Gélido e quase sólido, o jato da ducha dissolve o torpor enquanto a água fria cobre a epiderme, despertando arrepios. Cambaleantes, gestos e movimentos vestem o corpo nu. Só quando o líquido preto, amargo e quente do café encontra os lábios e o calor se'spalha pelo esôfago, é que as nuvens do sono se dispersam e o peso das pálpebras se desfaz.

Cai numa manhã ensolarada, onde o calor superaquecia até pensamento. Cai solitária, simples e indefesa, como o são os profetas das causas (ditas) perdidas. Cai… A gota… Mas sua chegada, quase imperceptível e só a poucos notada, traz a chuva que refrescou nossos corações e lavou nossas almas.

A fada Esperança faleceu naquela noite sem lua, depois que a última criança que acreditava em fantasia disse: “eu não acredito mais em fadas!” Tempos depois, a floresta que havia coberto seu corpo, deu lugar a uma rodovia desértica. Mas… o que é isso? Delicado e simples, o pequeno talo alcançou a superfície e dele pétalas saíam formando uma pequena flor. E ali, onde antes jazia a última das fadas, nasceu uma flor, cujas pétalas brilham palidamente no escuro da descrença.

- Então? Adeus ou um até a vista? - Acho que adeus... O silêncio se colocou entre nós, um silêncio e um vazio, cheio de coisas que sabíamos mas que nunca foram ditas! As malas. A porta. Passos no corredor indo em direção ao elevador. Como saber, depois de tantas partidas e voltas, que aquela era última? Olho em volta. O apartamento estava vazio. Dessa vez não tinham ficado nem as lembranças nem aquela solidão desesperada. Só o silêncio. Foi quado percebi que aquela despedida era a última.

Inclinado no canto do meu quarto, jaz o meu violão. Em seu silêncio ele grita para mim tudo que eu não disse, nem jamais direi a mim mesmo!

Não há mais tempo. Nem para procurar sapatos. Nem para recordações. Nem para tentar reter o passado em nossas mãos, mesmo que na forma de um antigo presente. Vou ao closet. Pego um novo par. Saio e deixo para trás meu apartamento com seus objetos perdidos, suas lembranças e um passado que nunca mais irá voltar. Assim como os sapatos! Sete e quinze! (Fim)

Droga, tenho de sair, preciso pegar outro par de sapatos, mas por que ainda estou aqui procurando. E enquanto penso nisso, a voz de uma recordação ressoa os meus ouvidos. - Vamos, abre? - O que é? - Algo que você precisa! Abre! - Não! Oh meu Deus, mas eu já tenho um monte de sapatos! - Sim, mas não um que tenha estilo! Só aqueles modelos cafonas! Esse aqui é muito mais classudo! Sinto gosto de sal nos lábios. Passo a mão no rosto. De onde vieram essas lágrimas? Sete horas. (Continua...)

Deveria estar na repartição às sete horas. - Droga, vou me atrasar! Tenho de pegar outro par de sapatos. Não, espera... só aqui, acho que não olhei direito embaixo da cama. Sim. Vale a pena fazer uma revista mais uma vez. Quantas vezes achei ter perdido algo e estava bem ali na minha cara. Lembra daquela vez em que eu estava procurando uma caneta e você tirou ela detrás da minha orelha onde estava presa? (Continua...)

Debaixo da cama. Na cozinha. No banheiro. Debaixo do sofá... Seis e quarenta. O tempo suprime a distância entre o meu presente e o horário dos compromissos. - Droga! Onde eu deixei esse sapato? Eu podia ir até o pequeno closet ao lado do guarda-roupas e pegar outro par. Por que continuo aqui revolvendo as minhas coisas sem chegar à lugar algum? Seis e cinquenta e cinco! O chamado do tempo prossegue. (Continua)

(...) A ausência da voz que responde ao seu chamado. Ausência das mãos prontas para receber o contato com a sua pele. Ausência do corpo junto ao seu aguardando o sono chegar. Mas, o pior é que as ausências esticam o tempo, dilatam-no em durações quase ininterruptas. Especialmente à noite. Menos agora! Seis e trinta e cinco (Continua)

O dia abre as cortinas da claridade e desenrola inequivocamente o novelo do tempo, enquanto, inutilmente, me esforço para alcançá-lo. Seis e quinze. - Cadê o meu sapato, eu tô atrasado! A voz ecoa nas paredes surdas e vazias do apartamento. Me esqueci outra vez de que ela não está mais aqui. A lição mais difícil de uma separação é acostumar-se a ausência. (Continua)

O silêncio de uma casa não silencia uma mente turbulenta. Barulho de pensamentos obtusos: lembranças de ressentimentos, ansiedade quanto ao futuro, medo no presente, aquela música chata tocando na sua cabeça, sem parar: "Tá com pulga na cueca... Tá com pulga na cueca... Tá com pulga na cueca..." E o dia está apenas começando #cotidiano #instabilidade #pensamentos

A palavra me escapa quase como um sussurro enquanto as lágrimas vencem a represa das pálpebras e desenrolam-se mansamente sobre a face. Quisera eu esquecer a tua ida com a tua lembrança, mas agora, a recordação do sonho me lembra que você se foi. Pra sempre.

... Os olhos se abrem e imediatamente o mundo exterior invade os meus sentidos, como se houvesse arrancado do sonho e trazido direto para o despertar. Levanto num impulso. Olho ao redor. O quarto ainda escuro. A luz do sol entra fracamente pelas frestas da porta da janela. Ao meu lado, minha esposa ainda dorme tranquilamente. O sonho ainda está em mim. Busco retê-lo na memória, como se minhas mãos tentassem alcançar o perfume que se perde no ar. - Mãe!

...Em algum ponto, sinto a consciência despertar. O mundo exterior se insinua por trás da névoa do sonho. A percepção começa a despertar para a realidade, embora ainda o sono não tenha se esgotado. A nostalgia do sonho. A percepção da realidade. Um vão entre o sonhar e o despertar. Limite entre o presente e o passado. Escolha entre o real ou a lembrança. - Levanta, filho! Vai acordar! - Não quero... não posso! - Mas precisa. - Não! - ‘Bora filho... Levanta. Levanta...

As mãos do sonho acolhem a cabeça cansada sob um regaço tranquilo e mãos acolhedoras. Estranha é a sensação de sonhar e saber que está sonhando. Voz a entoar cantigas antigas. Tempo em que você me colocava para dormir. As mãos entrando no cabelo. O perfume chega às minhas narinas vindas de anos-luz de distâncias, trazido pelas lembranças. Por um momento o inconsciente encobre conscientemente a dor que é estar desperto. Só que...