Notas Iniciais:
- História escrita para o desafio Hallowink usando essa imagem por Sarah:
- Atenção aos avisos!
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A primeira coisa que passou pela cabeça de Dani quando ele pousou a mão no próprio ventre e sentiu o sangue negro e pegajoso das tripas poluindo os dedos não foi sobre como sua vida tinha sido mal aproveitada até aquele instante.
Flashes da própria história não passaram diante de seus olhos como um carrossel de fotografias amareladas - muito menos uma sensação de culpa ou arrependimento se apoderou dele.
Na verdade, o pensamento que lhe ocorreu enquanto observava as manchas grudentas debaixo das unhas curtas, o sangue sendo indissociável da terra pela qual se arrastara, foi puta merda, será que Gabriel também está sentindo esse cheiro horrível?
A mente se voltar tão rápido para o irmão não lhe pareceu uma fuga em princípio, mas sim um reflexo.
Pessoas externas à situação poderiam acreditar que era a famosa desculpa do “sentido gêmeo”.
Em sua mente não era uma desculpa, e sim um fato. Afirmar que estavam juntos desde a concepção no útero era óbvio e clichê, então ele preferia pensar em outros exemplos, tão verdadeiros e fortes quanto este pelo simples fato de existirem: estavam juntos quando souberam que o pai nunca mais voltaria para casa, juntos nos trocadores de roupa quando a mãe precisava comprar vestidos novos, juntos quando tomaram a primeira surra no ensino fundamental, juntos quando rasparam a cabeça um do outro num pacto silencioso de fraternidade incondicional.
Às vezes, Dani sentia que não era uma pessoa só, mas sim uma metade - isso lhe trazia um alívio estranho, como se assim pudesse dividir o sofrimento também, já que tinha Gabriel para aliviar aquela carga.
Agora, no entanto, sua morte parecia terrivelmente completa.
Era algo que ele não queria compartilhar com o irmão, pois, se ambos morressem seria um fim por inteiro.
Se ao menos Gabriel vivesse, Dani saberia que uma parte de si prosseguiria.A dormência no estômago logo trouxe um frio terrível até sua coluna, fazendo-o
tremer a ponto de quase convulsionar. Esticou a mão, tentando se arrastar pela estradinha, porém apenas agarrou um punhado de folhas secas, que escorregaram pelos dedos pegajosos.
Quis gritar por socorro, e foi aí que notou que o agressor tinha lhe rasgado a garganta, algo que lhe passara despercebido em meio à confusão de dor que se distribuía por seu corpo. A língua, dormente entre os dentes, carregava um gosto metálico detestável. Virou o rosto e tentou cuspir, mas não havia saliva, só sangue, que escorreu pela lateral do seu rosto até atingir a orelha.
Gabriel, ele pensou de novo. Cadê você, porra?
A mente tentava reconstruir os eventos que tinham trazido-os até aquele fim de mundo, porém tudo parecia embaralhado, como se alguém tivesse lançado centenas de cartas no ar e ele precisasse, em meio a isso, procurar por um único Ás com seu nome assinado.
Um truque de mágica ruim - não havia nada que Dani detestasse mais do que truques de mágica.
Talvez, detestasse a própria mágica em si, apesar de não ter muita certeza.
“Você detesta a mágica porque quer entender o que não deveria ser entendido”, observara Gabriel um dia, ele próprio embaralhando as cartas, cortando-as sucessivamente com os dedos compridos, invejados por Dani. “Vamos lá”, insistiria o irmão, dando um tapinha amigável no seu ombro “pega uma carta, colabora comigo.”
"A mágica que você faz pode ser explicada, na verdade", retrucava Dani,
apanhando uma carta a contragosto. Sempre rejeitava ser público das mágicas de Gabriel - e o outro sempre conseguia convencê-lo no último instante a ir adiante. "Você desvia a minha atenção para um ponto qualquer e então a executa. Não tem mistério quando se sabe pra onde olhar."
Um vulto passou por trás das árvores, capturando sua atenção, fazendo-o largar a lembrança como uma criança pequena obrigada a deixar de lado um presente particularmente encantador.
Os galhos e folhas da vegetação se sacudiam com leveza ao seu redor. O lago,
intocado, parecia um espelho negro. Dani sabia que se conseguisse se arrastar até ele e mergulhar, poderia tentar se livrar do agressor, permanecer vivo.
Ou (quem ele queria enganar, afinal?) pelo menos poderia tentar morrer uma morte mais tranquila.Com a perda de sangue, sua pressão estava caindo vertiginosamente, então em breve não tardaria a desmaiar - morrer afogado seria fácil e indolor.
Certo, não necessariamente indolor, mas quanta dor poderia se sentir ao morrer sem ar comparando com uma morte por ataque de lobisomem?
Ouviu de novo sons vindos do meio das árvores e tentou girar o rosto, mas o pescoço, aberto e dolorido, o travou na mesma posição, incapaz de se movimentar. Respirar também se tornava um desafio a cada lufada de ar que expirava e inspirava, por sinal; ele sabia que, se não morresse dilacerado pelo atacante ou pela perda de sangue, a próxima opção seria "afogado no próprio sangue", o que lhe soava estúpido, pra não dizer medíocre.
Com isso em mente, reuniu todas as forças em si para escorregar a mão para o bolso da calça, apanhando o canivete que estivera guardado ali por tempo demais, esquecido durante o confronto que aparentemente lhe custava a vida. O dedão trêmulo apertou um botão no cabo negro e gasto do canivete, liberando uma lâmina longa, fina e igualmente negra.
Com a outra mão tremulamente apertando o rasgo em sua garganta, as tripas ainda vazadas do corpo, o canivete tremendo no pulso coberto de cicatrizes, o garoto morto ficou à espera, até que o verde, o lago e a terra se aquietassem, parecendo compreender, enfim, que eram um simulacro de túmulo.
Paciente, ele aguardou, como uma cobra pisada que sabe que vai ter um único segundo para o bote, a revanche, antes de ser consumida por completo pela morte.
A vingança dele não viria, no entanto.
Nem naquele dia e nem nunca mais.
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Oct. 23, 2018, 3:58 a.m. 7 Report Embed 9We process all of our transactions with PayPal. Please don't close this window, and wait until you are redirected...
O nível de detalhes é impressionante, se um dia eu chegar perto do seu nível, serei um grande escritor! Parabéns!