Do Kyungsoo foi o Homem que provou a inexistência de Deus.
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Kyungsoo cresceu em uma família fanática. Iam à igreja todos os finais de semana e sua televisão se consistia em canais religiosos, que faziam desde as famigeradas orações até exorcizavam fieis com o Diabo no corpo. Seus pais sempre citavam para si: Mas os covardes, os incrédulos, os depravados, os assassinos, os que cometem imoralidade sexual, os que praticam feitiçaria, os idólatras e todos os mentirosos — o lugar deles será no lago de fogo que arde com enxofre. Esta é a segunda morte. Mas o pequeno sempre achou uma grande bobagem.
Kyungsoo, então, cresceu convicto de provar que Ele não existia.
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Kyungsoo se “descobriu” ateu e gay — nessa mesma ordem — muito cedo.
Beirava os 11 anos quando ele virou para os seus pais e disse que não, ele não acreditava em Deus e que, inclusive, fingia rezar todas as noites sem pensar que iria para o Inferno como a Bíblia Sagrada dizia. Se Deus era piedoso e amava a todos, por que Ele mandaria escolhidos para o Céu e o resto para o Inferno?
Naquele dia, Kyungsoo foi obrigado a rezar ajoelhado no milho até seus pais acharem que estava rezando com amor e arrependimento. O garoto não chorou em nenhum momento.
Quando sentiu atração pelo primeiro garoto, sendo que não havia sentido atração por nenhuma garota antes, ele estava para fazer 13 anos. A sua primeira paixão se chamou Byun Baekhyun, um menino alegre e simpático. Sem peso na consciência, bobões do jeito que eram, trocaram alguns beijinhos atrás da escola no fim de ano e nunca mais se viram. Kyungsoo o guardou no coração por muito tempo.
Levou alguns anos para falar sobre sua sexualidade. Com seus 18 anos nas costas, o colégio terminado, trabalho fixo e projetos sobre a inexistência de Deus na mochila ele não hesitou em gritar para o mundo que era gay. Seus pais o expulsaram de casa com uma última sentença: Você não é mais o nosso filho, nunca mais volte para cá. Kyungsoo quis chorar, mas não o fez.
Aqueles que deveriam chorar eram os seus progenitores. Porém, a única coisa que chorou naquele dia foi o Céu, uma tempestade que durou dias incontáveis. O garoto, abrigado agora em um apartamento barato e apertado, riu com a possibilidade de aquilo ser as lágrimas de Deus por ter feito seres humanos tão desprezíveis — seja seus pais ou ele mesmo.
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Kyungsoo, no auge de seus 25 anos, construiu o seu próprio laboratório com o dinheiro suado de anos trabalhando em diversas áreas, aprendendo desde a cultivar e trocar pneus até trabalhar com fórmulas químicas e palestrar sobre física quântica. Sem ao menos ter feito uma faculdade, conseguiu trabalhos incríveis e começou a ser conhecido em algumas empresas como um prodígio, o cara que tão novo já tinha seu próprio centro de pesquisas — mas sobre o quê? Ninguém, além de seus próprios funcionários de confiança, soube. Não muito cedo.
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Kyungsoo tinha uma amizade muito forte com Minseok. O mais velho era um de seus funcionários no qual mais confiava e, além disso, era um policial afastado e muito “amigo” do Governo. Ele era um dos únicos que não estavam ali somente por dinheiro: a inexistência de Deus era uma de suas principais virtudes e sua tese a se provar. Quando conheceu aquele pequeno prodígio e o acompanhou montar um laboratório repleto de historiadores, químicos, físicos, matemáticos, geógrafos e filósofos que todo mundo recusou em suas empresas, mas que demonstraram muito inteligentes e ambiciosos, finalmente se identificou com alguma parte da sociedade e integrou finalmente a trupe.
Minseok não fazia parte dos pesquisadores e muito menos era o ajudante privilegiado de Kyungsoo — como muitos fofoqueiros teimavam em dizer. Sua função era proteger o laboratório de investigações do Governo, da vigilância sanitária e qualquer órgão que pudesse atrapalhar a pesquisa. O gabinete, na parte mais interna de seu armazém, guardava algumas armas para que pudessem se defender caso algo acontecesse.
Minseok nunca disse a Kyungsoo — talvez sequer fosse preciso —, mas a única certeza de tudo era que, se a existência de Deus fosse negada, cabeças iriam rolar, e ele esperava muito que não fossem as suas.
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Kyungsoo, com uma grana guardada há anos com um único propósito, comprou um jornal televisivo por um dia e então lançou a sua tese — e, finalmente, a sua confirmação após anos de estudo.
Deus nunca existiu.
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— Sabe, Minseok... eu nunca acreditei em Deus.
Era noite de um domingo caloroso, em que Minseok e Kyungsoo não queriam fazer nada além de tomar sorvete de flocos e admirar o céu entre as frestas da janela do laboratório, depois de um dia extremamente cansativo e repleto de pesquisas e mais pesquisas.
— Eu parei de acreditar perto dos meus dezoito anos. Meus pais eram muito religiosos, sabe? Eu também me tornei, Soo. Um religioso hipócrita e preconceituoso.
Minseok crispou os lábios e Kyungsoo riu. Eles não costumavam conversar muito, mas ele sempre percebeu que o mais velho era uma pessoa amargurada e com muitas mágoas sobre seus pais, sobre a vida — afinal, sofreu muito (talvez tanto quanto o próprio cientista).
— Quando eu me apaixonei por um cara, eu me chicoteei como punição e rezei no milho até dormir. São práticas antigas, mas parece que nossos pais nos ensinaram a partir de conceitos errôneos que somos pecadores e que isso não é perdoável a não ser que clamemos a Deus, não é?
Kyungsoo apenas assentiu. Quando o pote de sorvete estava para esvaziar, ele encheu uma colherada e levou até a boca de Minseok, que estava tenso e com os olhos distantes, mas aceitou o sorvete de bom grado e sorriu pequeno para o mais novo. Do não costumava se importar muito com as últimas colheradas de sorvete quando estava o comendo com o policial.
— Faz anos que eu não falo com o meu pai e meu irmão. Minha mãe morreu um ano depois que eu saí de casa. Disseram que foi câncer, mas, Kyungsoo, acho que foi de desgosto.
— Eu também estou há anos sem falar com os meus pais, Seokie. Não posso dizer que não sinto saudades de vez em quando, mas não dói mais como antes. Na verdade, acho que nem dói mais. Me sinto vazio.
Não disseram mais nada, suas mágoas eram tão grandes que não haviam palavras que as descrevessem. Em silêncio, se abraçaram e ficaram assim por uma noite inteira, compartilhando seus sentimentos por meio de olhares e lágrimas.
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— Você nunca me falou sobre a sua teoria ateísta, Soo. O começo de tudo...
Minseok e Kyungsoo estavam sentados sobre o dormitório do laboratório — havia dias em que eles (e somente eles) precisavam passar a noite lá, por questões de pesquisa e segurança —, dividindo uma mesma cama. Eles não se rotulavam como namorados, mas havia muito mais que apenas uma amizade naquele abraço caloroso e os beijinhos trocados.
— Você quer que eu conte agora, Seokie?
— Quero. Eu gosto de te ouvir falar, sabe?
Eles riram em uníssono e se aninharam na cama, de conchinha, Minseok no abraço quente de Kyungsoo; o mais velho riu com as cócegas que a respiração alheia fazia em seu pescoço. Apesar de tudo, aquelas madrugadas eram a calmaria que eles precisavam para continuar.
— Um dia, Minseok, minha professora de Filosofia explicou o que eram os Mitos. Falou sobre Zeus, Afrodite, Poseidon... os deuses mais comuns da mitologia grega. E logo depois ela perguntou: se desmitificaram a existência desses deuses, por que, um dia, não desmitificarão a existência de Deus? E todo mundo começou a dizer que Deus estava acima de todos os outros deuses, que Deus não era uma mitologia, mas isso ficou na minha cabeça.
Minseok se remexeu no abraço de Kyungsoo e se encolheu, entrelaçando os dedos do outro com os seus. Não tinha muito o que falar, na verdade. Às vezes, ele achava que o cientista estava acima de qualquer outra pessoa que há havia conhecido e não se dava a ousadia de interromper seu raciocínio.
— Mitos foram feitos para explicar coisas que as pessoas não conseguem explicar ainda, Minseok, suprimir o medo subconsciente do desconhecido. Na sociedade antiga, por exemplo, eles explicaram os fenômenos naturais. Eu entendo essa prece de que Deus está acima dos fenômenos da natureza: dizem que foi Ele quem criou o Universo, não é?
Com a pausa na fala, Minseok assentiu mesmo sem necessidade e soltou um suspiro longo e calmo. Apesar de ser um assunto sério, ainda mais por viverem naquele tipo de sociedade, a respiração gostosa de Kyungsoo batendo em seu pescoço e a voz baixa em seu ouvido não o deixavam sair de si, ficar triste, com medo. Era Do o seu cais.
— Mas, veja bem, a Ciência um dia conseguiu explicar os fenômenos naturais. Então, por que ela não conseguiria explicar os Milagres que os religiosos tanto propagam? Se ela desvendou os mistérios da sociedade antiga, por que não desvendará os mistérios da sociedade atual? Dizem que estamos muito longes de descobrir a origem de tudo, mas provavelmente diziam isso antigamente: nunca saberemos por qual motivo chove, por que troveja. Tudo que é desconhecido nos soa impossível, mas nada é impossível para a Ciência.
Minseok já respirava baixinho, com sono. Lutava contra o sono para ouvir tudo que Kyungsoo tinha a dizer — era raro ele se abrir sobre qualquer assunto, no final das contas.
— E Bíblia foi escrita por Homens, Minseok. As igrejas foram construídas por Homens. E desde os primórdios há um grande jogo de interesses e manipulações por trás desses dois artefatos. As pessoas conseguem dinheiro em Seu nome, você sabe. A população é fraca, o espírito é fraco, e ele precisa de um lugar para pousar em segurança. Algumas tentam provar Deus por meio da fé, dizem que o sente como os ateus sentem o vento, mas, além do vento ter sua existência comprovada facilmente, é fácil algo começar a existir quando começamos a acreditar fielmente naquilo. Se eu acreditar que essa cama aqui vai mexer, fixar meus pensamentos somente nisso, uma hora ela vai mexer. Mas advinha só? Somente nos meus pensamentos. As pessoas são manipuláveis, Minseok.
Kyungsoo deu um beijinho na nuca de Minseok e o sentiu suspirar pesado, metade de si dormindo e outra metade atenta ao que era dito. O mais novo o abraçou mais apertado e riu leve.
— A fé move montanhas, Seokie, mas muitas vezes só nas nossas cabeças. A Ciência faz com que tudo seja questionável, provado. Nada é impossível, nem provar a inexistência de Deus. Então, para mim, um dia isso será descoberto. E advinha só? Quem descobrirá isso serei eu. Você sabe, então não preciso ressaltar que estamos muito perto, não é? Porém, no momento que eu conseguir, aqueles que lucram em Seu nome virão atrás da minha cabeça. E eu sinceramente não sei o que farei.
A vontade de Kyungsoo era dizer que ficaria sentado esperando a morte, porque não havia mais o que fazer, mas Minseok lhe dava esperança de sobreviver ao caos que o mundo se tornaria.
— Eu vou te proteger, Soo.
Naquela noite, Kyungsoo e Minseok dormiram agarradinhos, achando ali a paz que eles mais precisavam.
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O mundo estava em desordem. Jornais do mundo inteiro, apesar da pressão dos governos censuradores, noticiavam a tese do cientista Do Kungsoo. A inexistência de Deus havia sido finalmente comprovada, amém. Agora ele estava tendo de lidar as consequências.
As janelas da sala principal do laboratório estavam fechadas, assim como a porta estava trancada com chave e inúmeros trincos. Kyungsoo se escondia na penumbra da noite, ouvindo estrondos da polícia invadindo a empresa em sua procura. Era como se aquilo que demorou anos para construir e aprimorar fosse vir abaixo com apenas alguns explosivos e o ódio daqueles que não sabem lidar com a verdade e o agora prejuízo de anos lucrando em cima do nome Dele.
Ao mesmo tempo em que ele ouviu sua porta ser esmurrada com força e escutou berros de “Renda-se, Kyungsoo”, uma portinha de madeira abriu-se rápido no canto da sala. Mesmo em meio ao caos, ele se permitiu sorrir. Minseok havia vindo lhe buscar.
— Será que a donzela poderia, por obséquio, se dirigir até a tubulação de esgoto da cidade comigo e me deixar salvar a sua vida?
Kyungsoo riu e decidiu, então, não esperar a morte de braços abertos. Segurou a mão de Minseok e percorreu toda a cidade por dias, comendo restos e sobrevivendo ao frio de alguns dias no abraço do policial afastado e cobertas rasgadas. Nunca achou que viveria nessas condições novamente, mas não reclamaria.
Havia atingido o seu objetivo — e estava com Kim Minseok, além de tudo.
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Do Kyungsoo agora se chamava Kim Jaesoo, usava barba e tinha os cabelos parcialmente grisalhos por tintura. Se antes era um cara franzino e com muita cara de menininho, agora estava repleto de músculos e feições fortes. Havia se formado em eletrônica e trabalhava em casa, autônomo. Ninguém o reconhecia.
Kim Minseok não tinha a necessidade de mudar tanto, mas quis recomeçar ao lado do cientista. Cortou o cabelo, acompanhou-o na academia e arranjou um trampo como garçom. Começou a se chamar Kim Minsung.
Para a mídia, Do Kyungsoo havia sido assassinado — encontraram um corpo que disseram ser seu. Puft, faça-o rir.
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Kyungsoo — ou Jaesoo, como o chamavam agora — estava completando os seus 95 anos. Seus cabelos estavam grisalhos de verdade e era composto interminavelmente por rugas, manchinhas na pele, barba mediana e uma expressão cansada de quem batalhou muitos anos por uma sociedade melhor. Estava de pé frente ao túmulo de Minseok.
— Meu amado, não é nenhuma data especial, mas sinto que estou para finalmente te encontrar depois de quatro anos. Quis trazer essas flores para me despedir dessa realidade, daquilo que restou do seu corpo. São tulipas, você sempre as achou muito bonitas. Espero que goste.
Kyungsoo, semicerrando os olhos por conta da dor na coluna, pousou o buquê de tulipas sobre o túmulo e deu seu último sorriso ao concreto. Achava seu sorriso muito feio todo banguelo, mas tinha certeza que Minseok sorriria consigo, então se sentia feliz.
— Estou ansioso para poder abraçar a sua alma, Seokie.
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Do Kyungsoo morreu de velhice, diante sua televisão chiada, onde já não passava mais programas religiosos. Morreu realizado, lembrando-se de quantas pessoas se revoltaram contra as falsas igrejas, de quantos falsos religiosos foram descobertos e a da revolução que causou. Lembrou-se de Minseok e das vezes que o amou como se o mundo não fosse caos.
No final das contas, sua vida havia valido a pena.
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— Eu fico rindo da possibilidade de irmos para o Inferno quando morrermos, sabia?
— Uma pena ele não existir, tsc.
— Às vezes, você é pecador demais, Kyungsoo.
— Eu gosto de pecar. Se eu não pecasse, não estaria aqui com você agora.
— Eu te amo, sabia?
— Eu também amo você, Soo.
Silêncio.
— Não iremos nem para o Inferno nem para o Céu, disso eu tenho certeza. Outra certeza que eu tenho, também, é que nos encontraremos de alguma forma, não importa onde seja.
— Somos perfeitos um para o outro e por isso não podemos nos separar nunca?
— Exatamente. E acho que essa é a minha tese mais bonita e boba que já tive.
— E é a minha preferida, Kyungsoo.
E beijaram-se pelo resto de suas vidas.
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