alexlorenzo Alex Lorenzo

Inconformado com ordem estabelecida no universo, o jovem marinheiro Dorean tem o desejo de se ver frente a frente com as moiras para contestar o destino que elas tecem para os mortais. Após o naufrágio da trirreme Kosmo, o rapaz se salva e vai parar numa ilhota, ao sul de Creta, local da habitação das belas irmãs Clotó, Láquesis e Átropos. Depois desse encontro, as vidas das deusas e do atlante nunca mais serão as mesmas, pois o embate entre o destino e o livre arbítrio será inevitável.


Short Story Not for children under 13. © Todos os direitos reservados

#destino #aventura #mitologia #deuses #conto #trama #zeus #tempestade #escravos #deusas #Moiras #Atlante #Atlântida #Naufrágio #Arbítrio #Atenas #Marinheiros
Short tale
3
8.9k VIEWS
Completed
reading time
AA Share

O destino do atlante

Os deuses eram instáveis. Ora eram justos, ora vingativos, por isso, os cidadãos atlantes levavam suas oferendas. Sacrificavam animais, organizavam festas e competições, tudo que pudessem para conquistar graça e proteção.

Em meio às divindades, três deusas tinham um trabalho primordial para manter a ordem do universo, tecer o destino das pessoas. Eram elas, as moiras, belas irmãs de aparência jovem. Governavam os eventos do nascimento, da vida e da morte. Provocavam medo e a admiração das pessoas e tinham o respeito dos deuses, pois eram as responsáveis pelo destino de todos, através do uso da roda de fios, um poderoso e divino maquinário de tear. Nem mesmo o poderoso Zeus atrevia-se a interferir em suas decisões e isso o incomodava.

A primeira dessas irmãs era Clotó, responsável pelo nascimento de todos os mortais, ela segurava e puxava o fio da vida; a outra era Láquesis, responsável pela ordem em que os acontecimentos deveriam surgir, como o crescimento, o casamento, as lutas, as vitórias e as derrotas, ela enrolava o fio e distribuía a porção de eventos que cada ser humano receberia na vida; a terceira moira se chamava Átropos, ela cortava os fios que mediam a duração da vida, determinando o momento da morte.

Elas moravam entre Atlântida e o mar Mediterrâneo, numa ilhota, na qual poucos aventureiros ousavam aportar. Trabalhavam exaustivamente por incontáveis dias, cuidando da ordem do cosmos, dando a cada um o destino que lhe coubesse.

[...]

Em uma parte do pequeno continente de Atlântida, na cidade que recebera o mesmo nome, vivia Dórean, marinheiro atlante. O moreno de olhos verdes tinha o corpo bem torneado, graças aos constantes exercícios físicos impostos pela Marinha. O mar era seu grande sonho, através dele, poderia viajar pelos sete mares, desbravar terras desconhecidas, sentir o vento constante massagear seu corpo e se gabar de superar as tempestades.

Além do sonho como desejo da alma, Dórean também sonhava todas as noites com uma mulher cujo rosto não conseguia ver. Ela o visitava num pequeno barco, dizendo que a embarcação somente zarparia, com ela a bordo, se o jovem assim escolhesse. Isso acontecia noite após noite e o rapaz já havia se acostumado.

Atlântida era seu orgulho. Os atlantes eram conhecidos por sua ordem, riqueza e ciência. O povo era referência desde o mediterrâneo até as terras mais longínquas da Ásia. Eram admirados por seus avanços tecnológicos, suas leis e seu modo de vida.

Numa manhã ensolarada, alguns tripulantes atlantes partiram do porto de Poisedon e foram em direção à ilha de Creta, para comerciar. Navegavam há horas no mar quando a trirreme perdeu velocidade. Os escravos que a impulsionavam, através dos movimentos circulares dos remos e incentivados pelo chicote, receberam ordens para cessar a movimentação. A embarcação continuou deslizando pela superfície de águas calmas do entardecer nublado. Em cada lado da embarcação, formando corredores de encadeamentos de rochas, ergueu-se, até a altura do convés, uma neblina que se expandiu e tomou o barco. Os marinheiros já sabiam o que estava por vir.

Capazes de atrair e encantar qualquer homem que ouvisse o seu canto, a melodia entoada provocava neles seus desejos mais íntimos. Os marinheiros poderiam ser atraídos, não só pela entonação e a densidade dos sons de corais harmônicos e provocantes, mas também pela visão sedutora da beleza, dos gestos e do corpo desnudo. Hipnotizados, eles se descuidavam e caíam no mar e quando se viam submersos nos braços delas, era tarde demais.

Dórean nunca havia visto as sereias e, por um instante, seus ouvidos foram aguçados pelo cântico e seus olhos furtados a procurar um vão na neblina em que pudesse contemplar aquelas criaturas. Seus olhos repousaram sobre uma delas e o desejo se apoderou do seu corpo, mas antes que pudesse dar seu primeiro passo até os limites da embarcação, o velho marujo Heitor Arvanitis o segurou firme pelo braço.

— Não podes permitir! Não se entregue aos desejos! Não deixes as sereias determinarem seu destino!

A advertência daquela voz rouca trouxe o jovem à razão. Dórean pôde escolher libertar-se do encantamento.

Os marinheiros, que haviam feito silêncio absoluto de olhos fechados e ouvidos tampados, retornaram às suas atividades normais. O retumbar de um gigantesco tambor pôde dar novamente a cadência do barco, garantida pelo estalar dos chicotes nas costas dos escravos.

— Conseguimos passar por elas da melhor maneira, fazendo silêncio. — Heitor respirou fundo levando as mãos a acariciar seus curtos cabelos grisalhos e a barba rala. — Venha, vamos comer peixe e centeio cozidos.

— Falou sobre meu destino, mas ele não existe. — Dórean falou, enquanto descia as escadas para o pavimento que ficava acima do pavimento dos escravos remadores.

— Existe sim e já está nas mãos das moiras! — Heitor discordou com veemência, descendo as escadas com disposição, como poucos de sua idade.

— Não acredito nele.

— Em que? No destino? É a primeira vez que ouço uma besteira dessas, meu jovem. O destino é algo natural, algo em si mesmo. Eu sempre sonhei em ser um fazendeiro, mas o meu destino é esse, serei um marujo por toda vida.

— O destino é resultado das nossas próprias escolhas!

— Você é muito jovem, não sabe o que está falando, ainda vai aprender muito na vida e entender o que realmente é o destino.

— O destino são nossas escolhas do passado que é o resultado do que somos no presente. O presente já foi nosso futuro, então sou responsável pela vida que levo.

— Meu rapaz, isso é tolice! Veja os escravos no pavimento debaixo, empunhando a haste do remo o dia todo, semana após semana, meses após meses. Acha que eles podem fazer escolhas? Podem escolher as roupas e a comida? Ir e vir quando quiserem? Escolherem trabalhos? Colocar planos em ação? Realizar seus sonhos? Não, meu jovem, não existem escolhas para eles. O destino deles é certo, morrerão trabalhando nos remos, ou afogados se o navio naufragar.

— E se escolherem fazer uma rebelião?

— É impossível. Não são bem alimentados, muitos não estão adestrados para o combate, foram acorrentados nos tornozelos e eles não têm acesso à arma alguma, além de quase não se comunicarem entre si e uma rebelião precisa de uma estratégia. Os escravos não possuem a menor chance. As irmãs da ilhota já teceram o destino desses infelizes!

— Então, por que me segurou no braço e me disse para que eu não permitisse que as sereias determinassem meu destino? Isso não é fazer uma escolha?

Heitor não respondeu, nos seus olhos pairavam dúvidas sobre as verdades que aprendera, apesar de acreditar que o destino de todos já estava traçado e tecido pelo tear das deusas, percebia que havia algo nas circunstâncias dos acontecimentos que poderia ser modificado.

— Já ouviu falar no livre arbítrio? Heitor perguntou e levou um pedaço de peixe à boca.

— Sim. Eu gostaria de conversar com as moiras sobre o destino e o livre arbítrio. — Dórean falou e comeu um pouco de centeio cozido.

Heitor quase se engasgou com o pedaço de peixe.

— Você é louco? Meu jovem, não se meta com elas, são perigosas, mas se algum dia estiver diante das três irmãs, pergunte-as por que a vida é tão injusta!

— É meu desejo contestá-las. Tenho muitas dúvidas sobre a ordem das coisas.

Heitor meneou a cabeça em reprovação e encolheu os ombros.

— Bom rapaz, eu vou me recolher, minha tarefa está terminada por hoje. — Heitor falou, bebeu uma caneca de vinho e retirou-se em seguida.

Dórean permaneceu no mesmo lugar, pensativo. Olhou através de uma abertura no chão, observando aqueles homens. Eram de várias idades, corpos emagrecidos e com marcas de violência nas costas. As condições dos escravos eram tão limitadas que se perguntava: “qual seria a margem de escolhas que eles poderiam ter?” Imaginava que cada um deles tivesse uma história antes de terem aquela vida miserável. Deveriam ter suas famílias e vieram das mais diferentes regiões do Mediterrâneo com seus próprios modos de vida e sonhos particulares.

A conversa com o amigo Heitor fez borbulhar seus pensamentos. O espírito contestador de Dórean o afligia. O rapaz não aceitava a ordem como diziam que deveria ser. Zeus impunha seus desígnios juntamente com seu panteão e os pobres mortais nada podiam fazer, a não ser, acatar o desenrolar da vida como se fosse o próprio destino tecido pelas irmãs da ilhota e certificado pelo pai dos deuses.

O rapaz subiu até o convés para ajudar os outros marinheiros a içar a única vela da trirreme. O finalzinho da tarde havia chegado e os escravos descansariam. Em instantes, a embarcação seria impulsionada pelos ventos noturnos.

O tempo nublado dava sinais de chuva e o cenário de calmaria mudava gradativamente. O rapaz olhou o entorno de forma mais detida e, na direção da proa, bem ao fundo do cenário, assustou-se ao ver uma gigantesca figura ofuscada, segurando um tridente com um semblante sério. Uma forte rajada de ventos quebrou o mastro da vela da embarcação. O sopro do deus tomou a forma circular e, então, tornados desceram das nuvens iluminadas por relâmpagos. Em seguida, uma intensidade de trovões arrastou toda a tripulação para o pavor.

O mar bravio sempre despertou a dúvida em Dórean. Não há controle sobre a natureza, ela determina o destino das embarcações, da tripulação, dos viajantes. Poseidon deveria se divertir com o medo das pobres criaturas, dos homens, desprovidos de poder diante do mundo natural.

O rapaz lutava junto aos seus companheiros para manter sua embarcação no prumo. Apenas o conhecimento sobre o mar e a força de seus músculos poderiam dar-lhes alguma segurança e alimentar a esperança naquele panorama de caos. Grandes ondas desaguavam no navio e ventos impetuosos dificultavam os deslocamentos dos marinheiros. A chuva açoitava o rosto do jovem atlante, mas sua obstinação o impelia a continuar enfrentando Poseidon, que se manifestava através da tormenta.

As águas e o vento faziam tamanho estrondo que os marinheiros não eram capazes de ouvir uns aos outros. Então, uma onda colossal se levantou e veio de encontro ao convés, derrubando vários tripulantes e lançando alguns deles nas águas profundas. Aqueles que ficaram se agarraram onde alcançavam e os que não o fizeram foram desbaratados por uma forte rajada de ventos. Ao fundo do campo de visão, uma sequência rápida de raios colidiu com o mar e provocou clarões, embaçando a visão dos rostos encharcados dos marinheiros. Parecia que Poseidon compartilhava sua brincadeira sádica com Zeus ou que havia uma discussão desastrosa que ceifaria a vida de muitos. Aos reles mortais só sobravam orações, prantos e bramidos. Temiam que o destino já estivesse traçado, temiam acordar nos braços de Hades.

Segurando-se numa parte da embarcação, lutando pela autopreservação, Dórean viu novamente o espectro de tamanho colossal. O deus se ergueu do mar, dessa vez, com um semblante colérico, desnudo da cintura até o pescoço e com o rosto forrado por uma volumosa barba molhada.

— Achas que podes fazer escolhas? Acreditas ser capaz de escolher viver? — A voz retumbante de Poseidon ecoava na tormenta, sendo ouvida dentro de sua mente. Ainda pôde ver um sorriso de desdém. Dórean percebeu a ventania se tornando cada vez mais forte.

Arrastando-se pelo chão do convés, ele conseguiu chegar até o acesso para o pavimento inferior, onde os escravos encontravam-se acorrentados e alucinados. Descendo as escadas, olhou para cima do vão do acesso e testemunhou Heitor voando com se fosse um objeto qualquer. Lamentou e continuou descendo. O casco rachou. Os escravos constataram as águas enchendo o porão em velocidade acelerada. Desesperados, mesmo sabendo que seria impossível se libertarem, alguns tentavam arrebentar as correntes que prendiam seus tornozelos. Os marinheiros, que eram responsáveis por fazerem os escravos remarem, já haviam abandonado seus postos e subido para o convés. O destino da trirreme parecia já está traçado, bem como de todos que ainda estavam a bordo. Enquanto alguns escravos resignados esperavam a morte por afogamento, outros suplicavam ajuda. Movido pela compaixão, Dórean procurou a chave mestra que não estava mais no local de costume. Os escravos falavam ao mesmo tempo, e em línguas estrangeiras, até que ele entendeu um escravo grego que lhe explicou como encontrar a tal chave. Depois de achá-la, o atlante passou a abrir os grilhões. Alguns dos escravos subiram para o convés, enquanto poucos ficaram ao lado de Dórean para ajudá-lo na libertação dos demais que ainda eram a metade do grupo de cativos.

O casco se rompeu completamente, a trirreme partiu-se ao meio. Imerso nas águas, o jovem atlante viu muitos escravos sendo tragados para o fundo, ainda presos aos metais que estavam ligados às partes pesadas da madeira do casco. Observou alguns corpos de companheiros da trirreme, emergindo e imergindo, sem vida. Assustou-se ao enxergar, próximo a sua face, o rosto mórbido de seu amigo Heitor. Os olhos estavam abertos e a expressão congelada com traços de assombro. Impulsionado pelo instinto de amor pela vida e guiado pelos clarões dos relâmpagos, Dórean nadou até a superfície e se apossou de um pedaço de madeira quase retangular que suportaria todo seu corpo, subiu e se segurou nas bordas. Fechou os olhos. Deixou as ondas o levarem. Agora, era tentar desligar-se daquele evento e esperar o destino fazer sua parte.

[...]

O sol de meio dia queimava a pele de seu rosto e o despertava. Os lábios estavam ressecados pelo calor e a sede fazia doer sua garganta. O sal impregnado em suas roupas ardia seus ferimentos. Abriu os olhos com dificuldade e teve um súbito mal-estar. O balançar das águas lhe dava náuseas que pouco tivera em sua vida no mar. Vomitou. Avaliou os arranhões, cortes e hematomas, porém nenhum osso havia sido quebrado e nenhum músculo lesionado.

Muitas horas haviam se passado desde a tempestade e não se via mais destroços de Kosmo. Ficou vagando pelas águas tranquilas deitado na madeira, fazendo movimentos curtos na água com uma das mãos. Ao levantar a cabeça, um sorriso se desenhou em seu rosto. Vislumbrou a ilhota. Por instante, cogitou que Zeus o poupara e que ainda havia atendido o desejo de seu coração. Lá estava o lugar da habitação das deidades, embora não tivesse a certeza absoluta. A praia da pequena baía estava bem próxima e a madeira flutuante parecia estar sendo puxada de volta para o mar aberto. Sabia que não poderia esperar pelo destino agora, teria que fazer o que lhe cabia. Reunindo as forças de sua vitalidade, mergulhou e foi nadando bem devagar para a praia, determinado a realizar seu intento. Saiu das águas cambaleando, exausto. Deitou-se nas areias frescas, aproveitando a sombra projetada por algumas árvores. Sentiu a energia renovadora daquele lugar e adormeceu.

A ilhota era cercada de montanhas em tons azuis escuros e verde musgo. Com muitas plantas e árvores. O lugar parecia um grande jardim com flores das mais variadas cores e pétalas de todos os tamanhos, entre perfumes suaves e intensos. A vegetação do vale era um verde vivo com tonalidades brilhantes. As árvores frondosas davam frutos que os homens desconheciam. Os pássaros, diversificados por tamanhos e plumagens artisticamente trabalhadas, voavam livres de predadores. O lince vivia em harmonia com as cabras e os lobos com os javalis. Parecia o paraíso que os antigos falavam.

Dórean acordou revigorado e buscou algo para comer. Tirou o fruto de uma árvore frondosa e começou a comê-lo. Subiu nela e sentou-se num galho. Comeu dois ou três saborosos frutos quando avistou uma criatura se aproximando.

— Um sátiro! — Exclamou de contentamento ao lembrar-se das histórias que sua tia contava sobre sátiros e ninfas.

O híbrido se aproximava por entre as folhagens, desconfiado e curioso, segurando uma flauta de bambu. Sorriu para o jovem e começou a tocar seu instrumento. Em instantes, as feridas e os hematomas de Dórean foram curados. O rapaz desceu da árvore e agradeceu com um gesto de cabeça, mas antes que se apresentasse, o sátiro roubou a cena, começando a pular e a tocar uma breve melodia.

Dórean sentou-se numa pedra, fascinado com a desenvoltura da criatura que, em seguida, começou a cantar:

— Tecelãs!

Um delicado fio as liga aos segredos e desesperanças como um barbante que alimenta a frágil esperança.

Fiar de vida e de morte, delicada teia das deidades, construindo com muito cuidado, vitórias e insanidades.

Construtoras do destino, fiandeiras de nossas realidades, confeccionando a vida, tecidos de brevidade.

Trabalhando silenciosas, cordões que se entrelaçam, que se arrebentam e que se remendam e aos homens desgraçam.

Com mãos invisíveis, do nada surgem, sedas suaves, esperanças que iludem.

E voltam a tecer, em trabalhos incessantes, fiando do cosmos, destinos excruciantes.

Ao terminar sua canção, não deu tempo para ser interrogado pelo rapaz.

— Sinto o cheiro de monstros e semideuses de longe. Você precisa de um banho! Venha! — O sátiro gritou, saiu correndo e rindo, sem se preocupar com maiores abordagens.

Dórean escolheu segui-lo, passando por um caminho estável e se livrando dos galhos dos arbustos que ousavam fechar a trilha. Ao chegar num lago, o sátiro largou a flauta e subiu em cima de uma rocha, saltando nas águas cristalinas de fundo arenoso que podia ser visto de longe. Cardumes de peixes passeavam e novamente se afugentaram quando o rapaz saltou nu da mesma rocha. As águas termais tinham uma temperatura agradabilíssima.

— Quero viver nessa ilha para sempre! — O marinheiro gritou e começou a fazer movimentos circulares com as mãos jogando as águas para cima.

— Gostou desse paraíso, não é mesmo, Dórean?

— Como sabe meu nome?

— Isso não importa. O meu é Oistros.

— Essa é a Ilhota das Moiras, não é mesmo?

— Acertou! — O sátiro respondeu e mergulhou, flutuou na superfície da água e voltou a mergulhar.

— Preciso argumentar com as moiras. Pode me levar até a habitação delas? — Dórean procurava chamar a atenção do Sátiro que nadava, imergindo e emergindo.

— Será um prazer guiá-lo. — Falou sorrindo, passando as mãos no rosto peludo.

O atlante tirou o excesso de sal das roupas, lavando-as no lago, vestiu-se e acompanhou seu guia.

[...]

No cume de um penhasco, numa casa grande e simples, com colunas circulares de sustentação por todos os lados, as três irmãs labutavam, sentadas em cadeiras ao redor do maquinário.

— Já cortei e separei os fios cortados, minhas irmãs, depois me lembrem de agradecer Poseidon.

— Mas o fio do rapaz continua intacto! — Clotó observou.

— Sim. O dele e de poucos que sobreviveram àquela tormenta.

— Por que não cortou o fio de todos eles? Átropos! — Clotó protestou.

— Os humanos só morrem quando chega a hora! A de alguns deles ainda não chegou. – Átropos falou com irritação e ironia.

— Talvez Zeus esteja se metendo no nosso trabalho. — Láquesis falou com desdém.

— Nós somos o destino. Ele não tem esse direito! — Átropos se irritou novamente.

— Eu gosto do rapaz atlante. Desde que Clotó resolveu puxar o fio dele antes que você cortasse o fio da mãe do bebê, percebi uma inspiração naquela alma. — Láquesis falou suspirando.

— Pode Zeus fazer algo que tu não enxergues minha irmã? Ele pode ocultar os atos dele da nossa visão? — Átropos perguntou com desconfiança e raiva.

— Certamente, Zeus tem esse poder. — Láquesis afirmou.

— Átropos! Foste tu quem tirou a vida da mãe do atlante e queria tirar a do bebê, mas Láquesis me convenceu a puxar logo o fio da vida do pequeno Dórean. — Clotó falou, procurando uma boa discussão.

— Ele cresceu e de alguma forma carrega em sua alma algo contra o destino. — Láquesis deu uma entonação de comoção à voz.

— Ora, ora, minhas irmãs! Nós somos o destino e isso não agrada ao Poderoso Zeus! — Átropos falou, olhando com desprezo para cima.

— O que foi isso? — Clotó indagou, parando de puxar os fios.

— Láquesis! Por que fez isso? — Átropos perguntou, parando de cortar.

— Eu não fiz nada, minha irmã. — A voz de Láquesis ressoou sonsa.

— O rapaz de quem falamos está aqui! — Uma pequena formação nebulosa surgiu diante de Átropos com a imagem do atlante e do sátiro caminhando para a casa da destinação.

O híbrido passou pelo vão da porta, cerimonioso. Fez um gesto respeitoso e anunciou:

— Oh! Grandes deidades do destino, eu vos trago o mancebo Dórean de Atlântida!

As três se levantaram de suas cadeiras ao mesmo tempo e se aproximaram com passadas na mesma cadência, andando ao redor do rapaz.

— Que roupas são essas? — Clotó indagou, reparando nas roupas com partes rasgadas.

— Como ousas nos visitar? — Átropos parou de circular em volta dele e lançou um olhar funesto para o jovem.

Enquanto um interrogatório se esboçava, Oistros saiu sorrateiro até a cozinha e começou a devorar as guloseimas que estavam sobre a mesa.

— O destino me trouxe aqui. — Dórean falou com sarcasmo.

— Nós somos o destino, garoto insolente! — Átropos rebateu, aproximando seu rosto do dele.

— Irmã, não seja tão colérica! Dórean só quer conversar. — Virando-se para o rapaz, falou com uma voz aveludada: — Venha, vou te dar roupas novas e água doce para beber. — Láquesis pegou o rapaz pela mão e o levou até um quarto. — Tem tudo de que precisa, não se apresse, conversaremos ao anoitecer.

A ceia e o vinho de Dionísio estavam sobre a mesa farta. As deidades pareciam ainda mais belas e já estavam sentadas à mesa quando o rapaz, com roupas apropriadas e reverencioso, aproximou-se da mesa.

— Não percebi o quanto és belo! — Clotó respirou fundo, enquanto Láquesis a olhou com ciúme.

— Sente-se! São poucos os homens que chegaram a nossa habitação para contestar o destino. — Átropos falou secamente.

— Como sabem o que vim fazer?

— Somos deusas! — Clotó falou, encolhendo os ombros e revirando os olhos.

— O que tu queres saber? O passado da humanidade ou o futuro que a aguarda? — Átropos perguntou sem olhar para jovem, enchendo os cálices de vinho.

— Quero saber por que determinam a vida de cada humano de forma tão injusta?

— Essa é fácil, minhas irmãs, eu vou responder. — Virou-se para Dórean. — Bom, nós somos o próprio destino! — Clotó falou e as três começaram a gargalhar.

— Vocês não respeitam a causa e a consequência. A ordem que estabelecem é uma tirania. Pessoas caridosas tem uma morte horrível e pessoas arrogantes se perpetuam no poder, oprimindo pessoas de boa vontade, destruindo famílias, sonhos e planos. Esses reis, governadores e senadores desdenham do povo e continuam aí, acumulando riquezas desnecessárias, tendo a saúde de um minotauro e esbanjando um poder que não lhes pertencem, humilhando o cidadão e rindo sadicamente de tudo que fazem sem a menor punição. Falando em democracia, mas sem acatar a vontade do povo. Os homens precisam do livre arbítrio e com ele estabelecer a justiça por toda a Gaia!

— Somos o destino e não o juízo! — As irmãs falaram em uníssono, incomodadas com as palavras do rapaz.

— Então não precisamos de divindades que não podem fazer justiça! Esta sim deveria ser a alma da ordem do universo, não o que vocês fazem com as pessoas e as nações de Gaia!

— Olha aqui rapaz, o livre arbítrio é uma aberração, um monstro desconexo, um titã a ser dominado! Você pode escolher tudo? Seguir esse ou aquele caminho, quando as circunstâncias não te permitem? Além disso, perderíamos nosso trabalho primordial! — Átropos alterou o tom de voz.

— Tenha calma, querida irmã! Comamos e bebamos! Por que o amanhã às nós pertence. — Láquesis pegou o cálice de vinho que já estava cheio e o ergueu a sua frente convidando-os a brindarem, no que foi acompanhada. — Brindemos ao destino de Dórean, dos habitantes de Atlântida e às nações de Gaia!

Dórean fingiu beber o conteúdo do cálice, pois conhecia o vinho forte do deus. Sabia que não tinha o controle da situação, afinal, estava diante de deusas, contudo sabia que poderia fazer algo. Começou a comer dos manjares juntamente com as deidades, mas evitava bebidas fortes que por ventura estivessem na mesa, contentando-se com água fresca e pura, ao contrário delas, que se embebedaram, discutiram e por fim adormeceram nos aconchegos de Hypnos.

O rapaz levou em seus braços cada uma das moiras até um quarto, fazendo-as repousar em leitos aconchegantes. Depois correu para buscar ajuda com o sátiro que servilmente o ajudou a se apossarem do maquinário divino de tear. Carregaram-no a madrugada toda até o limite do penhasco. Cansados, sentaram-se para recuperar o fôlego.

O sol despontou.

— Ajude-me a jogar esse maquinário de tecer penhasco a baixo.

— Não posso.

— Por quê?

— Sou um sátiro. Se ajudá-lo a empurrá-lo, esse maquinário não se destruirá, terá sido tudo em vão. — O híbrido começou a se afastar. — Nenhuma divindade menor pode destruir o que foi forjado por uma divindade maior.

— Então, foi tudo uma grande ilusão. Nem divindade eu sou, mas um simples mortal. Diga-me por que me ajudou a trazê-lo até aqui se já sabia disso?

— Somente o filho de Zeus com uma mortal poderá destruir o maquinário divino. Então você pode destruí-lo...

— Não compreendo. Está dizendo que sou filho de Zeus?

— Você e tantos outros. Uma coisa que nosso pai não se cansa de fazer é copular com belas mortais de Atlântida e da Grécia. — Oistros se afastou um pouco mais do maquinário e continuou. — A tempestade, eu pude vê-la aqui do alto. Ela só aconteceu em volta da trirreme. Aqui, o mar estava calmo e o céu ensolarado. Poseidon não te destruiu por que Zeus te protegeu. Entende agora?

Dórean olhava para o sátiro sem acreditar.

— Agora que tem o conhecimento e a consciência, cumpra seu destino.

O rapaz ainda estava confuso, mas as palavras do híbrido talvez fizessem sentido, pois nunca conhecera o pai e seus parentes jamais quiseram conversar sobre esse assunto, contudo, o que de fato importava era a destruição do maquinário divino que confirmaria então sua condição. Pegou o tear e o lançou do penhasco que, ao colidir no chão, espatifou-se em dezenas de pedaços.

Ficou apreensivo, aguardando algum tipo de manifestação. Nenhum deus se revelou através da natureza. Talvez não estivessem assistindo.

— Nada mudou. Eu esperava que algo extraordinário acontecesse. — O rapaz olhou ao redor e para o alto com certa decepção, mas feliz pela descoberta e pela realização do que havia predeterminado.

[...]

— Então vocês estavam tramando com Zeus, suas traidoras! — Átropos vociferou, já livre do efeito do vinho forte de Dionísio, constatando o desaparecimento do tear e a ausência de Dórean.

— Se te contássemos, sabíamos que não aceitaria destruir o maquinário. Não podemos continuar presas a ele, trabalhando de geração a geração. Éramos escravas semelhantes aos escravos que morreram ontem à tarde. Escravas da crença de que éramos as responsáveis pelo destino dos homens. Deixe que as nações de Gaia façam suas escolhas. Deixe que a humanidade invente, construa, use a ciência, crie suas próprias ideologias. — Argumentou Láquesis.

— Esse era o nosso encargo, irmãs, vocês não tinham esse direito! — Átropos falou, andando de um lado para o outro.

— Zeus nos via como ameaça ao seu poder. Então fecundou Dórean e a ele, eu mesma, o incumbi de um importante evento, o de destruir o maquinário e de nos libertar. — Láquesis explicou.

— Agora que não estou presa a vocês duas e ao maquinário de tear, vou buscar o que sempre almejei. Eu amo Eros e irei ao Olimpo reivindicar seu amor. — Disse Clotó saindo da casa e elevando-se até as grandes nuvens brancas. — Até algum dia, minhas irmãs.

Enquanto contemplavam Clotó desparecer entre as nuvens, Láquesis voltou-se para Átropos:

— A escolha é sua. O destino é você quem escolhe. Eu buscarei o amor de Dórean. — A deusa partiu para a praia.

Átropos sentou-se no chão e recostou-se na parede, desolada. Suas irmãs partiram para o destino que haviam escolhido. A fiandeira da morte ainda estava abalada pelo modo como tudo acontecera.

— Esperem! — Láquesis aproximou-se do pequeno barco que o sátiro providenciara. Pegou nas mãos de Dórean e fitou em seus olhos. — Somente partirei com você nesse barco se assim escolher.

Naquele instante, todo seu corpo espetou. Lembrou-se dos sonhos. Havia visto essa cena inúmeras vezes, mas agora enxergava um rosto divinamente belo.

— É claro que partiremos juntos!

Eles entraram e o sátiro empurrou o barco, que deslizou, afastando-se da ilhota.

— Venha, Oistros! Ele gritou ao ver o guia olhando para os dois.

— O meu destino já foi selado! — Oistros acenou com um sorriso desbotado. Em seguida, voltou pelo mesmo caminho em que aparecera para Dórean pela primeira vez.

[...]

O sátiro e a fauna da ilhota passaram a fazer parte dos jardins do Olimpo.

Clotó resplandeceu no monte e foi recebida por Zeus que a conduziu à presença de Eros.

Átropos teve um acesso de cólera, sua ira despertou o poder da morte, da grande destruição. Para compensar a traição que havia sofrido de Zeus e de suas duas irmãs, o próprio pai dos deuses permitiu que a deusa da morte lançasse sua ira contra o continente de Atlântida para se vingar de Dórean. Em um dia e meio, Atlântida desapareceu juntamente com seus habitantes. No entanto, a fiandeira não se deu por satisfeita e secretamente começou a costurar, com as próprias mãos, o emaranhado de fios destinados a dar fim aos dias da humanidade.

Láquesi, abrindo mão da glória eterna, uniu-se a Dórean. Escolheram ir para Atenas, onde a deusa passou seus dias vivendo de forma semelhante aos mortais, sem uso de seu poder, tornando-se amante do rapaz atlante que também abdicou de sua condição. Não se ouviu notícia de mais nenhum atlante vivo, a não ser o próprio Dórean. Esse foi o destino do atlante.

[...]

E a humanidade? Bom, ela passou a exercer o livre arbítrio e continuou a cometer atrocidades e injustiças contra seus semelhantes e contra a natureza, ignorando o fim que o “destino” reservou para ela...

April 16, 2020, 5:47 p.m. 0 Report Embed Follow story
4
The End

Meet the author

Alex Lorenzo Olá, sou o Alex. Carioca. Amante de literaturas, com desvios de predileção por fantasia medieval. Curto novelas de ficção científica, com distopia, melhor ainda. Viajo por contos de quaisquer modalidades, seja estilo Stephen King, seja Machado de Assis. Escrevo por terapia, por amar. Nas horas vagas, desenho. Meu sonho é desenhar meus próprios personagens. Bom, se quiser conversar, sugiro uma xícara de café com biscoitos amanteigados. Abraços!

Comment something

Post!
No comments yet. Be the first to say something!
~