esternw Ester Cabral

Vicente poderia dizer com todas as letras que estava na pindaíba. Desempregado há dois meses, com as contas e boletos acumulando-se em sua porta, a única solução momentânea parecia ser recorrer à medidas desesperadas, como vender seu PS. Com uma oportunidade logo à vista, Vicente sequer cogitou onde estava se metendo.


Cuento Todo público.

#tretas #comédia #contos #aventura #ação #confusão
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Parte I.

Vicente desceu do coletivo lotado, vendo o ônibus quente e abafado ir embora devagar, com passageiros exaustos depois de um dia de trabalho e espremidos dentro de um espaço que não comportava tantas pessoas assim. Do lado de fora, era ainda maior o mormaço, com o sol que se punha e o calor que subia do asfalto. Sentia suas pernas doerem de cansaço, após horas de caminhada pelo centro da cidade na entrega de currículos. Esperava que desse resultado, mas, após dois meses sem nenhuma resposta, começava a achar que ninguém ligaria de volta.

Nada daquilo estaria acontecendo se a antiga empresa, onde trabalhava como profissional da área de TI, não tivesse fechado as portas. Crise, as pessoas diziam.

Tudo o que ele queria era esquecer a crise e as contas para pagar por algumas horas enquanto jogava um pouco no seu PS3, após uma ducha fresca e generosa.

Retirava as chaves do bolso, chegando em sua rua, quando viu o carro branco da companhia elétrica estacionado perto de sua casa. Que fosse na casa do vizinho, que fosse na casa do vizinho…

— Sr. Vicente? — o homem perguntou quando Vicente aproximou-se do portão da casa em que vivia. — Temos uma ordem de corte. — Apresentou uma folha de papel, que Vicente pegou, amassando-a um pouco.

— Mas eu ia pagar a conta essa semana! Só mais alguns dias… — ele choramingou, porém, o funcionário abriu a porta do carro e pegou suas ferramentas.

— Sinto muito, senhor, mas isso não é comigo. Basta o senhor pagar os meses atrasados e pedir o religamento do serviço. — Tentou oferecer um sorriso solícito ao rapaz, contudo, não era de muito consolo.

Vicente apenas assistiu ao homem da companhia cortar sua luz e deixá-lo sozinho com o papel e uma casa às escuras, afinal, começava a anoitecer. Nem o dar de ombros de "sinto muito" do funcionário servia de consolo.

O rapaz entrou, jogando as chaves e a mochila de qualquer jeito sobre a mesa de jantar.

— Lar doce lar — soltou pingando ironia e abriu os braços. Foi saudado pelo silêncio.

Resignado, tomou um banho frio e relaxou os músculos. De roupas limpas — as poucas que ainda restavam, precisava lavá-las com urgência —, resolveu preparar um macarrão instantâneo para servir de janta. Sem poder usar o micro-ondas e não dar-se ao luxo de pedir comida pronta com frequência, era uma das poucas opções que possuía, já que não sabia cozinhar sem queimar o fundo da panela.

Suando, mesmo tendo tomado um banho há menos de uma hora, sentou-se à mesa com o prato de comida e um copo de refrigerante. Se Iris estivesse ali, poderia chamá-la para um jantar romântico, pois as velas já estavam acesas.

Uma pena ser um dos dias em que a moça trabalhava no turno da noite na lanchonete, caso contrário, poderia ir até a casa dela para um jantar decente e aliviar a cabeça. A pobre moça tentava ajudá-lo como podia e era grato por isso.

Mesmo que desejasse comer o macarrão instantâneo em silêncio à luz de velas, nem isso pode ser concedido, pois a vizinha do lado cantava com um inglês sofrível uma música dos anos 80, enquanto preparava os bolos para vender no dia seguinte. Não seria má ideia perguntar qualquer dia desses se a senhora não precisava de uma mão a mais no serviço. Ou pedir a receita e tentar ele mesmo começar a vender bolo, tamanha era a necessidade de conseguir uma forma de arranjar dinheiro. Mas supunha que isso daria mais prejuízo do que lucro.

An ai nid u nau tonaiti — a boleira cantava empolgada do outro lado e Vicente sofria em silêncio com o cheiro delicioso de bolo sendo assado e a tortura que era ouvir a voz daquela mulher.

O flagício foi interrompido pelo toque de seu celular e Vicente deslizou o dedo pela tela, atendendo a ligação do irmão gêmeo, Vagner.

— Fala — ele atendeu sem ânimo algum.

Credo, que desânimo — Vagner reclamou. Do outro lado da linha era possível ouvir barulho de conversas ao fundo. Provavelmente o rapaz estaria aproveitando a noite em Paris, onde se mudara a trabalho. — E então, como foi hoje?

— Um fracasso de novo — Vicente respondeu, terminando de beber o refrigerante. — E cortaram minha luz. Além da senhoria estar me cobrando o aluguel.

Ah, Vicente…

— Mas ela tem sido bem legal comigo, disse que tenho mais um mês antes dela expedir uma ordem de despejo — o moreno contou como se fosse uma vitória. Com o acontecido naquele dia, talvez fosse.

Vicente… — O irmão suspirou do outro lado da linha. — E o que você vai fazer? Nenhum progresso com o Seguro Desemprego?

— O advogado disse que deve sair até o final do ano — respondeu amargo, finalizando de vez aquele jantar melancólico.

Vicente foi capaz de ouvir o irmão suspirar novamente.

E o que você vai fazer enquanto isso?

— Continuar procurando… Andei pensando em vender o PS pra pagar algumas contas. Sem luz eu não posso ficar.

O quê?! — Vagner quase gritou e Vicente afastou o celular da orelha por alguns segundos. — Como você vai vender o PS? Você ama esse treco, Vicente, como assim você vai vender??

— Eu sei, eu sei. Mas eu preciso de dinheiro, Vagner. E ainda tenho o PSP — o rapaz tentou soar positivo, mas não foi capaz de convencer o irmão, que o conhecia muito bem.

Escuta, eu posso depositar um dinheiro pra você…

— Não, Vagner, não precisa…

Escuta — interrompeu do outro lado, — eu não posso deixar você vender seu PS. E considere isso como um presente de aniversário alguns meses adiantados, que tal?

— Eu… — A linha emudeceu repentinamente. — Alô? Vagner?

O celular vibrou em sua mão e Vicente afastou-o da orelha, vendo a tela escurecer enquanto a bateria zerava.

Sua noite não podia ficar pior… Talvez conseguisse falar com Vagner na manhã do dia seguinte, através de algum telefone público.

Ai don uana livi witauti u lovi. — Para seu infortúnio, a boleira continuava cantando do outro lado da parede. Problemas de casas geminadas e com paredes praticamente grudadas umas nas outras. — Ai don uana faindi sambebodi nu. — Será que seria má ideia pedir para que a vizinha deixasse-o carregar o celular na casa dela?

É, aquela seria uma longa noite, Vicente logo concluiu.

...

O calor daquele dia estava castigante. Parecia que as calçadas também transpiravam com o sol escaldante, piorando o calor dos passantes. Vicente caminhou pelas sombras dos comércios, entrando na lanchonete em que a amiga trabalhava. Era fim de tarde e início do turno dela, que mais uma vez passaria a noite no estabelecimento.

O rapaz deixou-se desabar sobre a banqueta em frente à bancada, exausto depois de mais um dia de caminhadas e entrega de currículos. Tudo começara de manhã cedo, após pagar as contas de luz atrasadas e mais uma taxa e conseguir a ordem de religamento, graças ao dinheiro que Vagner depositara. Falando nele, conversara com o irmão por um telefone público na hora do almoço, agradecendo e finalizando a conversa do dia anterior.

— Você tá um caco — Iris disse para o rapaz assim que voltou para trás do balcão, tendo entregue o pedido a uma das únicas mesas ocupadas.

— Obrigado pela sinceridade. — Ele apoiou os cotovelos sobre a mesa, observando a ruiva, que riu da resposta.

— Vou pedir pra preparem algo pra você.

— Poderia te beijar por isso, Iris — Vicente agradeceu do jeito dele, fazendo a garçonete corar e sumir rapidamente para a cozinha.

Na mesa ao lado, um sujeito parrudo cessou o ato de comer seu hambúrguer para atender ao celular.

— E então, como foi hoje? — a garçonete questionou ao retornar para trás do balcão.

— Mesma coisa de sempre, mas consegui pagar as contas de luz atrasadas com um dinheiro que o Vagner depositou. Essa noite não vou mais ter o jantar romântico da pobreza, infelizmente — ele brincou com certa acidez pelas palavras e Iris arqueou as sobrancelhas, preocupada.

— O que… — Ela olhou por cima do ombro dele, vendo um grupo de adolescentes chegando. — Já volto e você vai ter que me contar isso direito.

Sozinho no balcão, Vicente tateou o bolso na intenção de pegar o celular para checar as horas, porém, lembrou-se que o aparelho continuava descarregado. Pelo menos poderia carregar quando chegasse em casa.

— Não é como se pudéssemos colocar um anúncio por aí oferecendo o serviço, cara! — exclamou o homem que falava ao telefone com alguém. Vicente não pôde ignorar a conversa ao ouvir a palavra "serviço". — Não é como se alguém muito bom com informática e disposto a trabalhar pra gente fosse simplesmente aparecer por aí, saca? — Instantes de silêncio, provavelmente a pessoa do outro lado da linha respondia. — Seguinte, para de me fazer pressão e se vira com a sua parte, entendeu?

O sujeito encerrou a ligação sem aguardar resposta e bufou irritado, voltando a comer de seu hambúrguer com molho especial.

Pelas falas anteriores, o cidadão procurava por alguém bom em informática para algum serviço. Sem vergonha alguma, Vicente não hesitou em falar com o desconhecido:

— Desculpa por ter ouvido sua conversa, mas… — Se aproximou da mesa, sentando-se na cadeira oposta ao homem. O sujeito vestia-se muito bem, com direito a um relógio bem caro no pulso direito, Vicente percebeu. — Acabei ouvindo sua conversa, sobre estar procurando alguém bom em informática pra um "serviço".

— Você conhece alguém pra isso? — ele perguntou direto, dando uma última bocada em sua comida.

— Conheço muito bem — Vicente brincou, rindo. O desconhecido sequer sorriu. — Eu sou muito bom, modéstia à parte. Trabalhava em uma empresa de TI. Ela fechou tem uns dois meses e desde então eu tenho procurado alguma coisa.

O homem analisou o rapaz em silêncio, com o olhar baixando pelas roupas despojadas, como a blusa estampada pelo escudo do Capitão América. Será que causara uma má impressão?

— E você está procurando qualquer coisa pra trabalhar?

— Bem, desde que dê pra pagar as minhas contas e que não seja análogo a escravidão, eu tô dentro. — Vicente sorriu nervoso pela piada que escapou. Pelo menos o desconhecido não demonstrou descontentamento, apenas o analisou mais uma vez com o olhar pesado.

O homem pegou um guardanapo e, após escrever no papel com uma caneta que tirou do bolso, entregou-o para Vicente.

— Esteja amanhã às seis e meia neste endereço.

— Da manhã?

— Seis e meia da manhã nesse lugar. Seja discreto e não conte para ninguém.

Vicente analisou a rua marcada, não a reconhecendo por nome. Ao menos o bairro não era tão distante de sua própria casa.

— Não quer o meu número?

Ignorando a pergunta do rapaz, o sujeito entregou uma quantia de notas para Iris, que voltava da mesa dos adolescentes com uma bandeja vazia debaixo do braço, e saiu do estabelecimento, deixando para trás os restos de seu lanche.

— Sujeito estranho…

— O que vocês estavam conversando? — Iris perguntou enquanto recolhia o copo e o prato.

— Consegui um serviço!

— O que?! — Iris exclamou, sem tempo para sequer parar para conversar.

Vicente seguiu-a de volta para o balcão. A garçonete lavava os objetos.

— Aquele sujeito estava precisando de alguém bom em informática pra um serviço, eu me candidatei e ele aceitou — disse em sucessão, resumindo os últimos minutos. — Ele disse pra não contar pra ninguém, mas eu confio em você.

Iris retribuiu o sorriso do rapaz e baixou os olhos, fechando a torneira.

— Você não devia ter aceitado, Vicente. Você pelo menos sabe o que é esse serviço?

— Não... Mas é algo relacionado à informática, então... — Ele deu de ombros e Iris balançou a cabeça, contrariada.

— Ainda acho que você não devia ter aceitado. Eu não senti uma energia boa vinda daquele homem — Iris censurou, terminando de secar prato e copo com um pano de prato, que colocou no ombro.

— Você com suas superstições...

Ignorando o tom cético do amigo, a garçonete entrou por alguns instantes na cozinha, voltando de lá com um hambúrguer e um copo de refrigerante, colocando-os na frente de Vicente.

— Já disse que você merecia um beijo por isso? — o rapaz brincou, recebendo uma bordoada com pano de prato de Iris.

Ele começou a comer com gosto o hambúrguer, sorrindo pela oportunidade que surgira de repente. Pela primeira vez em semanas, tinha algo para comemorar.

...

Aquela manhã continuava abafada e com trabalhadores caminhando para pontos de ônibus, estações de metrô ou indo a pé para seus trabalhos. Esse era o caso de Vicente, que estaria reclamando pra valer por ter levantado às cinco e meia da manhã para estar no local marcado às seis e meia. Na sua situação atual, estaria mesmo é dançando pelas escadarias de seu bairro igual ao Coringa em seu filme solo, se isso não fosse atrasá-lo para o serviço que tinha.

O rapaz foi contando os números marcados nas casas, estranhando um pouco estar em um bairro tão afastado do centro e com aparência tão pobre. Bem, quem era ele para reclamar? Mas que era estranho um sujeito tão bem vestido como o do dia anterior mandá-lo para um lugar como aquele, isso era...

Vicente parou em frente a um portãozinho enferrujado e conferiu o endereço anotado no papel. Por mais incrível que parecesse, estava no lugar certo. Começou a procurar uma campainha para anunciar sua presença, porém, não foi necessário, pois o portão se abriu em um ímpeto, sobressaltando-o.

— Oi! Eu sou o Vicente...

— O chefe está esperando — o desconhecido o ignorou, enxotando-o para dentro e fechando o portão.

Em silêncio, guiou o rapaz por um corredor estreito, terminando em uma casinha de fundos. Vicente entrou, deparando-se com uma salinha com sofá e um rack, de onde uma televisão transmitia um daqueles telejornais matutinos. Dois homens estavam sentados e bebendo café enquanto assistiam ao jornalista contar sobre um grupo de golpistas procurados pela polícia. A dupla se virou na direção do rapaz, que ergueu a mão em uma aceno tímido. Será que todas as pessoas ali seriam enormes como um armário e com cara de que poderiam te dar um tiro a qualquer momento?

Ele preferiu não questionar e deixou-se ser guiado pelo mesmo homem, passando por um corredor de portas fechadas e entrando em uma das únicas abertas, sendo a outra um banheiro.

Lá dentro, visualizou uma mesa com um notebook, uma estante de ferro com alguns poucos livros e um sofá no canto, onde estava sentado um único homem que destoava dos outros. Ele fumava, trajando uma bermuda e camiseta de marca. Ao ver Vicente, abriu um sorriso simpático, apagando o cigarro em um cinzeiro largado no sofá.

— Você foi o rapaz contratado pelo Moreira, suponho. — O homem se ergueu e estendeu a mão para cumprimentar Vicente. Fedia a colônia masculina. — César.

— Vicente — apresentou-se pela primeira vez para alguém ali. Olhando para a porta, viu o parado no batente o sujeito enorme que o trouxe, as mãos nos bolsos da calça.

— Está ciente do trabalho que precisa ser feito, correto? — César o guiou para a mesa no centro e Vicente sentou-se frente ao notebook.

— Bem, não... O Moreira, esse deve ser o nome dele, só me disse que precisavam de alguém com bons conhecimentos em informática e eu vim... — César suspirou irritado e buscou um novo cigarro do maço no bolso de sua bermuda.

— Incompetentes... — ele murmurou, pegando um isqueiro do outro bolso e recomeçando a fumar. — Veja bem, Sr. Vicente: eu sou um filantropo, talvez você não tenha ouvido falar de mim na mídia... Você sabe o que é um filantropo, correto? — O rapaz assentiu e ele continuou. — Então deve saber como algumas pessoas por aí sempre tentam acabar com nossos planos, certo? — César abaixou-se e diminuiu o tom de voz, como se contasse um segredo. Vicente torceu o nariz ao fedor de cigarro. — Sabe o poderio que hackers podem ter? — Sequer esperou Vicente responder. — Um grupo deles, golpistas, me hackearam e roubaram milhões da minha conta. Milhões, Sr. Vicente!

— O senhor não deu queixa na polícia? — O rapaz questionou, ousando falar novamente naquela conversa.

— Obviamente. — César se ergueu e voltou a colocar o cigarro na boca, dando um trago longo. — Mas você sabe como eles são, incompetentes. E é aí que você entra.

— Eu?

— Você tem experiência com isso, correto?

— Bem, teve uma vez, na época do ensino médio, que eu me meti em problemas por causa disso, deu até polícia no caso... — Vicente começou a contar, relembrando toda a problemática que aconteceu em sua adolescência e permitiu que conhecesse o irmão mais velho, Evan.

— Perfeito, perfeito, Sr. Vicente. Você é o homem que precisávamos para o trabalho. — César abriu o tampo do notebook e digitou uma senha, desbloqueando-o. — Tudo o que preciso é que você devolva o dinheiro roubado para a minha conta. — Abriu uma página que estivera minimizada, mostrando uma tela preta e uma pequena sucessão de códigos, que só fazia sentido para Vicente ali.

— Mas isso não pode ser...

— Perigoso? Contra a lei? — César riu, achando graça do temor do moreno. — Eles não sabem com quem estão lidando, rapaz — ele diminuiu o tom de voz novamente, o cigarro fumacento preso em seus dedos e empesteando o ambiente ainda mais com o cheiro. — E então? Está dentro? Garanto que terá uma recompensa generosa por isso.

Vicente olhou para a porta, pensando em sair correndo dali e ir embora sem olhar para trás, porém, sua única saída estava bloqueada pelo grandalhão mal encarado. Ele voltou a olhar para César, vendo-o com seu sorriso de gente boníssima. Vicente hesitou, porém...

— Eu aceito — disse incerto e recebeu tapinhas no ombro, vindo do homem poderoso ao lado.

— Ótimo, ótimo, Sr. Vicente. Garanto que sua identidade será mantida em sigilo, estamos de acordo? — Vicente não fez outra coisa senão assentir. — Ótimo! Desejo-lhe um bom trabalho, mas tenho que me despedir, pois tenho uma reunião importante para comparecer esta manhã. Qualquer coisa pode falar com o Madureira ali — Apontou para o homem na porta, — ou outro dos rapazes. Sua recompensa será entregue em sua casa até o final dessa semana.

Sendo aquele dia uma quinta-feira, Vicente poderia pagar as contas atrasadas de água e os dois meses de aluguel antes que estes vencessem na próxima semana.

Não dando espaço para perguntas e reclamações, César foi embora da sala, deixando Vicente sozinho com Madureira. O homem saiu da soleira da porta e sentou-se no sofá, pegando um dos livros da estante e começando a lê-lo.

— Tá quente hoje, né? — Vicente tentou puxar conversa. Mas estava realmente abafado lá dentro, afinal, a sala não tinha janelas para ventilação.

Madureira ligou um ventilador que estava escondido em um dos cantos e colocou em cima da mesa. Vicente agradeceria, se não estivesse tão nervoso.

— Bom trabalho pra nós. — O rapaz riu de nervoso e voltou-se para a tela do eletrônico à sua frente.

Com minutos de análise, concluiu que aquilo não seria mais difícil de quando invadiu os arquivos na adolescência, em busca da verdade sobre seus pais biológicos. Com certo trabalho e suor — aquele ventilador não ajudava muita coisa —, Vicente finalizou tudo o que precisava, sentindo pulsos e dedos doerem após tanta digitação. Olhando para o relógio, viu que passava um pouco das nove e meia da manhã. Apesar do breve café da manhã que tomara, sentia fome.

— Bom trabalho — Madureira manifestou-se pela primeira vez, levantando-se do sofá e observando a tela do notebook por cima do ombro do rapaz. — Agora, rua.

— Mas, mas, o César...

Vicente tentou argumentar, entretanto, foi praticamente enxotado pela casa. Na sala, os dois homens não estavam mais presentes e a TV encontrava-se desligada. Um silêncio quase sepulcral.

— Eu o aviso. Rala. — Madureira continuou guiando-o pelo mesmo corredor pelo qual passaram mais cedo e logo alcançaram o portãozinho enferrujado, abrindo-o. — Não se preocupe com o pagamento, será levado em sua casa em breve. Nós sabemos onde você mora. — Prevendo qual seria a pergunta feita, adiantou-se, não dando espaço para questionamento.

Vicente sentiu um temor correr pela espinha com aquela última informação, porém, o portão foi fechado em sua cara e ele viu-se sozinho na rua deserta. Apenas um homem de bicicleta passava por ali.

— Ótimo! — disse para os céus. — Onde eu fui me meter? — Suspirando, decidiu que o melhor a fazer era dar o fora dali. — Preciso de um café...

...

Após sair do bairro periférico, Vicente passou direto na lanchonete em que Iris trabalhava, entretanto, naquele dia a ruiva pegaria o turno da tarde, chegando às treze horas e saindo às dezenove. O rapaz apenas pediu para que a colega da moça a avisasse que ela poderia passar na casa dele quando saísse do expediente.

Caminhando para casa, chegou lá com um semblante derrotado, tendo passado minutos sob um sol escaldante das onze da manhã. Preferiu tomar um banho frio para aliviar o calor e a cabeça quente. Já pronto e comendo, mais uma vez, um macarrão instantâneo como almoço, resolveu passar a tarde jogando qualquer coisa em seu PS3. A conta de luz viria cara outra vez? Daquele jeito, sem dúvidas. Mas precisava de alguma coisa para aliviar a cabeça e tentar não pensar no ocorrido pela manhã. Iris faria o papel do seu bom senso quando aparecesse mais tarde, enchendo-o de perguntas sobre seu “serviço temporário” e sua atual situação financeira.

Quando o sol estava se pondo e Vicente passou mais uma fase no seu jogo de zumbis, ouviu uma sucessão de palmas em frente à sua casa. Pausando o game, saiu, dando de cara com um dos subordinados de César em seu portão.

— Sr. Vicente, eu poderia entrar? — o sujeito pediu com toda a educação e o rapaz estranhou, pois ainda portava o semblante de quem poderia dar um tiro nele a qualquer momento.

Com medo de que o homem simplesmente pulasse seu portão baixo, Vicente deixou que entrasse, sequer precisando guiá-lo, pois o desconhecido já foi logo entrando.

— Seja bem-vindo, pode entrar — sussurrou irônico enquanto o homem entrava em sua casa.

— Vim trazer o pagamento — anunciou e entregou uma bolsa de pano, que o rapaz sequer percebera que o outro segurava.

— Assim?! Tão rápido? — Apesar de surpreso, ele pegou o objeto oferecido e o abriu sem cerimônias, visualizando maços de dinheiro amontoados dentro da bolsa. Os olhos azuis de Vicente quase saltaram para fora das órbitas quando encarou de volta o sujeito que começava a sair de sua casa. — Mas espera aí! O que eu faço com isso?

— É seu, você deve saber como aproveitar — respondeu sem sequer voltar as costas.

— Mas é muita coisa! O que...

O homem simplesmente saiu do mesmo jeito que entrou, deixando Vicente com um portão aberto e uma sacola cheia de dinheiro na mão. Alguns vizinhos começaram a olhar e Vicente fez o mais sensato: trancou o portão e correu para dentro de casa, fechando a porta.

Deixando a bolsa sobre a mesa de jantar, o moreno mexeu no conteúdo, na intenção de contar o valor contido ali dentro. Porém, desistiu ao ver que era muita coisa.

— Certo, vamos pensar. — Pôs-se a caminhar de um lado para o outro. — César é um filantropo muito rico, ficou tão feliz com o meu trabalho que resolveu me pagar tudo isso, com certeza ele não é um pão duro. Agora tenho dinheiro pra pagar todas as contas e talvez comprar um apartamento com vista pro mar. Problema resolvido.

Parou, como se uma voz na consciência dissesse outra coisa.

— Mas então por que todos aqueles caras mal encarados? Aquele lugar estranho? Pense como o L, Vicente, pense... — Deu batidas na própria testa, como para pegar no tranco, contudo, não adiantou.

Rendeu-se, apoiando as mãos sobre o tampo de madeira da mesa de jantar. Ouviu o soar de uma música e tateou seus bolsos, não encontrando nada. Seguindo o som, que recomeçava mais uma vez, atendeu o celular abandonado no sofá. Era Iris.

Oi, Vicente. Só liguei pra avisar que já tô chegando e preciso que você me espere. Parei o carro numa pizzaria e já tô saindo, vou subir a sua rua. — Vicente ficou mudo e a garota estranhou. — Vicente? Você tá aí?

— Hoje não é um bom dia, Iris... — tentou argumentar e olhou para um dos relógios da parede, vendo que passava das dezenove e trinta. O lado de fora estava às escuras, com as luzes dos postes entrando pelas frestas da cortina.

Dois minutos e já chego aí, vem me receber — Iris ignorou e finalizou a ligação, deixando Vicente apenas com o tu-tu-tu no ouvido.

Ele jogou o celular de volta para o sofá e correu para o banheiro. Seu reflexo o encarava com cabelos negros bagunçados, que ele tentou arrumar com um pente, e jogou um pouco de água no rosto. Enquanto se secava, ouviu seu nome ser gritado do portão e teve que correr para atender a amiga.

— Eu disse que estava chegando — Iris reclamou com uma enorme caixa de pizza em mãos. A caminhonete laranja da garçonete estava estacionada logo atrás.

Vicente abriu o portão, deixando que a amiga entrasse.

— Tive que me deixar minimamente apresentável. Você merece, Iris— tentou soar como um flerte, porém fracassou miseravelmente.

Iris riu e entrou na casa, na intenção de deixar a pizza sobre a mesa. Vicente correu e tirou a bolsa com o dinheiro de cima, largando-a em seu quarto.

— O que era aquilo? — Iris questionou curiosa, sentindo algo estranho no ar.

— Umas coisas antigas que eu achei guardadas — tentou desconversar e foi pegar o controle da TV para mudar de canal. — Vou colocar naquela novela que você gosta.

— Deve estar passando o jornal a essa hora... Pega os pratos pra mim? — Iris perguntou e abriu a caixa da pizza, o cheiro da calabresa e do molho se espalhando pelo ambiente. Vicente começaria a salivar se não estivesse tão nervoso. — Você tá bem? — Iris inquiriu ao ver a louça tremular na mão do amigo.

— Claro, claro, por que não estaria? — Ele deu um sorriso nervoso em resposta e voltou-se ao armário em busca dos talheres, entretanto, derrubou os dois pratos que segurava direto no chão. — Nossa, que desastre! Vou pegar pá e vassoura lá fora. — Precipitou-se para a porta aberta. — Cuidado com o vidro.

— Vicente, tem certeza que tá tudo bem?

Ainda foi capaz de ouvir Iris questionar e respirou fundo.

— Você não tá ajudando, Vicente, não tá ajudando. — Soltou a respiração lentamente. — É apenas uma mala de dinheiro. Muito dinheiro. E você vai lidar com isso amanhã. Se acalma — ordenou para si mesmo e pegou pá e vassoura encostados ao lado do tanque, escondido nos fundos da casa. Ele voltou para dentro. — Pega um saco pra mim no puxador, fazendo um favor? — pediu para Iris assim que entrou.

Roubo milionário é feito no Banco Central. Mais informações com Alice Alves. Alice — Vicente foi capaz de ouvir o âncora do jornal da noite dizer pela TV e parou onde estava, com pá e vassoura em mãos.

Boa noite, Wagner — a repórter cumprimentou em uma transmissão ao vivo, estava em frente à sede da Polícia Federal. — Nesta manhã o banco de dados do Banco Central foi invadido por hackers e cerca de dois milhões e meio de reais foram desviados para uma conta anônima. A polícia suspeita que o roubo milionário foi realizado pelo grupo chefiado pelo estelionatário César Coelho.

Na tela, uma foto de César, o mesmo César de horas atrás, foi posta no ar.

— Meu. Deus.

16 de Agosto de 2020 a las 19:42 0 Reporte Insertar Seguir historia
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