Foi naquele dia de frio e neblina intensos (inverno de 2019), perfeito por uma tênue garoa, que surgira a ideia. Eu permanecia sentado à meia luz, em frente a uma grande fotografia de colação de grau, ornada na parede do meu quarto, enquanto tentava traçar algumas linhas no computador. Há alguns meses o telhado da minha casa havia sido parcialmente estilhaçado por animais à solta correndo sobre ele, e infiltrações de água se espalhavam por partes do teto ─ certamente haviam sido gatos em tempos férteis, ou, talvez, em suas peculiares lidas por parceiras. Minha mente irrequieta não permitia que os nomes que comporiam o meu próximo romance surgissem facilmente. Minha barba resvaladia era constantemente afagada à medida que os sopros em frente à casa sibilavam ininterruptos. Claramente era um daqueles dias de bloqueio criativo. Mas, o que me levara a fantasiar algo puramente fora dos protótipos legais e sociais naquele instante? Talvez a mente de um romancista fugisse da realidade temporal em determinados momentos; quem sabe um ficcionista vivesse realidades paralelas; quiçá fossem enfermidades intelectuais, comuns a muitos escritores desditosos com os mundos que os cercam. As possibilidades eram inúmeras.
Meu nome é Joan Dolac Ferraz e hoje eu percebi que mais de cinquenta por cento das coisas que imaginamos serem perceptíveis, na realidade, não são.
Após transcorrerem exatos quarenta e cinco minutos, sem que nada além de cinco linhas fossem grafadas, levantei-me impelido por um sentimento desconhecido e caminhei até o meu guarda-roupa, retirei um cachecol preto, revesti-me com uma sobreveste e segui até a soleira do jardim encoberto pela umidade tenuemente orvalhada. As brumas não permitiam que se pudesse enxergar a poucos metros de distância. Girei as fechaduras, travando as duas portas de acesso ao interior da casa e segui sob a densa neblina. Quanto mais próximo do crepúsculo, mais intensos o frio e a névoa entre mim e o meu destino incerto, caminhando à meia velocidade e endireitando o meu longo casaco com o corpo.
O que estou fazendo em meio a este frio às sete horas da noite, pensei, à medida que percorria os arredores de um grandioso parque público ─ localizado a mais ou menos sete quilômetros ─, comumente frequentado por jovens casais adolescentes, atletas, músicos iniciantes, apreciadores da tão execrada liamba, ou tão-somente transeuntes sem um fim específico. Em um lapso de memória, abruptamente, eu me observei em uma vultosa distância de casa. Sim, aqueles minutos de caminhada ─ talvez horas ─ se passaram sem que minha mente objetiva percebesse, enquanto vagava sem desígnio.
Normalmente, o parque era fechado ao público às 21h00, quando os bedéis avisavam a todos os frequentadores que os portões do espaço se fechariam até o dia seguinte, às 05h00 da manhã. Comecei a refletir quanto tempo havia se passado desde minha saída até o momento que transpassava diante dos portões principais, de acesso ao interior do ambiente arborizado. Não conseguia entender o que acontecera durante um árduo percurso de quilômetros de distância sem que minha consciência apreendesse ao menos os passos em direção aquele ponto. Nem um resquício de memória.
Estranho, ajuizei, à medida que dobrava o quarteirão e seguia a uma das principais avenidas da cidade.
Caminhando sob os imensos postes de luz, localizados no cerne da extensa avenida de mão dupla, os clarões dos faróis dos carros, por vezes, ofuscavam-me a visão periférica, fazendo com que eu não conseguisse, em alguns momentos, identificar os rostos de possíveis conhecidos, avocando-me ao longe, nas calçadas opostas: nas minhas, esquerda e direita. Apenas acenava com uma das mãos e seguia em frente; ainda não sabia o intuito de caminhar sem finalidade. No fim da avenida havia uma grande bifurcação perfeita por uma praça, com um imenso relógio de ponteiros proporcionais no centro, rodeado por flores nas bordas. Algumas pessoas identificavam aquela zona de “Praça do Relógio de Flores”; “Praça do Relógio”; “Praça das Flores”, ou apenas de “Relógio das Flores”. A rua que eu caminhara era denominada de Av. Rui Barbosa. Observei a hora no grande relógio: marcava 08h30 da noite. Segui até um dos bancos da praça e sentei-me. Aquela ideia que eu tivera antes de sair de casa já não surgia em minha mente, todavia eu não deixava de anotar em um pequeno caderno, o que ia brotando ao longo do percurso ─ talvez fosse esta a intenção da peregrinação: uma simples pesquisa de campo. Entretanto, observando algumas letras grafadas na minha caderneta, a resposta às minhas indagações surgiu repentinamente: Desloquei-me a tamanha distância em busca de inspiração para os meus personagens!, refleti, despontando uma feição parcialmente leda e celebrando tenuemente com uma das mãos, o retorno das minhas reminiscências.
Levantei-me e caminhei ao redor da praça durante minutos, observando algumas pessoas conversarem, enquanto fitava suas feições e associava-as a nomes que possivelmente usaria em meu trabalho literário. Passei outra vez ante o grande relógio e notei que as horas haviam saltado sem resíduo de equilíbrio. Eis a Relatividade posta em prática: os ponteiros apontavam às 10h00 da noite. Estivera tão concentrado nas expressões e em como descrevê-las, que nem notei o tempo passar. Pensei em ir em direção a um táxi para retornar à minha casa, no entanto, uma força adventícia fez com que o meu corpo prosseguisse a pé, caminhando pela mesma via que utilizara há algumas horas. Não estava cansado e o horário ainda era propício para um regresso seguro ao lar. Nos últimos meses havia acontecido uma série de assassínios, roubos, estupros, sequestros e, até mesmo, uma quantidade alarmante de suicídios, na cidade. As causas? Plenamente desconhecidas. Continuei retornando pela mesma avenida, no entanto, dessa vez eu caminhava sobre a calçada da direita. O tráfego de carros abrandara expressivamente, e vez ou outra, alguns coletivos passavam fazendo seus últimos turnos da noite. Novamente eu me aproximava da rua de acesso ao Parque. Àquela hora o ambiente já havia fechado seus portões e somente poucas pessoas passavam por lá. Segui até o calçadão da entrada e observei por alguns instantes o silêncio sepulcral que fazia dentro do lugar. Apenas o som dos ventos sibilando entre as árvores, meneando-as e entrelaçando as folhas de gigantescos eucaliptos, distinguiam o ruído de sussurros e passos na rua, aparentemente deserta.
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O som dos ônibus e caminhões, mesclados aos sons de pássaros aninhados nas árvores à frente de casa, fizeram-me despertar de imediato. Eram 06h30 da manhã. Minha cabeça pesava como se eu houvesse passado um dia completo de etilismo e à noite prosseguira com a ebriedade até pôr-me na cama, indisposto a continuar pelejando contra o sono e a frugalidade. Sentei-me na borda do tálamo, deslizei minhas mãos sobre meus cabelos despenteados, peguei meus óculos sobre a escrivaninha ao lado e levantei-me cambaleante. Meu sobretudo, minha camisa e meu cachecol foram arremessados erraticamente pelo chão, à medida que eu me observava somente com as calças e meias vestidas. Mas... O que aconteceu!, inquiri-me suspirando tenuemente, enquanto franzia a testa confuso.
Após recolher minhas vestes, segui até o banheiro. Trinta minutos depois, encontrava-me arrimado à mesa de café da manhã, segurando um copo de suco com um analgésico, pensando o que acontecera desde minha última admiração em frente ao Parque. Mais uma vez a minha mente falhara e minha memória da noite anterior evadira sem que houvesse resíduo de como eu havia chegado ao lar. Conjecturava consecutivamente que eu estava lidando com alguma patologia cerebral. Naquele instante, surgiu-me a possibilidade de estar sofrendo de amnésia anterógrada, devido aos lapsos de memória serem recentes e eu não conseguir armazenar as novas lembranças. Mas como eu poderia estar sendo afetado por esta enfermidade, se eu me lembrava precisamente das anotações e dos caminhos perfeitos antes de tudo se tornar obscuro? Minhas dúvidas apenas acresciam. Retornei ao computador ─ ainda ligado do dia anterior ─ e abri em uma página de busca. Digitei alguns termos por vez:
Perda de memória... Memória Curta... Amnésia... Encefalite... Demência...
Cada um dos possíveis problemas mentais fora pesquisado e analisado por mim, no entanto, nada do que eu lera semelhava com o que sobreveio a mim. Outra vez, cabisbaixo e observando o vazio, fiquei a forçar minha mente tentando atrair pelo menos os pensamentos mais próximos do momento no qual eu fora dormir a noite passada. Nada. A névoa envolvera todas as minhas lembranças coevas. Olhei a barra de tarefas do notebook e notei uma janela do Word justaposta. Certamente são as cinco linhas que tracei ontem, antes de sair de casa, refleti ainda observando a página de buscas aberta, à medida que alguns anúncios saltavam aos meus olhos. Em um movimento peristáltico, minha mão seguiu com a seta em direção a uma das publicidades e clicou sobre ela. Imediatamente surgiu uma página de notícias, porém não era uma página comum: assassinatos e todos os tipos de atrocidades eram reportados por ela sem nenhum pudor ou censura. Eu já conhecia a página, pois apesar das fortes imagens que se podia observar, ela era muito bem visualizada na região; milhares de pessoas a acessavam diariamente. Sem perceber, rolei a janela para baixo abruptamente; somente as mesmas notícias sobre roubos, furtos e alguns suicídios. Nada além. Rolei a janela lentamente de volta ao caput da página, as mesmas imagens retornaram para baixo enquanto surgia o início de uma reportagem, aparentemente da madrugada anterior. Cliquei sobre o link:
Domingo, 30 de Junho de 2019.
NOTÍCIAS EM FOCO
MASSACRE EM GARGANTUA: VÍTIMAS ENCONTRADAS NAS CERCANIAS E EM BAIRRO NOBRE DA CIDADE.
Nesta madrugada, por volta das 02h00 da manhã, partes de corpos de duas adolescentes foram encontradas sob escombros próximos a parte traseira da rodoviária da cidade. Aparentemente as vítimas tinham entre dezessete e dezoito anos. Fontes nos informaram que apenas os corpos dilacerados permaneciam no local e que suas cabeças haviam desaparecido, dificultando o trabalho investigativo da perícia na identificação dos restos letíficos, pois não havia nenhum tipo de documento com elas. Seus corpos foram encaminhados ao Instituto Médico Legal (IML) para análise post mortem. Para observação e uma possível cooperação com a polícia, clique aqui. Neste link você poderá observar as imagens. Atenção: não abra o link se não suportar imagens fortes.
Horas antes dos dois assassinatos, outro corpo fora encontrado próximo ao teatro localizado de fronte a uma praça denominada de “Grécia”, por seus frequentadores. Alguns “roqueiros” que costumam ir ao local beber e usar alguns entorpecentes enquanto tocam violão, notaram algo estranho em uma das plantas circulares dispostas no local. Um deles dissera que “havia ido urinar, quando percebera uma silhueta escura sentada, recostada em uma das paredes atrás de uma das plantas”, quando se aproximou, tomou um sobressalto repentino. “Nunca tinha visto algo daquele jeito, cara! Só tinha o corpo da garota, sem a cabeça e com um corte de uma orelha a outra, irmão! Ou melhor: com um ‘giro’ de trezentos e sessenta graus, louco! Só deixaram o tronco da mina! Puts, que sinistro, maluco! Dá até para criar uma música com essa tragédia, cara! (sic)”, disse um dos pretensos rockers, aparentando ainda estar sob efeito de álcool.
Nossa equipe conseguiu chegar ao local junto com a polícia e registrou o fato em algumas fotos. Para ver, clique aqui. Votaremos com mais informações em breve. O site da verdade nua e crua!
Sobre o site. Política de privacidade. Contate-nos.
Sobressaltado, continuei observando as fotos à frente. Tamanha fora a brutalidade empregada naquelas frágeis adolescentes que eu não mais observava as fotos, minha atenção voltava-se ao vazio e, algumas vezes retornava repentinamente. Determinados devaneios eram constantes. Após alguns minutos, minhas vistas se voltaram novamente para a barra de tarefas do computador e de imediato retornei ao estado normal de percepção. Fechei a página recheada de desventuras, enquanto deslizava a seta até a janela do Word. Em um clique, a área de trabalho foi preenchida por uma página inteiramente escrita. O primeiro capítulo do meu romance estava grafado completamente e a barrinha de letras piscava intermitentemente dois parágrafos abaixo, indicando o início do segundo capítulo. O quê?! Mas, quem escreveu isto?, interroguei-me.
Estático, comecei a ler o conteúdo da escrita que prosseguia exatamente depois das primeiras cinco linhas traçadas no dia anterior. O capítulo estava primoroso, mas não se assemelhara em nada do que eu havia pesquisado e permanecia registrado no meu livrete, assentado ao lado do computador. Não foi isto que anotei, disse a mim mesmo, abrindo o canhenho para confirmar. Todo o teor grafado em dez laudas, não condizia com absolutamente nada e, apesar de a escrita não ser igual, algumas partes semelhavam demasiadamente com a minha forma de escrever. Incrível!
Minutos depois, um barulho amadeirado surgiu no quarto central da casa. Girei a cabeça abruptamente para trás, arqueei o corpo, intrigado com o som e segui até o cômodo. Foram golpes de portas sendo fechadas; naquele momento eu imaginei serem portas de guarda-roupas. Ao chegar em frete à porta, girei a maçaneta, impeli-a lentamente, enquanto observava pela fresta que surgia ante meus olhos. Alguém caminhava de um lado a outro, vestia uma camisa de mangas longas e botões, observando-se pelo espelho suspenso na parede atrás da porta de entrada. Meu receio aumentava continuamente, enquanto o interstício entre a passagem se alargava. Aproximei meu rosto vagarosamente da fenda, ajustei minhas vistas para observar atrás da porta, quando, repentinamente, uma mão agarra a maçaneta e puxa, dilatando por completo a entrada.
─ Bom dia, meu amigo! Acordou cedo ─ ele diz olhando o relógio de pulso que marcava 07h30 da manhã.
Fiquei parado à sua frente, observando aquela figura. Não me movi durante alguns segundos, enquanto fitava de cima a baixo o seu contorno. Ao mesmo tempo, a dúvida e o receio haviam me tomado. Contudo, um tanto de ledice e alívio começavam a interatuar com o meu corpo ─ após o pequeno susto, as pressões arteriais iniciaram um gradativo arrefecimento. Olhei-o nos olhos novamente e lancei um tênue e intrigado sorriso pelo canto da boca.
─ Mas... como você chegou aqui? Quanto tempo, irmão! Bom dia! ─ retruquei, enquanto envolvia os braços nele e dava umas tapas em suas costas, abraçando-o.
Ele franziu a testa e olhou-me instantes após eu me afastar.
─ Como assim, “como eu cheguei aqui”?... ─ inquiri-me ele. ─ Nós nos encontramos próximo ao Teatro Ariano Suassuna, ontem à noite. Você me convidou a passar uns dias em sua casa, cara. Não lembra?
Titubeei. Não me recordava de absolutamente nada.
─ Você não estava morando em algum estado do Sul? ─ perguntei ainda confuso.
─ Sim, ainda estou, cheguei há poucos dias. Estou passando as férias em minha terra natal. Preocupa-me você não se lembrar, pois passamos horas conversando sobre isto e tantos outros assuntos. Na verdade, não acredito que te encontrei às 01h30 da manhã caminhando pela rua, cara. Eu estava procurando um hotel e não conseguia encontrar ninguém que me indicasse.
─ Que ótimo ─ redargui com uma expressão incerta. ─ Na verdade eu não me recordo de muita coisa sobre ontem. Minha mente tem estado confusa esses dias. Mas isto é um problema meu. Esqueçamos e sigamos até a cozinha, provavelmente você está pensando no café da manhã ─ completei sorrindo.
─ Lógico! Estou com muita fome, cara. Comeria um boi, mesmo este horário! ─ retrucou sem nenhuma timidez, referindo-se ao horário impróprio para aquele tipo de alimento. ─ Vamos ao rango?!
─ Que assim seja.
Voltei-me ante o caminho da cozinha e segui acompanhado por ele, vestindo um longo sobretudo com um extenso cachecol por cima de sua blusa de linho branco. Claudius Lucius (sim, seu nome preiteava o senador romano do século III, Lucius Tiberius Claudius Pompeu aos mesmos faustos, mas com arquétipo contrário. Erro este, somente percebido por seus pais horas depois do seu registro no cartório oficial) era meu amigo de infância e sempre estivera junto a mim, passando a maior parte da transição de criança à adolescência comigo. Éramos praticamente irmãos. Em verdade, às vezes eu não conseguia compreender o porquê da minha genetriz sempre conversar conosco somente direcionando sua feição para mim. Nunca olhava nos olhos de Lucius.
─ A propósito, você está muito elegante. Agrada-me este tipo de indumentária, maiormente no inverno. Que bom que veio preparado para o clima do alto das colinas.
─ Conheço bem, minha terra, camarada ─ respondeu-me.
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08h30 da manhã. Três dias haviam passado desde o reencontro com Lucius. Nossas conversas retornaram à mesma cadência dos tempos púberes com facilidade. À medida que passávamos mais tempo juntos, a velha familiaridade brandia-nos como parentes recém-encontrados. As conversações que alimentavam nossas ideias adolescentes amadureceram significativamente, e, o que antes percebíamos como produtivos diálogos, hoje não ultrapassavam a barreira da inexperiência. Os antigos livros didáticos que líamos, agora, eram refutados com antíteses e sínteses organizadas. Dos primórdios da filosofia aos mais recentes e consagrados filósofos, ao menos um resíduo do saber de cada um deles era utilizado em nossas conversas.
Ergui-me da poltrona que me mantinha confortavelmente atento às expressões de Lucius, joguei uma das pontas do cachecol para trás e segui ao computador. Sentei-me e abri a lauda do Word que continha meu romance. Há dias eu compelia minha mente a lembrar de qualquer que fosse o termo escrito por mim na obra à frente. Verdadeiramente, não classificava aquele trabalho de minha autoria, mesmo que houvesse incontáveis indicativos de aparência datilográfica e criativa.
─ Há algo que me perturba desde a sua chegada em minha residência, Lucius ─ disse observando o amigo ao lado. ─ Estás aqui há três dias, praticamente não saímos de casa, a não ser para caminhar um pouco durante a noite. Certamente estou com um bloqueio criativo e não voltei ao meu trabalho desde então. Não sei como surgiram estes capítulos em meu romance. Por acaso você está escrevendo por mim?
Quatro capítulos plenos formavam o encetar de um romance policial extraordinário. A escrita e as ideias contidas no início da obra, seriam cobiçadas por qualquer escritor em fase roída. Não era o que estava ocorrendo comigo, mas aquelas primeiras linhas traçadas, faziam-me ansiar tão nobre grafia. Impressionava a perfeita junção entre as primeiras palavras escritas por mim e o seguimento até o quarto capítulo. Parecia que quem as escrevera tinha acesso às minhas memórias.
─ Eu?! ─ retrucou Lucius, lançando um tênue sorriso. ─ Cara, faz muito tempo que não escrevo bulhufas. ─ E o palavreado dele asseverava a sua afirmação. ─ Desde quando fui embora, não faço mais nada, além de trabalhar num hotel... Mas, se não me engano, vi a luz de sua luminária acesa esses dias que estou aqui. Você não se lembra de ter trabalhado dias atrás?
─ Certamente, não. Os momentos que saímos e retornamos, sempre segui diretamente à minha cama, após nossos diálogos noturnos. Nem ao menos, sentei-me diante da tela, ansiando que algo surgisse em mente.
Volvi outra vez minhas vistas a tela do notebook e adentrei a página das tétricas notícias: “NOTÍCIAS EM FOCO”, surgiu no caput da página. Novamente!, pensei extasiado, enquanto observava a reportagem de mais um terrível assassínio.
Meus olhos deslizavam pelas linhas escritas na reportagem, à medida que observava as fotos de órgãos e os quatro membros de uma adolescente, expostos, dependurados sobre a maior catedral da cidade, postes, lojas e igreja. Os antebraços da vítima se dispunham em lados opostos, presos a sacadas de duas lojas posicionadas uma de fronte a outra, no meão da rua; seus pés foram pregados no final da avenida comercial, no alto de uma igreja neopentecostal; seus intestinos, estirados ─ até um dos postes ─ ainda de dentro do ventre, foram presos em um posto policial, localizado à frente do grande santuário, construído em preito a Santo Antônio. Na catedral, o coração da púbere vítima permanecia estadeado no cume da entrada central do templo.
A maneira que os órgãos e membros foram dispostos formava uma perfeita cruz ao longo de alguns quilômetros de extensão. A incógnita se refugiava nas cabeças inexistentes. Porém, claramente aqueles crimes tinham algum ligame religioso e podiam estar vinculados analogamente a Jesus Cristo, ou não. Tão-somente a figura de uma cruz não era indicativo satisfatório para uma analogia com o Cristo, embora Ele fosse a culminância dos crucificados ao longo da história.
Quinta-feira, 04 de Julho de 2019.
NOTÍCIAS EM FOCO
INCESSANTE TERROR: CRIMES DE CARNÍFECE EM GARGANTUA SEGUEM SEM SOLUÇÃO.
Mais uma vez o povo se encontra em choque, partes do corpo de uma mulher foram encontradas em diferentes pontos da cidade de Gargantua. O assassino fora tão audaz, que espalhara órgãos e membros da moça pelo maior centro de comercialização da cidade, sem temer ao menos ser filmado ou visto por alguma câmera de segurança dos prédios.
As polícias civil e militar cercaram as imediações e sustaram a transição de pessoas e a abertura das lojas na manhã desta quinta-feira ─ no local ─, enquanto removiam os restos mortais e analisavam a motivação dos possíveis criminosos.
Nossa equipe de reportagem procurou o comandante do caso e obteve algumas informações por escrito, a respeito. Perguntamos se fora o mesmo assassino que matara as vítimas há quatro dias e se havia uma possível razão para tais aberrações. O comandante, Sarg. Carlos Rangel, disse-nos por nota que “possivelmente os assassinos seriam diferentes, pois seria quase impossível alguém cometer crimes àqueles moldes e não ser avistado por ninguém, nem mesmo uma câmera de segurança (sic). Ele não poderia estar nesses lugares tão rapidamente; além de não conseguir fazer isto sozinho”. Ao ser questionado sobre a identificação da moça, o sargento nos revelou que uma identidade (Doc.) fora encontrada, no entanto, ainda não é possível saber se se trata da mesma pessoa, visto que a cabeça dessa vítima também não fora encontrada. “Porém, pela forma de agir, há uma remota possibilidade de serem criminosos com afinidades e relacionamento próximo, pois eles estão levando as cabeças de todas as vítimas (sic). Resta-nos saber o motivo e identificá-los como homicidas em série... é uma hipótese, mas ainda não trabalhamos com ela”, relatou o oficial. O “corpo” foi encaminhado ao IML e aguarda confirmação de agnação com possíveis parentes.
Voltaremos com mais informações em breve. O site da verdade nua e crua!
Sobre o site. Política de privacidade. Contate-nos.
Ao término da leitura e observação das fotos expostas horrendamente pelo sítio de notícias, abri a janela do Word. Meus olhos deslizavam da esquerda à direita, fitando cautelosamente cada linha grafada no transcursar do romance. Não pode ser!, olhei obstupefato. Obviamente, Lucius percebeu minha reação, mas não emitiu ruído algum. A apreensão com outras pessoas não condizia com os seus traços morais. Muito de sua personalidade semelhava à ataraxia, esta, vista como patologia, não como Demócrito a descrevia em suas análises filosóficas.
O antigo filósofo fora o primeiro estudioso a usar a palavra ataraxia para retratar a ausência de preocupação nas pessoas. Entretanto, ele arregimentava o termo ao sentimento de felicidade, definindo-a ─ a felicidade ─ como um bem-estar prazeroso e simétrico, mesclado ao sentimento ataráxico. Mais tarde os epicuristas, estoicos e céticos centralizaram suas explorações nesta linha de reflexão.
Finalizei a leitura dos quatro capítulos, larguei o mouse adaptado no notebook e segui até a poltrona. Ao lado, um maço de cigarros jazia em cima de uma mesa de canto, adornada por um cinzeiro. Lançando um cigarro à boca, a chama do isqueiro já flamejava à frente, enquanto a brasa cintilava devido às sorvidas dadas por meus pulmões, seguindo com fortes sopros de fumaça ao alto. Lucius, somente me observava fitar o vazio. Enquanto eu fumava, ele bebia uma suntuosa taça de vinho seco, de pernas cruzadas, sobrepostas, e recostado no assento do sofá. Nenhuma arguição adveio dele durante mais de uma hora. Neste interim, mais de uma dezena de cigarros preenchiam o cinzeiro, enquanto Lucius iniciara a segunda garrafa de vinho. Olhei para ele e, de repente, o questionei:
─ Você chegou a ler a reportagem, Lucius?
─ Bem antes de você, camarada ─ redarguiu sorrindo.
Franzi a testa intrigado.
─ Antes de mim? Mas, como você fez isso sem que eu chegasse a ver. Estive com você o tempo todo.
Ele introduz a mão dentro de um dos bolsos do seu sobretudo e retira pacientemente; em sua mão continha um celular.
─ Não sei você, mas eu uso este aparelhinho para me comunicar e acessar a internet, cara ─ disse, encarando-me com uma expressão irônica.
Observei-o um pouco opresso e sorri.
─ Ah, certamente! Por um momento me esqueci deste pequeno detalhe... Por sinal, o seu telefone é semelhante ao meu ─ retruquei observando o aparelho.
─ Temos gostos parecidos, amigo.
─ Você chegou a ler o meu romance, também? ─ inquiri novamente, retornando ao assunto.
─ Algumas partes, enquanto você tomava banho uns dias atrás. Não era pra ler?
Na verdade, eu execrava pessoas que mexessem em meu trabalho inacabado. Talvez isto fosse um descuido com os leitores e apreciadores do préstito literário em decurso. Até mesmo uma autonegligência, pois uma análise prévia é extremamente benéfica à publicação, asseverando aos leitores um trabalho conforme seus anseios.
─ Não se trata disso. Quero dizer: você notou alguma semelhança entre os assassinatos ocorridos e o que está escrito na minha obra? ─ objetei intrigado.
Lucius me olhou, ele tinha acabado de tragar um gole de vinho. Suas burlas foram se expandindo, seus olhos cerrando lentamente, à medida que seus dentes roxeados surgiam rematando um sorriso jocoso e altissonante. Ele levou as mãos à barriga, arqueou o corpo e a cabeça entre as pernas e seguiu escarnecendo.
─ Você está insinuando que foi você quem matou essas pessoas, louco? ─ disse gargalhando.
─ Claro que não! ─ retorqui enrubescido. ─ Nem me lembro de ter escrito aquelas páginas. Mas, confesso que notei uma tênue semelhança com os últimos acontecimentos.
─ Cara, você deve ter fixado algumas imagens em sua mente e depois as transferiu para o romance. Tu andas lendo muito aquele site tenebroso. Sei que você gosta de escrever sobre esses assuntos, mas se atrelar aos casos de feminicídios é exagero!
Embora algumas passagens do livro semelhassem com as notícias, Lucius estava correto: era um absurdo este tipo de pensamento. E como eu havia afirmado: não sabia nem de quem era a autoria da obra em construção. Cheguei a imaginar que minha casa estava sendo invadida à noite, porém, o invasor, ao invés de desservir, ele me ajudava com o trabalho. Este bem feitor só poderia existir na mente tola de uma criança, e era o que este tipo de reflexão me convertia: um ser acriançado. Quais as chances de um propenso escritor, invasor de casas, adentrar minha residência para me auxiliar com a escrita que não o beneficiaria em nada? Burlesco!
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“Noite do Pop! Rodízio de Sushi até às 22h00. Somente hoje, a partir das 21h00”, estadeava um enorme cartaz na frente de um suntuoso bar da cidade.
Anoiteceu rapidamente. As pessoas que tinham avistado o cartaz enquanto transitavam pela avenida contígua ao bar, já se dispunham nas mesas reservadas no piso súpero do ambiente, composto por um restaurante selado com vidros transparentes em uma parte mais alta, à medida que um metro a baixo, o espaço era aviado com um pequeno palco para apresentações, rodeado por mesas. Os grupos musicais contratados aquela noite seguiram com seus concertos até às três horas da manhã, quando os primeiros indivíduos começaram a deixar o local. Altivas vozes retiniam nas ruas outrora vazias; clientes cambaleavam sobre as calçadas; regurgitações reiteradas nos meios-fios e ronronares de carros, agora supriam os vácuos das alamedas e estreitas vias.
Uma voluptuosa mulher seguia a rua à direita do bar, diligenciando seus passos e apoiando-se nas paredes atraídas por seus olhares embriagados. Sua sensibilidade e percepção habituais já não respondiam as mensagens neurológicas, suas reações transpareciam para o mais longínquo indivíduo a sua vulnerabilidade etilista. Uma silhueta escura a seguia simultaneamente a dez metros de distância, ponderando cada movimento emitido por ela. A ebriedade não permitia que ela se atentasse a quaisquer atitudes em seu derredor; a ausência de apreensão acarretada pela ingestão demasiada de álcool havia a envolvido completamente. O silêncio era o único atuante nas ruas escuras do percurso e somente às vezes o salto alto do sapato dela, quando pisado fortemente, dissolvia a quietude das vielas transcorridas. O incógnito perfil se aproximava lentamente todas as vezes que beiravam os logradouros apagados e vagos. Àquela hora, grande parte da população da cidade permanecia em sono profundo. Dez minutos se passaram durante a caminhada do bar até a rua adjunta à avenida que seguia diametralmente à casa da mulher. Desde que se retirara do botequim e pusera-se a marchar temulenta, sozinha e a pé, não havia olhado uma única vez às suas costas (isto corroborava as explicações psicológicas relativas à falta de temor induzida pelo líquido etílico), facilitando a aproximação pelo desconhecido.
Cinco metros era a distância que separava o indivíduo da moça alcoolizada e leviana com a sua possível segurança. Seus passos aceleravam, à medida que ela se aproximava de sua morada. Obviamente o perseguidor conhecia o refúgio de repouso da mulher e desejava abeirar-se dela o mais rápido possível. A um metro de alcance, o desconhecido a cumprimenta:
─ Olá, senhorita. Tudo bem? Necessita de ajuda? ─ inquiri a vulnerável mulher.
Sobressaltada com a abrupta aproximação e pergunta, a moça, tremeluzente, recolhe seu casaco, fechando-o e apertando-o com as duas mãos no centro do seu corpo. Ela o fita rapidamente, ainda com as vistas turvas e retorna o olhar ao chão, tentando manter seu equilíbrio.
─ Obri... gada, senhor. Es... tou bem. Já tô perto da minha casa ─ redargui com a voz intervalada, devido à embriaguez. ─ O... bri... gada! O... bri... gada!
─ Tudo bem, senhorita. Espero que siga em paz ─ retrucou, enquanto abria um sobretudo e retirava um extenso punhal da parte de trás da vestimenta, diminuindo os passos.
Ela seguiu como se não houvesse falado com ninguém. Talvez fosse algo da sua cabeça, imaginando as mais diversas volúpias e o que faria quando chegasse ao lar: sua sessão de autossatisfação lúbrica sempre fora obrigatória antes de dormir; estivesse bêbada ou não.
Duas placas adjuntas e expostas no vértice da esquina estadeavam ─ presas em um poste ─ os nomes das Ruas Getúlio Vargas e Virgulino Ferreira, duas figuras que estiveram em lados opostos da história, neste instante faziam parceria para identificação dos caminhos da cidade. Uma grande ironia. A senhorita vira à esquerda, seguindo pela Rua Virgulino Ferreira e mais uma vez decai sobre uma das paredes. Ela impele seu corpo novamente ao caminho e suspira: Foi por pouco!, diz zombando de si mesma, com um sorriso satírico. Acho que bebi demais... Hahaha!
A figura havia se afastado uns metros após ter oferecido ajuda à desconhecida e ela se recusara momentos atrás, agora, apenas parte do seu rosto se despontava no canto da esquina. Ele fitava atentamente todas as casas e prédios ao redor: absoluto breu. Mesmo que tentassem observar do alto, não enxergariam nada, pois as brumas tomavam as ruas por completo. Ele caminha sorrateiramente, aumentando os passos de forma contínua e aproxima-se outra vez da mulher. O seu punhal prateado, pontiagudo e fino, reluzia com as poucas luzes de alguns postes que não foram danificados por possíveis delinquentes. Com a mão esquerda estirada à sua frente e o punhal apontado por trás da ébria, em posição de assalto, o incógnito senhor envolve o corpo dela, segurando-a pelo tronco, sob os seios, e introduz o seu pequeno gládio na parte de trás da cabeça, alinhado com o Cerebelo, atingindo a Ponte de Varólio e transfixando até o Lobo Temporal. Abruptamente, a mulher se desequilibra e perde suas forças musculares, indo ao chão no mesmo instante. O assassino a pega nos braços velozmente e adentra uma rua plenamente tetra. Ele observa seu relógio fulgente com uma luz interna: 03h35 da manhã. O corpo fora posicionado abaixo de uma densa árvore, de galhos e folhas vergados até o chão. Ele agacha-se ante ela: a pouca luz que chegava até os dois, da rua cardinal, era suficiente para iniciar o seu labor.
Novamente, ele introduz o punhal extenso e pontiagudo no pescoço dela e inicia movimentos de traz para frente, como se estivesse serrando uma madeira. A laringe da vítima já se despontava aberta pela metade, à medida que a faca deslizava entre os músculos, cortando-os vagarosamente. Sua mão era impelida a cada tendão cortado e o sangue vertia intensamente das artérias cárdicas. Após alguns minutos, a cabeça da mulher decai para o lado, mantendo-se ainda presa por um tênue pedaço de pele. O homicida crava seus olhos nela e transpõe a lâmina rapidamente nas sobras de pele, liberando o crânio por completo. Ele retira uma sacola fabricada com um couro flexível e estampilhado de dentro de suas longas vestes, insere a cabeça dentro, enquanto caminha naturalmente de volta ao seu caminho, deixando somente o corpo recostado na árvore à espera da plateia admiradora da alvorada.
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06 de Julho de 2019, seis horas e trinta minutos da manhã. Lucius tinha seguido até a sala logo após terminar a refeição matutina e pusera-se a ler um dos meus primeiros livros lançados. Eu não tinha percebido que um dos meus trabalhos estava em meio à sua apreciação e muito menos que já havia transposto o meão dele. Aproximei-me do meu estimado assento e acendi um cigarro, enquanto o observava. Seus olhos corriam da esquerda para a direita, submergidos no mar de letras. Profundamente atento, ele não percebera minha justaposição sorrateira; pelo menos foi o que aparentou. Convergido na satisfação suscitada pelas fumaças tóxicas inaladas pelos meus pulmões, levei alguns minutos para retornar consciencioso. Recostei na minha poltrona, com as pernas cruzadas, e observei-o outra vez.
─ Então, a leitura está lhe aprazendo, Lucius? ─ indaguei enquanto ele umedecia os dedos e virava uma das páginas lentamente.
─ Uma ótima e envolvente estória... só acho que você deveria ter mudado o cenário: este enredo se passando no interior, mais precisamente nos sítios das redondezas de Pernambuco.... ─ Ele se silencia por alguns segundos. ─ Francamente, não gostei. Desculpe-me a crítica.
Olhei-o furioso como nunca o fizera antes. Não por causa da crítica ao trabalho, mas por sua preterição ao seu berço acolhedor; sua terra natal... minha terra natal e dos meus ancestrais. Talvez ele também não tivesse percebido, mas todo o conteúdo descritivo sobreveio no cenário do Agreste nordestino exatamente porque a pesquisa para elaboração da obra fora feita lá. Assim, o cenário e diálogos satisfaziam os anseios postulados pela escrita legítima.
─ Tenho a impressão de não ter escutado bem. Você está depreciando sua terra e origens? O encetar da história deste país? Isto é um absurdo! Compreendo suas críticas ao meu labor, porém, ao meu lar, jamais! Talvez você tenha se corrompido pelos hábitos estranhos ao seu íntimo, se assim o for, isto é transitório; mesmo assim, medíocre.
Sem mostrar receio por suas afirmações, Lucius prosseguiu objetando sem coerência, defendendo o indefensável. Obviamente seus costumes haviam se readaptado aos hábitos do Sul americanizado e a sua forma de observar as diversidades demudaram.
─ Meu querido amigo, nunca serei contra a terra onde nasci, mas não rejeito a que me dá comida e morada.
Aquelas palavras tinham soado como grandes agulhas sendo introduzidas nas minhas vias auditivas. Era uma afirmação de plena submissão regional e de caráter. Sim, suas palavras suscitaram a minha ira, que contida após alguns instantes, fez-me prosseguir repreendendo-o:
─ Diga-se de um homem que acolhe com idolatria o carnífice de seu povo, como os galgos agrilhoados aos amos. Aqueles que desdenham o seu piso, prostrados sob seus opositores, são beneméritos dos despojos lançados ao solo sem benefício de vindicação. Se as expressões de aviltamento são a ele desconhecidas, que faça o uso das trevas unicamente em seu detrimento, pois as moléstias partilhadas não são virtuosas ao irmão dessemelhante. Quando atuas nas alturas das relvas, há de permaneceres rastejando e implementando o que melhor se amolda a ti: o chão.
Ele apanhou uma garrafa de vinho e verteu o líquido em uma taça. Sua expressão incerta apontava a tolice que compunha sua nova maneira de refletir ante o servilismo reprimido em seu inconsciente. No entanto, suas palavras também poderiam ser fruto do seu consciente desvirtuado. De qualquer forma, sua postura se tornara sinuosa e só um recuo à sua essência o despertaria.
─ O que você acabou de falar eu li em seu livro há poucos dias, mas só agora entendi o que tu quiseste dizer com essa afirmação ─ retruca saboreando o etílico roxeado. ─ De qualquer forma, talvez eu tenha ultrapassado os limites, mesmo. Mas deixe isto pra lá, cara, não vamos discutir.
─ Não é algo a ser descartado tão facilmente, mas, por hora, deixemos a estricção ausente das nossas conversas ─ retruquei.
Após algumas horas de conversação, Lucius ergue-se da cadeira carregando sua taça de vinho em direção ao meu quarto e senta-se em minha escrivaninha. Eu, tão-somente o havia seguido e observava suas ações à frente da tela do computador, que marcava 09h30 no relógio do canto direito abaixo. A seta deslizava até as guias abertas, e como era de se imaginar, o site “Notícias Em Foco” estava entre elas. Meus olhos transcorreram o painel em direção à barra de tarefas e fitaram a janela do Word sobreposta. Aquilo não mais me surpreendia, dadas as circunstâncias dos dias mais recentes. No site, eu já imaginava o que trazia em sua notícia de capa; mais mortes horrendas. Mesmo relutante, aproximei-me dele e observei o que prendia sua atenção.
─ Você viu isso, Joan? ─ perguntou-me apontando a tela. ─ Mais uma infeliz. Veja.
─ Outra?! ─ redargui abismado. ─ Não restam dúvidas que a polícia está diante de um homicida em série. Ou melhor, utilizando mais adequadamente o termo: feminicida. Com essa moça o número de vítimas eleva-se a quatro... Preocupante.
Sábado, 06 de Julho de 2019.
NOTÍCIAS EM FOCO
ÚLTIMAS NOTÍCIAS: CARNÍFICE DE GARGANTUA
DILACERA MAIS UMA MULHER.
Na manhã deste sábado, os moradores da Rua Princesa Isabel, paralela à Avenida Virgulino Ferreira, tiveram uma terrível surpresa ao abrirem as portas de suas casas minutos após tomarem seus cafés da manhã.
A equipe de reportagem do “Notícias Em Foco” recebeu a informação às 07h00 da manhã, quando uma de nossas fontes nos ligou confirmando a presença da Polícia Científica no local do assassinato. Precisamente, às 07h10 estávamos no local, registramos imagens (clique aqui) e entrevistamos o Detetive Calaro, que agora está à frente do caso. Ele nos revelou, sem nenhum equívoco, que as mortes foram oriundas de um único indivíduo e todas as investigações apontavam para um assassino em série, contrariando as antigas declarações do Sarg. Rangel. Disse-nos que já tinham traçado uma linha de raciocínio e possivelmente “este caminho levará ao matador”.
Calaro declarou: “Desde o início das investigações o ex-comandante do caso, o Sarg. Carlos Rangel, fora extremamente cauteloso com o recolhimento de pistas e me reportando com detalhes como tinha acontecido as demais mortes. Já tenho todo um diagrama pronto sobre sua possível motivação. No entanto, ainda é muito cedo para afiançar que ele esteja agindo sob este propósito”. Quando perguntado quais os propósitos do feminicida, o detetive se limitou a esclarecer apenas que se tratava de um serial killer e suas ações advinham sob pretextos religiosos. Mas que ainda não tinha certeza de sua afirmação e estava estudando o caso.
Omélia Calcutá de Olinda tinha 23 anos e cursava História com ênfase teológica. Ao ser atacada, a vítima deixara cair sua bolsa próximo à esquina da rua, o que descarta a possibilidade de assalto, segundo o detetive. Ele também nos revelou a identidade das outras mulheres assassinadas nos últimos seis dias: Stella Briaria de Junqueira, Amanda Tantos Oliveira e Lívia Andrade de Alencar. Ao revelar os nomes das vítimas, o detetive nos deu um indicativo de que as alcunhas das falecidas podiam ser uma das melhores pistas, assim como a ausência de suas cabeças. “Em breve farei um pronunciamento à imprensa sobre o andamento das investigações e o que motivou esse indivíduo a cometer estas barbaridades. Estou perto, covarde! (sic)”, disse o investigador em clara referência ao Carnífice de Gargantua.
Voltaremos com mais informações em breve. O site da verdade nua e crua!
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Lucius volve sua cabeça e fita os meus olhos densamente.
─ Você ainda não sabe de nada. ─ Ele passa a seta sobre a lauda do Word e abre o meu trabalho. ─ Leia a sua obra.
Observei sua expressão atentamente, enquanto ele se levantava da cadeira e caminhava em direção à saída. Imaginei que ficaria ao meu lado.
─ Você vai a algum lugar? ─ indaguei.
─ Espero você na sala, preciso tomar mais vinho. Não imaginei que aqui estivesse tão frio, irmão! ─ objeta da parte de fora do quarto, à medida que sua voz retinia pela casa.
O impossível parecia estar acontecendo. As linhas grafadas no meu computador passavam por meus olhos incrédulos, lentamente. Cada parágrafo escrito franzia o meu rosto e todos os meus pelos eriçavam continuamente. Parecia que ventos gélidos transpassavam o meu corpo totalmente desprotegido; sem nenhuma roupa. Outra vez, eu não fazia ideia de quem escrevera aquelas palavras e criara uma estória impecável sem alguma pesquisa, seja de qual fosse o tipo: exploratória, de campo... Enfim, não entendia como aquilo estava surgindo na minha pasta de trabalho e muito menos quem seria esse ser caridoso.
Isto é brincadeira!, pensei ainda percorrendo as linhas do romance. Com certeza este autor caritativo é o Lucius. Obviamente não sou eu, nem cheguei perto destas linhas.
Vinte minutos depois eu estava ao lado de Lucius mais uma vez. Minha mente alheia ao momento, apenas observava os movimentos dos lábios dele teorizando sobre os possíveis métodos e motivações do assassino. Mesmo sem estar centrado em suas palavras, algumas ideias iam sendo absorvidas com intermitências. Sua forma de falar despontava um grande conhecimento da arma utilizada, dos cortes feitos e até o significado dos desaparecimentos das cabeças. Sua conjectura era extremamente convincente e suas minudencias persuadiam até o mais prestigiado investigador. No entanto, ainda havia lacunas a serem inteiradas; talvez uma declaração oficial ajudasse na arrematação do seu conceito, e em breve o Detetive Calaro falaria à imprensa.
─ Veja bem, Joan ─ articulou fitando meus olhos ─, tu prestou atenção nas palavras do detetive que assumiu a frente dos casos?
Apenas assenti com a cabeça.
─ Leu toda a sua história?
─ Sim ─ redargui. ─ Aliás, agradeço por ter escrito quase toda a obra. Está magnífica! Não adianta dissimular... sei que foi você.
Silêncio...
─ Não, Joan, foi você quem escreveu cada palavra.
Minha mente ainda permanecia nebulosa e cada vez que eu tentava organizar meus pensamentos, mais confusos eles ficavam. Retirei os óculos e aleitei-os sobre a mesa de centro ao lado, pressionando os olhos com o indicador e o polegar. Até o momento, tudo o que eu recordava vinha em fragmentos: vinho, mulheres, livro religioso, raiva, chuva, gritos, nomes... todas as reminiscências chegavam erraticamente, mesclando-se ao passado e presente de forma abrupta e crua. Ergui-me velozmente, lancei-me em direção à parede apoiando meus antebraços e bradei altissonante. O desespero parecia imperar sobre mim, enquanto eu girava a cabeça, segurando-a com as duas mãos. Deus... o que está acontecendo comigo?! Lucius me observava do mesmo lugar, meneando e cheirando sua taça de vinho. Sua face expressava a placidez das águas de um lago ao enoitar. De maneira incompreensível, ele sabia que em instantes todo o desespero e aversão deixariam a minha mente obscura; a confusão que me perturbava daria lugar à luz de uma nova elucidação. Minha respiração diminuiu expressivamente, meus braços retornaram a linha da cintura e novamente meus olhos miravam o vazio.
─ Certa vez, uma criança solitária e reclusa em seu próprio mundo decidiu que não mais estaria só; fosse com a ajuda dos livros ou tão-somente por sua imensa habilidade de criar realidades íntimas e inerentes ─ iniciou Lucius, à medida que caminhava com a taça de vinho meneante. ─ Anos se passaram e sua solidão rapidamente fora minorada por a chegada de um peculiar garoto plenamente oposto ao seu comportamento e vocábulo. Parecia que de imediato os dois meninos não se dariam bem, mas os dias transcorreram normalmente, e como era de se esperar, logo o visitante se amoldara ao seu novo amigo: ideias, estudos, brincadeiras, mesmas leituras e sonhos futuros, eram semelhantes. Em seus mundos, os dois garotos imaginavam que um dia se tornariam escritores e conquistariam o mundo com suas estórias. A família da criança solitária sempre estivera atenta à reclusão dela, mas seus constantes sorrisos abafados pela porta do quarto, permanentemente trancada, fazia com que sua mãe mantivesse sua preocupação abrandada. Vez ou outra ela abria a porta do quarto do garoto e o encontrava risonho e diserto...
Voltei meus olhos intrigados ao Lucius e alinhei minha atenção no que ele dizia. Aquela era a nossa história sendo exposta em ordem cronológica.
─ O menino não entendia porque sua mãe sempre se comunicara com os dois unicamente observando os olhos do dele, mesmo que os dois estivessem distantes. Entretanto, aquela atitude de sua mãe não importava, afinal, mães eram esquisitas. A adolescência chegara e a amizade dos rapazes ficara mais intensa, suas conversas amaduras, suas leituras mais críticas, mas seus sonhos ainda eram os mesmos; nada poderia mudar aquilo, eles imaginavam. Mas, como a vida não é feita de imaginação, um dia os dois rapazes tiveram que seguir caminhos opostos devido à consequente vitória de um e a amargura do outro: o outrora menino solitário conquistara o seu sonho e iniciara sua carreira como escritor, que de imediato fora destaque nas mídias, à medida que o seu companheiro nada tinha realizado. Sua presença fora ficando cada vez mais desnecessária, enquanto a atenção do rapaz solitário sempre se voltara às suas criações; seus romances tão aguardados. Então, chegou um dia que o adolescente, antiga criança solitária, acabara esquecendo completamente o seu amigo que lhe fizera companhia nos seus dias mais tristes e ermos. Seu amigo partira a trabalho numa região desconhecida e por lá se fixara. O adolescente, agora um homem, prosseguira sua vida e durante anos somente se dedicara a suas obras; nem mesmo a perda da sua mãe para o alcoolismo o abalara. Todavia, ele não percebera que algo lhe faltara, que sua vida se tornara enfastiosa e trivial...
Estendi uma de minhas mãos aberta em direção a Lucius.
─ Espere, espere! Um segundo, por gentileza, Lucius: essa é a nossa história, por que você esta me contando algo que sei? ─ inquiri ainda intrigado.
─ Esta é apenas a sua história ─ redarguiu caminhando até mim e prosseguindo com o relato. ─... Foi quando lhe surgira a ideia de escrever um novo romance, sentado em seu quarto, envolto em uma coberta para se proteger do frio que chegara mais cedo neste inverno. Mas, por mais que ele tentasse grafar as linhas da sua obra, sua mente permanecia bloqueada, apenas as cinco renques inicias foram escritas forçosamente... Como ele sabe disso, pensei enquanto cingia os olhos. ─... Ele buscara ajuda nas imagens vagantes das ruas da cidade e retornara ao seu lar imaginando ter obtido informações suficientes para compor os capítulos primitivos de seu labor, mas suas andanças somente fizeram ressurgir a necessidade de uma companhia há muito tempo perdida e que sempre lhe auxiliara nos tempos mais sombrios.
Lucius para a história abruptamente, enche sua taça de vinho mais uma vez e senta-se no sofá, observando seu reflexo no líquido roxeado. Minhas vistas o fitavam e minha mente sentia uma vertigem progressiva, parecia que eu quem estava bebendo o vinho, mas, obviamente, desde que acordei, não havia sorvido nenhum conteúdo alcoólico. Passei as mãos no rosto outra vez, balancei minha cabeça levemente, auferindo minha estabilização mental, porém, continuei da mesma forma: tonto.
─ O que houve? Por que parou a história? ─ perguntei.
─ Não será necessário continuar, logo você entenderá. Aliás, você não percebeu que a forma de eu me comunicar com você não é a mesma?
Observei-o atentamente.
─ Realmente... você requintou um pouco mais os seus termos. Está bem melhor. Não que o seu palavreado antigo fosse ruim, mas não me agradava muito.
Ainda se apreciando através do reflexo do vinho, transpondo as bordas largas da taça, ele objeta:
─ Chegou o momento da autoaceitação, Joan: não existe nenhum Lucius! Eu sou uma projeção de uma de suas criações; eu sou sua mente; eu sou você!
Meus lábios se retesaram lentamente, um tênue sorriso se formou em minha face, enquanto eu impelia a carteira de cigarros na minha mão esquerda ansiando um dos fumos. Após um longo trago, retornei minhas vistas ao Lucius, que continuava se contemplando através da bebida. Minha mente objetiva jamais aceitaria tamanho desvairo.
─ Você está me chamando de louco? ─ indaguei expressando confusão e, talvez nervosismo. ─ Todo esse tempo estive conversando sozinho? É isto?
─ Como você acha que eu surgi aqui logo após sua inquietação causada pela inépcia de continuar seu trabalho? Você necessitava de mim para concluir sua obra, e esta precisão fez com que eu retornasse ao seu exterior. Você me criou quando ainda era criança para preencher suas carências: deu-me nome, voz, trabalho e família. Quando imaginou que não mais precisava de mim, resiliu-me de sua vida recheada de viagens e eventos. Aguardei por muito tempo o dia que retornaria para te ajudar a concluir sua obra-mestra. Você está quase no fim.
─ Obra-mestra? Que obra?!
Ele ergue seus olhos sorrateiramente em minha direção.
─ O que você ainda não entendeu? Tu estavas correto ao imaginar que seu romance tinha ligação com as consecutivas mortes das mulheres da cidade: você quem as causou; nós as geramos. Só não pude te revelar antes, pois você quem encontraria o momento exato. Você carecia de uma história e imediatamente a providenciamos. Já passamos da metade, restam apenas duas mulheres.
Os olhos dele retornaram ao líquido espelhado, concentrados em sua imagem. Eu não conseguia absorver as palavras advindas de Lucius. Aquele que sempre estivera comigo até o fim dos estudos e conversara com os meus familiares todas as vezes que estivera em minha residência não podia ser fruto da minha imaginação. Não! Tudo é muito ilusório para mim. Não pode ser! Talvez os lapsos de memória explicassem o meu labor inconsciente, mas matar pessoas para obter mais uma conquista no meio literário; nunca. Ao menos eu pensava assim. Ergui-me da poltrona novamente, minha cabeça atordoada tentava tramar ligação entre todos os acontecimentos recentes e a possível confissão no meu romance. Não conseguia encontrar um sentido àquelas barbáries. Uma voz ecoava initerruptamente em minha mente: “termine o que você iniciou... conclua sua obra-prima!”. Cada palavra enleava com mais fervor meus pensamentos. Minha expressão começava a se transformar passa a passo e a minha essência mesclava-se a outra personalidade, até o momento desconhecida. A todo instante eu me questionava se meu consciente hígido ainda permanecia intacto. As reminiscências surgiam continuamente, enquanto eu caminhava convulso de um canto a outro, e às vezes observava o Lucius com a cabeça arqueada para baixo permanentemente, tão-somente a observar sua imagem como Narciso a apreciar-se no reflexo do rio.
─ Mas, que droga você está fazendo?! ─ perguntei irritado.
Silêncio.
Aproximei-me dele e o inquiri outra vez, no entanto, nenhuma resposta adveio dos seus lábios, ele permaneceu contemplando sua face espelhada no vinho. Aproximei minha mão do seu ombro e assentei-a vagarosamente, ao chegar bem próximo ao seu corpo, meu braço passou completamente por dentro dele. Apoiei-me no sofá de imediato e impeli-me de volta a minha posição ereta. Não havia mais espaços para questionamentos em minha mente. Meus olhos se turvaram abruptamente, minha silhueta se tornou retesada, à medida que minha cabeça arqueou-se para o teto. Após alguns instantes, volvi meus olhos de volta: meus membros começaram a se esmaecerem, minhas mãos haviam desaparecido por completo e os braços sumiam lentamente. Outra vez fui vestido pelo desespero, mas desta vez, sutilmente. As frases e questionamentos que eu fizera começavam a tomar forma em minha consciência, todavia meu corpo continuava em processo de desaparecimento e já ultrapassava o meu tronco, subindo lentamente pelo pescoço até chegar a minha cabeça, apagando de imediato o meu consciente utilitário. Cinco minutos se passaram, eu abri os olhos e deparei-me com uma imagem à frente: sentado no sofá e observando o líquido roxeado, vi-me refletido no fundo extenso da taça de vinho e o Lucius havia desaparecido. As vozes permaneciam me norteando: “termine o que você iniciou... conclua sua obra-prima!”.
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Segunda-feira, 08 de Julho de 2019.
NOTÍCIAS EM FOCO
URGENTE!
ÚLTIMAS NOTÍCIAS: DETETIVE CALARO FALA
À IMPRENSA.
Na manhã desta segunda-feira, o detetive designado para cuidar do caso dos múltiplos assassinatos ocorridos na cidade de Gargantua reuniu toda a imprensa local a fins de esclarecimento sobre o serial killer que acaba de fazer mais duas vítimas: Madalena Iranir Santos e Esmeralda Trindade Amado foram encontradas esta madrugada próximas a um córrego na BR 220. A exemplo do que ocorreu com as outras, as duas mulheres também estavam sem as suas cabeças (clique aqui). Na coletiva, o detetive nos explicou detalhadamente o que impulsionou o feminicida a cometer esses crimes. Ao ser questionado sobre os métodos do matador, Calaro foi categórico: “Ele apenas utilizava um grande punhal de precisão cirúrgica e as feria por trás, logo em seguida as decapitava... nada mais”. Sua explanação se estendeu até os pontos aguardados por toda a imprensa: o que motiva ou motivou os assassínios.
Portando uma pequena valise, ele a pôs em cima da mesa e retirou várias laudas que descreviam com exatidão o que ele havia descoberto. Talvez seja mais uma teoria plausível ou nada tenha a ver com as mortes das moças. Segundo o detetive, “todos os assassinatos foram cometidos por motivos religiosos (sic) e os próprios nomes das moças revelam isto. Assim como as cabeças retiradas do corpo e levadas com ele”.
Prosseguindo com a entrevista, um dos nossos correspondentes o indagou como ele havia chegado a esta conclusão. O detetive Calaro colocou uma das folhas que estava sobreposta em um montante, ao lado, e iniciou: “O mote crucial deste caso é a observância minudenciada de cada detalhe. Primeiro ponto: Todas elas tinham algo e hábitos em comum: estudos, só saíam à noite, e todas elas não tinham ligações alguma com religiões ortodoxas, porém eram adeptas do paganismo, o que me leva a crer que o assassino é um religioso intransigente”. Ele grafou em um pequeno quadro o nome de todas elas:
1 ─ Stella Briaria de Junqueira: musicista e estudava músicas greco-romanas.
2 ─ Amanda Tantos Oliveira: estudava História Romana.
3 ─ Lívia Andrade de Alencar: estudava Teologia Arqueológica
4 ─ Omélia Calcutá de Olinda: estudava História com ênfase teológica Cristã.
5 ─ Madalena Iranir Santos: professora de antropologia, recém-formada.
6 ─ Esmeralda Trindade Amado: aluna da professora Madalena.
Ao terminar de expor os nomes e as atividades das mulheres ele retirou um pedaço de papel do bolso e mostrou aos repórteres. “Isto foi encontrado na última cena criminal; é um pedaço da bíblia que diz precisamente assim: ‘Peça-me o que quiser e eu darei a você. O que for que me pedir, até a metade do meu reino, eu darei a você. ─ Marcos 6;22-24’. “Quem conhecer a Bíblia, saberá que esta é uma passagem referente a João Batista, quando lhe cortaram a cabeça; eis o misterioso sumiço das cabeças das moças”, disse o investigador. Completando sua teoria, o detetive mostrou outra vez os nomes das moças e circulou todas as letras iniciais dos primeiros nomes, sobrenomes e os nomes finais. “O mais impressionante é isto, meus caros. Mostra o quão metódico e arguto ele é, matando apenas mulheres com nomes, profissões e estudos ligados direto ou indiretamente. Observem todos estes nomes”, disse apontando as letras já circuladas: (S) de Stella, (A) de Amanda, (L) de Lívia, (O) de Omélia, (M) de Madalena, (E) de Esmeralda. Agora separem as letras marcadas”. Nossa equipe fizera o que o detetive pedira, assim como as demais. “Peguem cada inicial dos nomes e liguem-nas”. Os jornalistas seguiram suas ordens atentamente. Em suas cadernetas surgiram o nome “S-A-L-O-M-E”. Calaro prosseguira com sua entrevista e mais uma vez pediu: “Agora, circulem todas as iniciais dos sobrenomes do meio e do fim”. Surgiram várias letras aleatoriamente: “OBOTJAAITAS”. Ninguém havia entendido o significado daquelas letras, até o investigador nos explicar. “Sei que essas letras podem não significar nada para vocês, mas se observarem bem, elas representam um anagrama, que se organizado, ficará assim: (J) de Junqueira, (O) de Oliveira, (A) de Andrade, (O) de Olinda, (B) de Briaria, (A) de Andrade, (T) de Tantos, (I) de Iranir, (S) de Santos, (T) de Trindade e (A) de Amado”. Novamente os jornalistas uniram as letras e surgiu o nome “J-O-A-O-B-A-T-I-S-T-A”. Todos o observamos boquiabertos enquanto ele continuava sua explicação: “Bem, meus amigos, eis os nomes que motivaram o Carnífice de Gargantua a cometer tais atrocidades: Salomé e João Batista; obviamente ele fez alusão à decapitação do profeta que batizara Jesus e que sua cabeça servira como presente concedida pelo rei Herodes à dançarina, no aniversário do monarca. Resta-nos descobrir o seu paradeiro e recuperar as cabeças das vítimas. Infelizmente ainda não temos pistas de como ele é, mas em breve o encontraremos. Obrigado!”. O detetive se levantou da mesa sob uma chuva de perguntas, mas seguiu sem dar respostas. Para ver a reportagem completa em vídeo, clique aqui.
É certo que o surgimento da histeria da população tem uma boa razão e esperamos que este caso seja concluído o mais rápido possível.
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Levantei-me da cadeira em frente ao computador e segui em direção à parte traseira da minha casa com uma expressão escarninha compondo o meu rosto. Há 30 anos meu pai havia construído um porão para resguardar materiais de construção e coisas antigas. Ele sempre fora atento às reformas constantes que as residências necessitavam, assim, fez seu próprio estoque de utensílios. Desci as escadas e adentrei o breu profundo no subterrâneo da casa; um odor fétido começava a circular o ambiente. Nos fundos, havia uma extensa prateleira raiando as bordas nas duas paredes opostas. A luz da minha lanterna iluminava os lugares preenchidos pelos meus passos. Parei abruptamente, deslizei a luz um pouco acima de mim e contemplei minha obra-mestra: todas as seis cabeças jaziam com seus respectivos nomes abaixo e com o anagrama organizado sob o nome de Salomé e João Batista. Mais abaixo estava escrito:
“Aquele que por vaidade ou vingança incompreensível se deleita com o fenecimento tortuoso do seu semelhante, será merecedor do mesmo suplício causado pela iniquidade.”
Passei alguns minutos admirando o meu feito, sentado em uma cadeira fria, então me levantei e suspirei.
Finalmente... eis os louros da minha criação!, disse virando e seguindo de volta à saída.
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Cinco meses se passaram desde os assassínios e o detetive não se acomodava com o fato de não ter encontrado o Carnífice de Gargantua. Enquanto caminhava pela grande Av. Rui Barbosa, avistou uma livraria que estadeava um imenso cartaz e com a vitrina completamente cheia, com um livro em destaque: “O Escritor: Vidas em Linhas Grafadas”. Ele pagou por um exemplar e seguiu caminhando, atento a sinopse do livro: Não pode ser!, bradou, girando o livro em busca do nome do autor. Logo abaixo do título apenas constava um pseudônimo: Claudius Lucius.
À MINHA AMADA MÃE, MINHA AVÓ E
À MINHA FILHA ELISABETH, COM AMOR.
2019.
Gracias por leer!
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