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Lia e Toni descobrem que estão grávidos e passada a surpresa eles começam a preparar tudo para a chegada do bebê. Após o nascimento da filha, uma tragédia abalada a vida do casal, deixando-os distantes um do outro. Lia tenta lidar com a dor dedicando-se à dança e Toni passa os dias a tentar se reaproximar dela. Uma reviravolta no destino e os dois se reaproximam ainda mais. É preciso lidar com a saudade, mas medi-la não é tarefa fácil. Teria mesmo como medir a saudade? Teria como substituir alguém que já se foi? Lia e Toni vão descobrir isso da melhor forma possível


Short Story For over 18 only.

#família #gravidez #lembrança #saudade #vida
Short tale
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Capítulo Único

O baque seco no chão de madeira denunciou o tombo interrompendo o giro de 360º graus. Lia caiu de olhos fechados e assim permaneceu, não queria que a lembrança fosse embora. Ela já havia caído tantas vezes e por motivos tão diversos que aquele não deveria ser descartado tão rápido.

Ela não conseguia se concentrar, mas isso não a irritava. Estava mais para melancolia-saudade-tristeza. A coreografia que criara era inspirada na sua vida, nos melhores momentos que ela selecionou junto com ele. Era seu passaporte para a entrada no grupo de ballet moderno do Teatro Municipal.

A audição seria em uma semana, uma chance única para cada bailarino que desejava entrar para o maior e melhor corpo de dançarinos da cidade. Talvez o melhor do país e um dos melhores do mundo. A coreógrafa era uma russa chamada Katarina Duskin, formada no Bolshoi com honra e reconhecimento. Era chamada de Diabo de Praga, cidade onde nascera, mas o apelido veio depois.

Katarina Duskin era exigente, seletiva, direta, elitista e uma eliminadora sumária. Katarina não sentia pena e nem valorizava o esforço de qualquer dançarino que cometesse uma falha. Se ela estava de mau humor e recebesse um sorriso, o sorridente candidato saia chorando. Se ela estava de bom humor e não recebesse um sorriso, o sério candidato saia furioso. Essa era Katarina Duskin, amada e odiada por todos os dançarinos que já haviam passado por ela, que permaneciam com ela e que nunca a tinham visto.


Lia riu, imaginou-se no palco exatamente naquela posição e Katarina olhando para ela como quem olha para um monte de merda fedida na calçada. Mas a lembrança estava em sua mente, ela girava dando para Lia uma visão geral do que ela tinha vivido e que ainda queria viver mais. Apertou os olhos como se pudesse prender o sorriso por trás das pálpebras e uma lágrima escapou solitária e rolou devagar pelo rosto avermelhado e suado.




“- Eu estou tão gorda.

- Você está gostosa! – Toni sorria divertindo-se com a preocupação de Lia – Está deliciosamente gostosa!

- Sua opinião não conta.

Ela estava nua na frente do espelho e virava-se de um lado para o outro analisando o corpo esguio, apertando as nádegas e tentando pinçar um pouco de gordura na barriga. As coxas grossas, trabalhadas e definidas pela prática do ballet se evidenciavam e combinavam perfeitamente com o quadril largo herdado da mãe e um traseiro empinado e firme encaixado com precisão.

- Estou com celulite! – ela apertava a carne entre o polegar e o indicador.

- O que é isso? – Toni provocou – Nunca vi!

- Engraçadinho! – Lia olhou para ele com um sorriso falso.

Voltou-se para o espelho e apalpou os seios fartos juntando-os e levantando. Toni atentou-se sobre aquela cena e seus olhos vidraram na mulher. Ele estava sentado na cama, lia um livro para fazer uma resenha para o jornal onde trabalhava e tinha uma coluna onde escrevia críticas sobre livros.

Click!

Lia virou-se para ele.

- O que está fazendo? – ela franziu as sobrancelhas.

- Um nude seu! – ele travou o celular e esperou.

- Pode apagar! – Lia esqueceu o espelho e caminhou na direção dele.

- Nem pensar! – Toni escondeu o celular atrás das costas – Quero uma lembrança sua, antes de se transformar numa boneca de silicone.

Lia parou e juntou ainda mais as sobrancelhas. Toni colocou o livro para o lado e a encarou. Os olhos azuis falsamente furiosos fingiam fuzilá-lo enquanto os olhos negros e sorridentes convidavam para um abraço, talvez um beijo ou, quem sabe, até um amasso.

Ele se levantou e foi na direção dela, parou bem perto e Lia pôde sentir o calor do corpo de Toni. Ele era sempre quente, não importava em que estação do ano estivessem. Suas mãos, seus braços, seu peito onde Lima descansava a cabeça ouvindo as batidas do coração de Toni.

- Vem aqui. – ele a pegou pela mão e voltaram para o espelho – Olha bem.

Toni se colocou atrás de Liaa e segurou nas mãos dela.

- Veja como meu rosto é áspero quando a barba está crescendo. – ele deslizou as pontas dos dedos dela sobre sua face – Veja como minha mão é áspera. – Toni acariciou o braço de Lia.

Ela encostou a cabeça no peito dele e fechou os olhos.

- Eu tenho pelos pelo corpo todo, meus pés são gigantes, eu sou desastrado e ronco. – Lia suspirou – E ainda assim você diz que me ama. – ele sussurrou bem perto do ouvido dela.

Lia sorriu.

- Você é perfeita, suave, delicada, leve, - Toni passou as pontas dos dedos no colo de Lia – sua pele tem um cheiro maravilhoso e quando você dança parece flutuar.

- Toni... – Lia se encostou mais nele.

- Eu te amo do jeito que você é, nem a mais e nem a menos. – ele acariciou o rosto dela – Eu te amo porque você tem a medida exata para se encaixar em mim. Seu sorriso me deixa feliz, o som da sua voz é minha música preferida e quando você chega tudo é mais bonito e vivo Lia!

Ela se virou e abriu os olhos, tocou o rosto de Toni com as duas mãos e sorriu.

- E se eu pesar mil kilos, você ainda vai me amar? – ela provocou.

- Só uma coisa me impediria de te amar. – ele respondeu sério e Lia também ficou séria.

- O que? – ela perguntou com certo receio de ouvir a resposta.

Toni a abraçou e ela colocou os pés por cima dos pés dele. Passou os braços pelo pescoço dele e esperou. Toni deslizou o nariz no rosto de Lia e a apertou mais no abraço.

- Eu não te amaria somente se você não existisse. – Lia sorriu e recebeu os lábios de Toni nos seus.”




Lia respirou fundo e abriu os olhos vendo no grande espelho a posição patética em que estava. Levantou pensando um palavrão que não falou e a porta da sala se abriu dando passagem para um grupo de garotinhas cor de rosa.

Ela se apressou para o canto da sala onde estavam suas coisas e tomou tudo nos braços antes que alguém pudesse percebê-la ali.

- Tia Lia! – tarde demais.

Os olhos de Lia se inundaram e ela se esforçou para engolir o choro. Secou o rosto com a toalha antes de se virar e plantou um sorriso forçadamente feliz nos lábios.

- Oi Gigi! – a garotinha mostrou os dentes e segurou o tutu rosa com as mãos.

- Você vai me ver dançar hoje? – ela se balançava com a postura ereta.

- Hoje não vai dar amorzinho. – Lia acariciou a bochecha da menina e fitou por alguns instantes.

Os cabelos negros presos em um coque alto e bem feito, os fios puxados para trás e fixados com gel não davam chance de sair nada do lugar. O body rosa bebê com mangas curtas combinava com o tutu bandeja. Nas pernas, meia calça rosa bebê leitosa e sapatilhas de ponta com amarras em fita de cetim, tudo rosa bebê.

Gigi era a melhor bailarina da turma mirim da Academia de Ballet. A chamavam de mini Lia por causa de seu esforço um tanto demasiado para a idade. Mas para Lia, Gigi era uma dançarina nata e se comportava como tal.

Nem sempre fora assim, Gigi era desajeitada e não conseguia decorar passos e sequências durante os ensaios. Um dia Lia ficou para assistir as garotas dançarem e ao perceber que Gigi tinha dificuldades, resolveu ajudar.

Durante um ano Lia deu aulas particulares para a menina e com isso ela conseguiu aprender, desenvolveu a disciplina exigida pelo ballet e o mais importante, Giovana aprendeu que dançar exige mais do que decorar passos, nomes, sequências. Dançar é uma arte que vem do espírito, é algo que só o amor por ela é capaz de desenvolver bons dançarinos.

Gigi aprendeu que técnicas são importantes, mas a paixão e a dedicação são mais ainda. Não adianta técnica sem paixão. O corpo precisa estar leve e ser levado pela música como se tivesse a capacidade própria de fazê-lo. Não deveria ser o cérebro a comandar e sim o coração.


- Por que está chorando tia Lia? – a menina secou a lágrima que escorreu sem que Lia percebesse.

O coração de Lia acelerou e ela abraçou Gigi. Queria poder contar a ela o motivo de suas lágrimas, mas a garotinha não entenderia. Não era função dela entender. Por que logo Gigi? Lia se perguntava todos os dias, por que uma garota de cabelos negros e olhos azuis?

Ah, Deus! Lia apertou um pouco mais o pequeno corpinho contra seu peito e deixou que algumas lágrimas rolassem em silêncio e logo secou o rosto e soltou a menina.

- Eu estou um pouco triste hoje, - ela não queria mentir – mas vai passar. – Lia sorriu e beijou a bochecha de Gigi.

- Eu te amo, tia Lia! – Gigi a abraçou pelo pescoço e Lia prendeu a respiração para não explodir em lágrimas.

- Eu também te amo, meu anjo! – ela passou a mão nas costas da menina e logo se separaram.

Lia se despediu e saiu quase correndo da sala em direção ao banheiro. Trancou-se em uma das cabines e soltou o aperto no peito em um choro compulsivo, desesperado e triste. A dor que Lia sentia naquele momento era a mesma que sentiu há seis meses. Era como se estivesse se repetindo para castigá-la, para vê-la sofrer e sentir a culpa novamente.

E sem se importar se seria ouvida ou não Lia gritou, gritou e socou a porta algumas vezes. Gritou para expulsar a dor ou parte dela, pois talvez nunca ficasse livre de vez. Mas naquele momento era preciso gritar e fazer o universo entender de uma vez por todas que a culpa não foi dela. E que ele deveria parar de querer castigá-la, pois não tinha esse direito.




“Lia estava na ponta dos pés em cima dos pés de Toni. Enterrou os dedos nos cabelos dele enquanto seus lábios o beijavam devagar sugando da língua e soltando-a. Beijando o lábio de cima e depois o de baixo e prendendo entre seus próprios lábios.

As mão de Toni passeavam pelo corpo de Lia, explorando cada centímetro, sentindo a maciez da pele nua e arrancando dela suspiros e arrepios. Ele a tomou nos braços e a levou para a cama, como se leva uma noiva para a primeira noite de núpcias.

Deitou Lia no centro da cama e se colocou por cima dela. Os dois se olharam por alguns segundos, olharam profundamente nos olhos que trocaram de cores e Toni era Lia e Lia era Toni.

Ele se inclinou e a beijou antes que aquela sensação de união se dissipasse e Lia o abraçou antes que ele pudesse se afastar novamente. Ela sentiu por todo o corpo uma sensação de completude e suas mão correram pelas costas de Toni acariciando suavemente.

Toni não tinha pressa, passou os braços por baixo de Lia e a envolveu por inteiro. Seus lábios percorreram a face da mulher amada. Beijou seus olhos, sua testa, suas bochechas, o queixo e a ponta do nariz. Os beijinhos estralados arrancaram risos divertidos dela.

Toni desceu pelo pescoço, devagar e provocativo. Passando a ponta da língua levemente e arrancando gemidos silenciosos da pele que se arrepiava e Lia inclinava a cabeça para trás liberando mais espaço.

Uma das mãos de Toni acariciou a lateral do corpo de Lia, subindo pelo quadril, contornando a cintura e deslizando para a barriga subindo até um dos seios. Era farto, mas cabia na mão de Toni e ele o envolveu e chupou o mamilo enrijecido. Lia gemeu baixo.

Enquanto ele acariciava o seio, sua língua dançava sensualmente ao redor da auréola. Molhando, excitando e chupando com os lábios. Logo ele trocou e a outra mão cobriu o outro seio e as duas os juntaram e Toni mergulhou beijando e lambendo.

Em seguida ele se dedicou ao outro seio, da mesma forma que fez com o primeiro e Lia gemeu mais uma vez levando suas mão até os cabelos encaracolados de Toni. Ela segurava mechas entre os dedos apertando conforme seu corpo reagia ao toque do homem amado.

Sem tirar as mãos dos seios de Lia, Toni continuou sua descida beijando a barriga e dando leves chupadas na pele branca que logo se avermelhava. Lia continuava a segurar em seus cabelos ora acariciando, ora puxando.

As mãos de Toni deslizaram pelas laterais para acompanhar seus movimentos. Ele ergueu uma perna de Lia e distribuiu beijos na parte interior da coxa. Depois a outra e mais beijos provocantes. Toni se encaixou entre as pernas dela e a beijou bem ao pé da barriga, passou a língua na virilha e Lia soltou um gemido estremecido.

Toni sorriu. Ela estava molhada, extremamente molhada e sem qualquer cerimônia ele deslizou a língua por entre os grandes lábios arrancando de Lia um gemido alto e suas pernas estremeceram.

Ele amava o gosto dela. O cheiro dela. E a combinação dos dois era um vício que ele não tinha intenção de curar. Toni deslizou a língua mais uma vez e posicionou o dedo médio na entrada.

- Espera! – Lia falou de repente e se afastou sentando na cama.

- O que foi? – Toni arregalou os olhos – Fiz algo errado?

Lia balançou a cabeça devagar, estava ficando pálida. Toni se aproximou mais, ia colocando a mão em seu rosto, mas Lia o afastou e pulou da cama correndo para o banheiro. Toni ficou paralisado até ser despertado por um barulho característico.

Lia estava vomitando.”




- Você viu a cara dela?

- Aquela demônia não deve trepar nunca!

Duas garotas entraram no banheiro e Lia agradeceu a Deus por não estar mais gritando. Ficou em silêncio ouvindo a conversa enquanto se recuperava.

- Ouvi dizer que a tal de Lia Reis é uma das cotadas por ela.

- Também, você já viu como ela dança? – a de voz fina falou – Eu queria ter um por cento daquele talento.

- Eu não acho que ela seja tudo isso. – essa tinha uma voz nasalada, meio fanha – Fiquei sabendo que ela criou uma coreografia própria para a audição e não quis ensaiar com o resto da turma.

- Isso chama auto confiança! – a da voz fina tinha um sorriso no rosto – Se apresentar sozinha para Katarina Duskin não é pra qualquer um.

Lia sorriu, se elas soubessem o quanto ela estava nervosa.

- Eu nem vou me atrever, - a fanha confessou – só de olhar pra ela eu já caio.

As duas riram alto. De fato, muitos bailarinos caiam na primeira sequência e diziam que o olhar de Katarina Duskin tinha o peso de várias toneladas.

- Um dia eu vou me apresentar para ela... – a da voz fina falou sonhadora e minutos depois as duas saíram do banheiro.

Lia ainda esperou um tempo e saiu da cabine. Seus olhos estavam levemente inchados e ainda mais claros do eram. Jogou um pouco de água fria para refrescar e se mirou no espelho.

- Você não se importa muito, não é? – o reflexo perguntou sorridente.

- Não. – ela respondeu séria.

- Então, por quê? – o reflexo ergueu os ombros.

Lia o encarou pensando na resposta que nem ela sabia. Perguntou-se por que mentalmente, mas ainda não sabia.

- Isso importa? – ela devolveu para o reflexo.

- Importa? – ele rebateu.

- Talvez. – Lia desviou os olhos e fitou a água que saia da torneira.

- Lia, - o reflexo chamou – você quer isso?

Ela continuou olhando para a água. Olhou os detalhes da torneira que tinha o poder de prender e soltar o líquido transparente. A água era tão forte, mas não conseguia vencer as amarras da daquele pedaço de ferro que se retorcia e torcia por dentro.

Lia poderia ser a torneira ou a água. Dependia dela.

- Você quer isso? – o reflexo insistiu e Lia se voltou para ele.

Os olhos claros eram quase tão límpidos quanto a água que saía da torneira. Um azul celeste quase transparente. Ela se viu dentro dos olhos no espelho, pela primeira em um ano e meio, Lia se via através de si mesma.

- Não. – ela respondeu devagar, fechou a torneira e saiu do banheiro.

Saiu correndo, tinha toda a pressa que não teve nesses dias todos que haviam ficado para trás. Nos dias que perdera olhando para baixo e sentindo pena de si mesma. Afastando pessoas que amava e, principalmente, a pessoa que a amava acima de tudo.

Lia sabia que não podia recuperar o tempo perdido, nem queria. Recuperar, para ela, era trazer tudo de volta e Lia precisava deixar o passado no passado. Guardar a saudade no coração, junto com o amor que jamais morreria. Sentir com carinho e sorrir, mesmo que sob lágrimas, mas lágrimas de saudade e não de dor.

- Eu imaginei. – o reflexo falou antes de desaparecer no espelho e seguir aquela a quem ele pertencia.




“- Grávida? – Lia perguntou surpresa.

- Sim, - o médico sorria – aproximadamente de nove semanas.

- Dois meses? – Toni estava eufórico.

- Isso, mas precisamos fazer os exames mais detalhados e começar o pré natal. – o médico anotou alguma coisa na ficha de Lia e deixou o quarto.

Toni sentou ao lado dela e segurou na mão que não tinha agulha grudada. Lia olhou para ele com um misto de alegria e dúvidas.

- Um filho... – foi o que Toni conseguiu falar.

- É por isso que estou gorda. – foi o que Lia conseguiu pensar.

Os dois se encararam por segundos e Lia desatou a rir contagiando Toni e logo os dois estavam gargalhando abraçados. Toni tinha lágrimas nos olhos e Lia já acariciava a barriga.

- Nós vamos ter um bebê! – o dois falaram juntos.

E iniciaram conversas sobre nomes e cores do quarto. Lia foi liberada duas horas depois com uma lista de vitaminas e exames. Toni ia ao redor dela protegendo como se Lia estivesse frágil.

Fizeram uma festa no final de semana e contaram para amigos e familiares e a notícia foi bem recebida. Três meses depois Lia já tinha tudo que precisava sem ter gastado quase nada. O bebê, que era uma menina, havia ganhado praticamente tudo.


- Laura. – Lia falou de repente enquanto jantavam, pela terceira vez, no restaurante havaiano.

- Laura? – Toni pronunciou – Laura. – ele repetiu – É, gostei!

Lia sorriu.

- Laura. – os dois falaram juntos e a pequena chutou fazendo Lia dar um pulo na cadeira.

- Ela gostou! – Toni acariciou a barriga de Lia e Laura chutou novamente.

- Ela gosta de você. – Lia sorriu para Toni.

- Eu também gosto dela. – mais um chute e dessa vez ele acariciou Lia e a beijou – Eu amo vocês duas!

Lia estava com oito meses quando a bolsa estourou. Apesar de ser um parto prematuro, foi natural e em questão de três horas Laura estava nos braços da mãe. Os cabelos ralos e negros assim como os olhos negros de Toni.

No começo Lia estava um pouco desajeitada, mas com a ajuda da mãe e das amigas que já eram mães, ela foi se adaptando rápido. Mas Laura chorava muito, tinha cólicas fortes que faziam com que Lia e Toni ficassem acordados a noite toda.

Mesmo revezando, um não conseguia dormir por causa do choro estridente de Laura. Os médicos não resolviam o problema e o casal achava um absurdo. Todos os amigos diziam que cólicas assim não eram normais.

Laura não crescia, não aumentava de peso, não mamava direito nem no peito nem na mamadeira. Toni estava com um livro grosso e difícil para ler. Lia disse para ele ir para casa de um amigo e que voltasse de manhã. Ele já havia recusado três livros e estava quase perdendo o emprego.

- Você tem certeza? – ele ninava Laura que havia conseguido dormir um pouco.

- Eu não estou dançando e se você perder o emprego aí fica complicado. – Lia o beijou – Eu tenho certeza.

- Então vá dormir um pouco, eu fico com ela. – Lia aceitou, estava exausta.

Caiu na cama feito um tijolo e apagou.


Chovia forte e um trovão assustou Lia que despertou e ouviu o choro de Laura. Levantou-se rapidamente e a pequena esperneava no berço, as mãozinhas fechadas se agitavam no ar e o rosto estava vermelho.

- Eu estou aqui, calma. – Lia falou enquanto tomava a filha nos braços.

Mas Laura parecia não ouvir e continuava a chorar. Lia a colocou encostada no peito e deu leves batidas nas costas enquanto a balançava.

- Meu amor, a mamãe está aqui, calma. – Lia tocou a fralda e sentiu o tecido do macacão molhado – É isso, não é?

Ela sorriu para a criança e se apressou para trocar a roupa e a fralda. Tudo limpo e Laura ainda chorava, mais baixo e menos desesperada, mas chorava.

- Eu sei o que você quer! – Lia foi para seu quarto e ajustou a iluminação deixando apenas a luz fraca e amarela da luminária de chão.

Sentou encostada no travesseiro e abriu a camisa desnudando o seio que começava a liberar leite. Um trovão soou alto e ela se assustou, mas Laura não se abalou e abocanhou o bico rosado com força.

- Ui! – Lia sorriu, pela primeira a filha aceitava o peito sem qualquer resistência e a mãe sentiu que ela sugava faminta e desesperada – Meu anjinho!

Ela acariciou os cabelos negros da filha. Queria que Toni estivesse ali para ver, queria compartilhar com ele esse momento. Olhou para a janela e do lado de fora uma ventania tornava a paisagem um caos. Os galhos das árvores se balançavam envergando, quase quebrando. A chuva dançava conforme o vento mudava de direção e jogava gotas grossas contra os vidros.

Lia imaginou uma vaca voando em meio a um redemoinho, como em desenhos animados. Riu.

Poderia passar um elefante voador e uma girafa de cartola. Ela olhou de volta para Laura e a pequena tinha os olhos aberto e a olhava.

A mãe secou uma lágrima parada no cantinho do olho esquerdo e sorriu para a filha. Era um momento único desde que Laura nascera e Lia não queria perder um segundo daquilo. Deitou seus olhos sobre a menina e assim permaneceu. O som da chuva foi acalmando tudo, os olhos de Lia começaram a pesar, os de Laura se fecharam, embora teimassem em permanecer abertos olhando para a mãe. Uma última olhada para a janela e Lia viu alguém acenando um adeus. Ela acenou com a mão livre e tudo escureceu.”




- Você tem acampado em toda a minha mente

Cavando para matéria roxa

Alimentando seu fogo

E eu estive pendurado na nuvem nove

Bebendo vinho fino

Não pode me levar mais alto

Toni tocava um ukulelê sentado na poltrona de amamentar. Nunca entendera por que chamavam de poltrona para amamentar, não tinha nada que a fizesse muito diferente de outras poltronas. Era confortável, isso ele tinha que admitir.

Ele cantava uma música de Phum Viphurit, a mesma que cantava para Laura diversas vezes enquanto a embalava nos braços grandes e largos na tentativa de fazê-la se acalmar. O móbile por cima do berço girava com peixes diversos nadando no ar.

As paredes do quarto eram forradas com tecido azul claro, bem claro. Do meio da parede para baixo peixes de diversas espécies nadavam no oceano de alvenaria. Sereias e tritões, baleias, tubarões, cavalos marinhos, estrelas do mar, peixes grandes e peixes pequenos. Águas vivas coloridas, flores marinhas, algas crescendo entre pedras e corais. Um baú de tesouros e as conchas abertas exibindo suas pérolas.

- Me tire, só para me empurrar

Você está até o amanhecer

Tentando seguir em frente

Amantes deram errado

Deixa ir, dói, eu sei

É hora de correr

Moonrise Kingdom

Apenas enterre suas preocupações e cante!

Ooooo


Do meio para cima era tudo azul claro, como um céu e uma faixa azul marinho dividia o horizonte. Na terra um berço perolado com um L entalhado na cabeceira, um tapete redondo e felpudo azul marinho e um balanço pendia do telhado preso a um cabo de aço. O balanço parecia com uma cesta e tinha cor de areia de praia. Uma cômoda na mesma cor do berço com detalhes em azul marinho e o pequeno guarda roupas embutido na parede com as portas pintadas de verde água. A poltrona de amamentar era verde água também.

- Nós andamos em círculos

Lutando nossas batalhas intermináveis

Mas realmente, quem se importa?


Nichos coloridos se espalhavam pelas paredes guardando bichos de pelúcia marinhos e não marinhos. Fotografias pendiam em quadros minimalistas e a cortina amarela como o sol ambientava tudo com sua luz que refletia de fora para dentro.

- Ooooo Ooooo Ooooo Ooooo


Toni cantava alto acompanhando a música original que tocava na caixa de som em cima da cômoda. Não ouviu quando a porta destravou e abriu. Não ouviu Lia chamar, não ouviu a porta fechar e trancar. Não ouviu os passos dela se aproximando e não viu quando ela parou na porta e deixou que sua bolsa caísse no chão.

- Puxe-me para fora, apenas para me empurrar, novamente

A vida fica difícil

Apenas não mantenha o mundo em seus ombros




“Toni voltou pela manhã. Havia passado a noite no escritório para terminar a leitura do livro e fazer a resenha para sua coluna. Tinha conseguido e devia isso à Lia. Nas mãos um buquê de girassóis e uma caixa de morangos silvestres.

As flores e as frutas preferidas dela.

Entrou devagar para não acordar as duas mulheres da sua vida. A casa estava silenciosa e só se ouvia o barulho da chuva, agora, mais fraca. Deixou os morangos na mesa da cozinha, tirou os sapatos molhados e foi até o quarto de Laura. Ao ver que a filha não estava no berço Toni sorriu. Mãe e filha dormiam juntas e ele amava ver essa cena.

Nas pontas dos pés ele foi até o quarto do casal. A porta estava entreaberta e ele empurrou devagar com um sorriso enorme, mas o que Toni viu a seguir o fez murchar. Lia estava sentada com Laura em seus braços e chorava. Chorava dolorosamente e ao ver Toni seu choro tornou-se compulsivo e ela gritou.

- Trás ela de volta Toni! Trás ela de volta, pelo amor de Deus!

Toni se aproximou das duas e ao tocar a face de Laura ele a puxou a mão de volta. Ela estava gelada, seus lábios arroxeados e seu pequeno corpo endurecido. Ele olhou para Lia e depois voltou-se para a filha.

- Trás ela de volta... – Lia sussurrou.

Toni soltou os girassóis no chão.

- O que aconteceu Lia? – ele tentava secar as lágrimas da mulher.




A mãe secou uma lágrima parada no cantinho do olho esquerdo e sorriu para a filha. Era um momento único desde que Laura nascera e Lia não queria perder um segundo daquilo. Deitou seus olhos sobre a menina e assim permaneceu. O som da chuva foi acalmando tudo, os olhos de Lia começaram a pesar, os de Laura se fecharam, embora teimassem em permanecer abertos olhando para a mãe. Uma última olhada para a janela e Lia viu alguém acenando um adeus. Ela acenou com a mão livre e tudo escureceu.

Lia adormeceu profundamente e seu corpo tombou levemente de lado ficando por cima de Laura que ainda mamava. Ela não percebeu quando a criança parou e Laura não emitiu qualquer som. Com o tempo seus olhinhos foram fechando e adormeceu junto com a mãe.




- Senhor Toni, - o socorrista chamou – podemos conversar?

Lia estava fortemente sedada na cama e seria levada para um hospital.

- Claro. – Toni passou as mãos nos cabelos.

Morte súbita, o socorrista falou e explicou para Toni que era algo, infelizmente, muito comum. Toni disse que Lia falara que tinha sido culpa dela, mas o homem que era mais experiente também explicou que muitas mães se culpam por isso. Goku também se sentia culpado, deixara Lia sozinha. Sozinha e cansada.

- O senhor não pode se culpar, - o socorrista tentava consolar Toni – não é algo que se pode controlar senhor.


Lia foi para o hospital e Laura para o necrotério. Apesar de estar claro para a polícia que não havia sido um homicídio, os procedimentos legais e burocráticos precisavam ser cumpridos. Protocolos. E Laura passaria por uma necrópsia.

O corpo foi liberado horas depois e cremado no dia seguinte. Lia não compareceu à cerimonia e não falou o nome de Laura nunca mais.”




- Ooooo Ooooo Ooooo Ooooo

Toni olhou para trás e lá estava ela, parada na porta, encostada no batente. Lia chorava silenciosamente e foi ela quem puxou o refrão.

- Me tire, só para me empurrar

Você está até o amanhecer

Tentando seguir em frente

Amantes deram errado

Deixa ir, dói, eu sei

É hora de correr

Moonrise Kingdom

Apenas enterre suas preocupações e cante!

Toni voltou a tocar e cantou junto com ela.

- Nós andamos em círculos

Lutando nossas batalhas intermináveis

Mas realmente, quem se importa?

Puxe-me para fora, apenas para me empurrar, novamente

A vida fica difícil

Apenas não mantenha o mundo em seus ombros

Ele se levantou e estendeu a mão para ela. Lia precisava entrar no quarto de Laura, precisava ultrapassar aquela barreira. Ela sabia disso, mas negou com a cabeça. Toni fingiu não ver e continuou com a mão estendida.

- Você tem que entrar, - ele falou baixo – tem que entrar para perceber a verdade.

Lia respirou fundo, seu coração doía e batia rápido. O ar faltou por longos segundos, mas logo voltou. O cheiro dela ainda estava lá. O cheiro de bebê, doce e suave. Puro. Tudo estava exatamente como da última vez. O mar se movimentava lento e os peixes se moviam suspensos como se planassem.

- Vem. – Toni a chamou e Lia levantou a mão esquerda devagar.

Deu um passo na direção de Toni, precisava tocar a mão dele, não podia cair. Dessa vez ela tinha que manter o equilíbrio, manter-se de pé por ela, por Toni e por Laura.

Mas tinha mais um motivo.


“Você tem acampado em toda a minha mente

Cavando para matéria roxa

Alimentando seu fogo”


A música recomeçara. Lia deu passos decididos e finalmente alcançou Toni que segurou firme em sua mão e a puxou para um abraço.

- Ah, Toni, me perdoe! – Lia soltou as palavras como se estivessem pesando toneladas.


“E eu estive pendurado na nuvem nove

Bebendo vinho fino

Não pode me levar mais alto”


- Lia, do que eu tenho que te perdoar? – Toni apertou mais.

- Por Laura... – ela foi interrompida por Toni.


“Me tire, só para me empurrar

Você está até o amanhecer

Tentando seguir em frente

Amantes deram errado

Deixa ir, dói, eu sei

É hora de correr

Moonrise Kingdom

Apenas enterre suas preocupações e cante!

Ooooo

Nós andamos em círculos

Lutando nossas batalhas intermináveis

Mas realmente, quem se importa?

Puxe-me para fora, apenas para me empurrar, novamente

A vida fica difícil

Apenas não mantenha o mundo em seus ombros”


- Não. – ele se afastou e segurou o rosto dela entre as mãos – Ela tinha uma obstrução nasal que nenhum médico percebeu. – Lia abriu os olhos – Não foi você Lia, não foi você!

Toni soltou seu choro e encostou a testa na de Lia e os dois choraram juntos. Ainda não tinham feito isso desde que Laura partira, há seis meses.

- Você nunca quis saber, carregou esse peso por todo esse tempo e eu não sabia como chegar até você, eu não conseguia te alcançar.

Lia abraçou Toni com força.

- Toni, - ela fez uma pausa – eu sonhei com Laura essa noite e ela sorria e estava linda. – o choro de Toni tornou-se mais forte e sonoro – Ela está bem, e nós estamos grávidos!

Lia soltou um riso e Toni olhou para ela.

- Sério? – ele tocou na barriga dela.

- Sim. – Lia sorriu mais largo.



E oito meses depois uma garotinha de olhos azuis e cabelos negros veio ao mundo. Maria, foi o nome dado a ela. O quarto foi o mesmo que pertenceu à Laura, um mar inteiro para mergulhar. Maria se tornou mergulhadora e certa vez encontrou uma espécie de peixe azul que nunca havia sido vista.

Dizem que foram as cinzas do corpinho de Laura que haviam sido jogadas no mar pelo pai. Tornaram-se peixes na imensidão dos oceanos. Tão profundo e distante que não se pode medir, assim como a saudade que ficara no coração de Lia e Toni.

E o mesmo amor que era de Laura foi dado à irmã Maria.


“Deixa ir, dói, eu sei

É hora de correr

Moonrise Kingdom

Apenas enterre suas preocupações e cante!”




Phum Viphurit - Run [Official Video] - https://www.youtube.com/watch?v=QMQNvkyHrhg


Dec. 25, 2019, 2:56 a.m. 0 Report Embed Follow story
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The End

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__Pi π “333 metade do diabo que eu sou” .Não é o crítico que importa.

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