendi e peço perdão. Eu também não gostaria de ser colocada junto a “todos”.

– E quem seria tolo de cometer esse erro?

Perséfone sorriu, descendo o olhar para a terra onde seus dedos moviam-se timidamente, um único sinal de ansiedade diante do que realmente gostaria de perguntar.

– Por que nunca falou comigo? – Ela o encarou diretamente. – Sempre percebi seus olhares e esperei, mas nunca veio.

Pela primeira vez, Hades cometeu o pecado de desviar os olhos de Perséfone.

– Porque seria uma tortura para mim. Uma tortura deleitável, como agora. Tão perto e tão inalcançável…

Que artifício injusto este tramado por Afrodite e Eros… Poderiam tê-lo nas mãos da mesma forma ainda que o alvo de sua afeição fosse outro. Mas não se contentaram com isso apenas, queriam vê-lo sofrer. Por isso escolheram ela. Seu exato oposto. Alguém feito puramente de vida, pulsante e intensa, de modo que não havia nada em toda a terra estéril do Mundo Inferior que sequer o lembrasse de sua presença.

Assim pensava.

A grama macia sob suas mãos o fez voltar a atenção para Perséfone, que ainda mexia na terra sem prestar atenção ao que fazia, mas algumas flores haviam brotado onde antes não havia nada além da aridez da terra.

– Você diz inalcançável sem nunca sequer ter vindo em minha direção. Não sabia que duas flechas foram disparadas naquele dia?

– E você não sabia que as flechas de Eros são prenúncios de tragédias? É isso o que ele gosta de provocar. Elas voam alto e rápido, mas sempre caem ao final. Fomos escolhidos para sermos a queda um do outro, Perséfone.

– Ao menos antes de cair, iríamos voar. – Ela suspirou, frustrada. Perséfone desejava voar. Não falava apenas com relação aos dois, mas em todos os sentidos. Havia tanto dentro dela esperando para se libertar, mas era sempre cerceada. Um jardim para proteger suas flores frágeis, mas que impedia suas raízes fortes de espalharem-se livremente. Uma única pessoa parecia vê-la de outra forma, e mesmo ele estava tentando se afastar por medo do que poderia lhe causar. Ao contrário dos outros, Hades não a enxergava com a timidez das pequenas flores sobre a grama, mas com a ousadia que tinham de florescer mesmo nos lugares onde nada deveria nascer. Mesmo assim, ali estava ele, achando que tinha o direito de protegê-la das próprias escolhas. – Não faça isso. Não seja como todos. Eu também sou uma deusa, e não tenho medo de cair.

– Ouvir isso me atemoriza mais do que conforta.

Perséfone riu, mas não voltou a insistir, o que foi um alívio. Hades não era forte o bastante para negá-la o que quer que fosse.

– Acho melhor eu ir… – Ela falou, por fim. – Mas me permitirá voltar?

– Então além de ser imprudente o bastante para descer ao submundo por empatia, você ainda quer fazer isso outra vez? – questionou, curioso e, talvez, com uma ponta de diversão em sua voz.

– Nunca disse que vim por empatia. Eu também conheço a solidão. Mas, estranhamente, só a sinto quando rodeada pelos outros deuses. Aqui… – Ela fechou os olhos. – é tão silencioso e vazio que eu me sinto a única pessoa no mundo inteiro.

– Isso não é exatamente o que significa solidão?

Perséfone, ainda de olhos fechados, negou com a cabeça.

– Isso me permite… me ver como o centro de algo, mesmo que apenas da minha própria vida. Nem isso eu consigo sentir lá em cima.

Hades deveria dizer não. Dizer que ela não deveria voltar. Eles foram escolhidos para serem a queda um do outro, ele sabia. Era incontestável, tanto quanto a perenidade daquela terra estéril que governava. Ainda assim, seus dedos roçaram novamente a grama macia que não existia até minutos antes e Hades olhou para as tímidas flores que ela criara em um lugar onde nada era suposto nascer.

– Bom… Acho que você fez um pequeno jardim aqui, e ele é seu para voltar quando quiser. Esse lugar seria o mais precioso do mundo para mim se for capaz de lhe trazer alguma paz.

Talvez nada fosse tão incontestável. Talvez valesse a pena e eles pudessem contrariar o jogo de Eros e Afrodite. Talvez juntos pudessem voar cada vez mais alto, sem jamais cair.

25 de Noviembre de 2020 a las 02:13 9 Reporte Insertar Seguir historia
8
Fin

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Marianna Ramalho Também posto no Nyah, no Spirit e no Wattpad sob o nome de Jupiter L. Se houver interesse pela minha escrita de forma "integral", sugiro acompanhar pelo Nyah ou Inkspired. Nem todas as histórias são postadas no Spirit e no Wattpad.

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Olá, Jupiter! Gostaríamos, primeiramente, de te agradecer por ter abraçado um de nossos desafios. Fizemos o #ZeusPaiDeTodos com muito carinho, pensando especialmente em vocês, e receber esse retorno com contos apaixonantes como o seu nos motiva cada vez mais. Antes de cair, voar tem uma premissa instigante desde a sinopse. Quando há menção das flechas disparadas por Eros, nos pegamos imaginando o que seguiria: afinal, essas flechas seriam responsáveis pelo amor ou pelo ódio? Dando início então à narrativa, temos um Hades melancólico e contemplativo quanto aos próprios sentimentos, questionando se Afrodite, a deusa do amor, e seu filho Eros, o cupido, estariam de alguma forma tentando puni-lo ao fazê-lo se apaixonar por alguém que lhe é inalcançável, seu extremo oposto. Em seu decorrer, o conto retrata essa relação e as discrepâncias entre os deuses com maestria, e dá foco às palavras do próprio Hades “tão perto, e mesmo assim tão distante.” Ai! Isso, sim, é uma flechada em nossos corações. Quando Perséfone é introduzida à narrativa, nossa sensação é tanto de surpresa, como a que Hades sentiu, quanto de alívio por ver uma das deusas mais queridas entrando em cena. A sutileza da apresentação da interação que eles tiveram também facilitou muito para que nós torcêssemos ainda mais por eles. E então, temos um dos primeiros contrastes apresentados entre os dois durante a narrativa: Perséfone era guiada por sua empatia, disposta a seguir para o Submundo se aquilo significasse consolar uma alma atormentada, sendo essa alma a do próprio Hades, perdido em seus lamentos. Também é importante falar sobre a solidão dos dois, a semelhança que começa a surgir em meio às suas diferenças. Algo que não foi apenas comentado durante a conversa, como também mostrado através dos pensamentos de Hades e da postura e gestos de Perséfone. A ambientação, com elementos que prepararam o leitor para adentrar o Submundo, fizeram toda a diferença na leitura. E em relação à gramática e à ortografia, gostaríamos de parabenizá-la pelo ótimo trabalho de correção. A leitura se tornou ainda mais leve graças a esse cuidado. Gostaríamos de comentar, no entanto, sobre o fato de termos percebido que sua inscrição para o desafio não foi feita de forma oficial pela página de desafios do Inkspired. Aconselhamos um pouco mais de atenção nos próximos, para que não corra o risco de vencer, porém não poder integrar os destaques por causa dessa questão técnica. Ficamos muito contentes com sua participação e por poder ler seu conto neste desafio. Esperamos poder vê-la nos próximos. No mais, os resultados estarão disponíveis nas mídias sociais oficiais do Inkspired Brasil logo mais, dia 26/11. Fique de olho e boa sorte! 🤍
November 26, 2020, 19:42

  • Marianna Ramalho Marianna Ramalho
    Olá! Eu que agradeço pelo tema desse desafio, seria um crime não participar kkkkk Os deuses jamais me perdoariam. Sobre a inscrição, eu realmente fiquei em dúvida se tinha sido feita. Assim que postei a história eu marquei para participar do desafio, mas não teve nenhum sinal de confirmação e eu até marquei de novo. Foi a primeira vez que participei de um desafio e, como nada aconteceu, pensei que fosse assim mesmo e resolvi deixar para lá, mas recebi pelo app duas notificações de que a história estava inscrita no desafio. Agora eu fui procurar e as notificações não estão listadas com as outras, então não sei o que aconteceu, talvez eu ter feito a inscrição duas vezes tenha dado problema :( Obrigada pelo comentário, adorei receber esse feedback sobre o conto, deixou o meu dia muito mais feliz haha Até os próximos desafios! November 26, 2020, 20:02
  • Inkspired Brasil Inkspired Brasil
    Não precisa se preocupar. Sua participação foi validada pela embaixada apesar de tudo <3. Obrigada de novo pela participação. November 26, 2020, 20:07
𝐏𝐒𝐘𝐂𝐇𝐎𝐂𝐀𝐓 . 𝐏𝐒𝐘𝐂𝐇𝐎𝐂𝐀𝐓 .
Olá, Jupiter. Muito obrigada por ter se juntado ao #ZeusPaiDeTodos! Em breve, o perfil oficial da Embaixada Brasileira vai deixar um comentário mais extenso quanto à sua história, mas apareci antes pra deixar minhas impressões individuais. Sou suspeita por falar de sua história, porque amo a relação de Hades e Perséfone *surtos* E no decorrer da narrativa você conseguiu desenvolver os dois de uma forma tão fofinha!! Quem ia esperar Perséfone aparecendo no Submundo, tendo ouvido as perturbações de Hades? Nem o próprio. dsafjahwu Sobre voar juntos, meu coraçãozinho já derreteu junto de toda dinâmica de "vamos ser a ruína um do outro". Que dizer? Amo um casal. Parabéns por seu conto! Nos vemos novamente muito em breve. Abraço. (:
November 25, 2020, 18:57

  • Marianna Ramalho Marianna Ramalho
    Olá! <3 Eu não aguentava mais perder os desafios, ficava sempre vendo os anúncios e nunca participava kkkkk Não tinha tema melhor para começar do que mitologia grega. Hades e Perséfone são meu casal preferido da mitologia (apesar das polêmicas *riso nervoso*). Perséfone exploradora impetuosa é muito a minha paixão e tinha visto um prompt sobre ela mesma ter descido ao submundo, então aproveitei haha Muito obrigada por ler e que bom que gostou da história <3 Até logo! November 26, 2020, 02:37
Karimy Lubarino Karimy Lubarino
QUER ME MATAR????? Cara, que conto maravilhoso. Tá tão suave e leve, que li bem devagar pra apreciar cada palavra e imaginar cada ação dos dois. Uh, caramba, e a imersão nos sentimentos de Hades? Eu amei isso! Ele me pareceu um deus totalmente diferente do que o mostrado em várias histórias mitológicas ao mesmo tempo em que teve sua essência mantida - agora só consigo pensar que, por debaixo de toda loucura, ele é na verdade um cara que só quer mimo e amor. Desse jeito meu coração não aguenta, né! Parabéns pela história.
November 25, 2020, 10:22

  • Marianna Ramalho Marianna Ramalho
    Olá!! AAAAAA muito obrigada <3 Que bom que gostou do conto, eu não tava muito confiante por ter escrito um pouco em cima da hora, então fico muito feliz de saber que gostou do resultado. Principalmente por ter apontado os sentimentos do Hades, descrever sentimentos é algo que eu sempre deixo a desejar, estou tentando caprichar mais agora. Eu tenho muito essa impressão de "antissocial mal interpretado" do Hades, então ele sempre sai meio assim nas minhas histórias kkkkk Muito obrigada por ler <3 November 26, 2020, 02:20
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