No dia que decidi morrer, fui ver Odasaku.
Me aproximei só quando a fila terminou. Não queria ter de esperar no final, então o observei meio longe de onde ele estava sentado, mas não muito, porque queria vê-lo em todos os gestos e cuidados que, de tanto não ver, eu até poderia ter esquecido. Não me esqueci.
Tratei de sorrir, e com o livro dele embaixo do braço, andei até a mesa onde ele passou boa parte da tarde escrevendo dedicatórias para seus leitores, rodeado por estantes de livros e palavras amigáveis. Talvez fosse a luz alaranjada da luminária sobre a mesa que clareava um pouco a expressão dele, apesar do ar de cansado e da barba malfeita de sempre. Ele parecia satisfeito, e achei que satisfeito ele ficava mais bonito.
― Você quer que eu assine? ― Ele perguntou e fiz que sim com a cabeça. O alcancei o livro que ele escreveu e foi isso, sem grandes saudações nem abraços apertados. Sem o famoso “a quanto tempo!”, seguido de um convite até o Lupin para comemorarmos juntos o lançamento do livro dele até que ele se cansasse da minha companhia e me deixasse sozinho, como já estou acostumado a ser deixado. Só que ele nunca se cansava de mim, e eu também nunca cansava dele. De qualquer forma, para estranhos como nós, recepções calorosas demais seriam inadequadas.
É, nós não nos conhecemos. Desse Odasaku feliz, que faz o que ama e não teve mais de sujar as mãos se sangue, quase não sei nada.
É o que chamam de uma outra linha do tempo – um universo alternativo cujo funcionamento não vale a pena ser explicado. O único que se lembra dos outros passados sou eu. Me lembro bem do gosto que o whiskey tinha ao lado de Odasaku e de como as palavras sempre soavam mais bonitas quando saíam da boca dele, não sei por que. No Lupin costumava ter um cheiro forte de cigarro e me lembro que Ango entortava o nariz quando fumávamos, mas nunca reclamava; só evitava a fumaça que, incapaz de poder alcançar os céus, sumia em poucos centímetros, desdobrando-se até a luz. Acho que os três concordávamos que era uma cena meio triste, no entanto não fazíamos comentários.
Este Odasaku não lembra dessas coisas, porque não as viveu – porque nunca conheceu um Dazai Osamu antes. Não foi este que perdeu a vida nos meus braços e me disse para salvar pessoas, porque, de certo, salvar pessoas é mais bonito. “É mais bonito mesmo, Odasaku.” queria poder lhe dizer. Queria dizer também que nunca consegui ser bom, mas que tentar ser bom é melhor do que não ser nada e ele tinha razão. Ele tinha razão, mas sempre me faltou algo. Talvez fosse a própria capacidade de sentir felicidade que me faltava.
Então este Odasaku, o vivo, que é um escritor e sorri como nunca vi outro Odasaku sorrir (porque de todos os Odasakus que já conheci, este é o único que escreve), abriu o livro e perguntou meu nome. Dazai Osamu, lhe disse enquanto o observava escrever o que provavelmente seria uma dedicatória não muito afável, daquelas que se escreve por obrigação a quem não se sabe nada e, de certo, nunca se saberá, então basta ser educado.
A fricção da caneta contra o papel fazia um som alto, como se o rasgasse. Talvez fosse porque ele escrevesse rápido, mas, mesmo rápidos, os movimentos dele tinham certa elegância.
― Odasaku, você acha que ela ficou ou foi embora? ― O perguntei quando ele pôs o ponto final. Me referia à protagonista do livro que, em síntese, era sobre uma história de amor que acabava. Na cena final, a personagem a qual mencionei está na estação de trem, indecisa se volta para a terra natal e deixa o marido para trás, ou se fica, bancando as bebedeiras e jogatinas dele. Aí a história termina e não se sabe a decisão dela – ela só fica olhando o trem parando devagar, e quando ele para, a narrativa para também.
Ele fechou o livro e me encarou por um momento sem dizer nada. Talvez estivesse pensando na resposta ou no apelido pelo qual nunca havia sido chamado antes. Eu não conseguia chamá-lo de outro jeito.
― Quem sabe... acho que o ápice é o momento da escolha, e não a escolha em si.
― É. A escolha é sempre o pior. ― Concordei com ele. Me identifico com o desejo de pegar um trem e não deixar nada para trás, mas no fim, não importa o quanto odiemos a vida, decidir desaparecer nunca é fácil.
Aí ele me alcançou o livro, e quando eu o segurei ele não largou.
― Nós já nos conhecemos antes?
Já. Era a resposta óbvia; no entanto as palavras não saíram. Não sei por quanto tempo ficamos assim, em silêncio, ambos segurando o livro no que eu sabia que seria o contato mais próximo que teríamos. Eu estava pronto para morrer e era um desconhecido para Odasaku, mas ainda não queria que, depois, ele lembrasse de mim apenas como um esquisitão que ficou o encarando, então sorri.
― Se tivéssemos nos conhecido, você certamente não se esqueceria de mim. ― Ele piscou rápido, como se estivesse surpreso; de certo estava mesmo. Peguei o livro e acenei. Poderia até soar como um “um dia nos vemos por aí!”, mas eu não planejava vê-lo de novo – uma despedida digna de um mentiroso como eu.
― Adeus, Odasaku. ― Falei não para ele, mas para mim: meu ultimato. Não acho que ele tenha ouvido, porque eu já estava perto da saída da livraria quando disse. Não virei para ver a cara que ele fez nem ouvi se ele disse alguma coisa, porque a essa altura, palavras macias não me fariam bem algum.
Então saí: as pessoas estavam banhadas de vermelho – o pôr-do-sol parecia assustador e eu o achei lindo; um dia apropriado para se cometer suicídio. A brisa portuária corria por mim, os pedestres corriam junto e também tive vontade de correr. Vinha vindo um caminhão e pensei que seria bom se ele me atingisse e me arrastasse para longe, até um lugar menos frio, porque eu já estava enjoado do frio e de viver perto do mar.
Aí o caminhão passou por mim e a vontade de ser atropelado passou também. Pensaria em alguma forma mais limpa para morrer. Até lá, me contentei em abrir o livro e ler a palavra “amigo”, escrita na letra de Odasaku. Aquele “amigo” não significava muito mais do que “desconhecido extravagante que pediu meu autógrafo”, mas foi o suficiente para que eu tivesse vontade de chorar.
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