Uma noite quente de verão cobria o vilarejo. Naquela madrugada estrelada, alguns sons dos insetos noturnos quebravam o silêncio sonolento. Os raios do luar desenhavam nos terrenos as formas escuras das casas simples. Os postes lançavam suas luzes amareladas nas pessoas e animais que ainda se arriscavam a caminhar: o trabalhador cansado, voltando da capital; o gato desajeitado, maquinando saborear os passarinhos incautos; o esmoleiro embriagado, cambaleando pelos cantos das ruas, ainda com a bebida na mão.
Havia outro na calada da noite, vivaz, hábil e sóbrio, vagando pelas ruas desertas, pelos becos lúgubres ou por entre os espaços das árvores da pracinha central. Ninguém nunca viu seu rosto, alguns o apelidaram de Sombra da Lua. A sombra se transmutava; às vezes, era a de uma pessoa qualquer; outras, de um animal doméstico; e poucas, de uma forma inumana. Ao amanhecer, já não era mais visto por ninguém. Não deixava rastro no chão, somente na memória daqueles que o viam.
São Miguel dos Montes serenava sob o manto da lua com sons discretos e formas estranhas...
Um cachorro de pelos negros chegou aos arredores da casa de Milla. Na frente, roseirais. Ao lado, o galinheiro. Ao centro, uma casa de dois andares de paredes de tijolos sem emboço. O peludo passou pela falha da cerca e sentou-se em frente à porta principal. Algumas galinhas se alvoroçaram, mas logo silenciaram. Por dentro, a casa jazia em silêncio. O chão era de cimento avermelhado e lustrado. Apenas uma luz de lampião, próxima ao banheiro, alumiava o interior do pavimento térreo. Ao fundo, uma escadaria serpenteava até o pavimento de cima, onde estavam os quartos.
Milla se debatia na cama, dormindo um sono perturbado. Seu suor refletia a luz da lua e a garota falava sozinha. Lutava para mover seu corpo. Enfim, acordou espavorida. Sentou-se na cama. Pensou em correr para o quarto dos pais, mas uma garota de quinze anos jamais faria isso, muito menos ela que carregava o título de corajosa. Não era mais criança. Suspirou e sem que pudesse escolher, o pesadelo voltou a repassar em sua mente, quadro a quadro.
Sombras a caçavam pelas ruas do vilarejo. Nem todas eram inimigas, nem todas assustavam. Milla fugia perplexa com as gargalhadas profanas. Ela via as sombras se projetarem nas paredes de sua casa. Uma sombra a conduziu para dentro de um templo. As outras a amaldiçoavam sem poder entrar. O chão sob seus pés se abriu. Ela caiu. Uma sombra amorfa a envolveu, depois... Depois Milla não se lembrava de mais nada. O pesadelo pareceu durar horas.
As lembranças do sonho acabaram. Milla voltou dos pensamentos ouvindo bater à porta do quarto. Levantou com o coração acelerado, ficando de prontidão.
— Quem é?
— Eu posso dormir aí? – A voz do irmão soou medrosa.
— Entra.
David vestia um pijama verde claro, apertava o travesseiro de encontro ao peito e um lençol branco cobria o menino de dez anos da cabeça aos pés.
— Sonho ruim?
— É. — o garoto respondeu, entrando.
Milla teve a impressão de que ele queria dizer algo, contar o sonho, talvez o que viu, porém suas bochechas avermelhadas emolduravam o silêncio de sua boca. David improvisou uma cama com cobertores mais grossos, forrando-os no chão. Milla sabia que não adiantava avisar sobre a dor na coluna que o irmão sentiria pela manhã, não adiantaria aconselhá-lo a pegar o colchão do seu quarto. Então, revestindo-se de coragem foi até o quarto dele.
— David, vem aqui, tem alguma coisa lá fora. – Milla encostou o rosto na janela de vidro, percebendo a agitação das galinhas e as roseiras chacoalhando-se.
O garoto fingiu que não ouviu ou já havia caído em sono profundo. Milla não queria acordar os pais que naquele dia pareciam mais cansados do que o normal. Fechou a porta do quarto do irmão e desceu a escadaria, indo para a sala. Sentiu uma estranha corrente de ar gelado e percebeu a porta semiaberta. Desconfiou, pois viu o pai trancando-a antes de ir dormir. Antes que decidisse espiar o quintal, escutou um barulho vindo da cozinha. Fechou a porta da sala e foi para o cômodo. Ao parar no vão, ela viu um cachorro em cima de uma cômoda, balançando o rabo amistosamente. Não sentiu medo. Ele desceu e andou em volta da garota, parou diante dela e levantou uma das patas.
— Oi. Você é muito lindo. — Ela agachou-se, com uma das mãos cumprimentou a pata do animal, com a outra acariciou a cabeça do cachorro que ganiu e latiu.
— Quieto! Assim você vai acordar meus pais e o David.
O animal pareceu entender, mas ficou agitado andando pelo pavimento cheirando os cantos das paredes. Então, saiu em disparada subindo as escadas. Milla foi atrás dele, o cachorro ficou arranhando a porta do quarto de David. Ela virou a maçaneta e levou o indicador à boca, deixou-o passar. Cautelosamente, entrou também, percebendo o quarto mais escuro e a chama da vela cada vez menor.
— Cãozinho? Onde você está?
O quarto de David não era tão grande, mas espaçoso o suficiente para ter esconderijos improvisados feitos de lençóis e cobertores.
Algo dentro do quarto emitiu um som incomum, derrubando a coleção de bonecos de madeira de David que se encontravam sobre uma prateleira. Milla viu algo semelhante a um pássaro negro voando pelo quarto para fugir do cachorro. Pousou em cima do guarda-roupa e começou a grasnar. Os olhos da criatura alada mudaram de cinza para vermelho sangue numa densidade gelatinosa. As asas agitavam-se, enquanto o cão saltava tentando capturá-la. Num instante, a ave deforme deu um voo rasante na direção de Milla. A garota se jogou no chão. David apareceu e começou a gritar histericamente. Novamente a ave se arremeteu contra Milla, só que dessa vez o cão a interceptou. O cachorro sacudia a cabeça com a criatura alada presa entre os dentes.
— Que arruaça é essa? – Maurício entrou no quarto com uma espingarda na mão, fazendo mira na direção do cachorro e da presa.
— Milla, de onde saíram esses bichos? — Aline indagou, carregando um lampião e se colocando ao lado do marido.
— O cãozinho estava na cozinha. Esse bicho de asas estava no quarto de David.
— Ele estava me perseguindo no meu sonho. — David falou, agarrando-se à mãe.
O cachorro sentou-se. A criatura alada parecia morta. Não havia sangue em lugar nenhum. Perplexos observaram a ave se desfazendo como uma fumaça fétida. Não havia palavras para aquele evento, o silêncio confirmava a incompreensão do momento. O cachorro olhou para Milla e latiu, em seguida ficou próximo à janela fechada. Começou a se desmanchar, o vulto amorfo esfumaçado passou através do vidro seguindo os raios do luar.
— Cãozinho...
Pela manhã, a família sentou-se à mesa para tomar o café, mas ninguém tocou sobre o acontecido na madrugada. Não era a primeira vez que coisas estranhas aconteciam em São Miguel dos Montes.
Mais cedo ou mais tarde, quando ouvissem histórias sobre a Sombra da Lua, eles partilhariam aquela experiência com amigos e parentes.
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