lemonworld Julie Ruin

A história narra a vida de um garoto vindo de uma família pobre e despedaçada, desde sua infância e juventude até sua busca recente por seu problemático irmão mais novo, após anos de separação.


Short Story Not for children under 13.

#drama #depressão #doença #esquizofrenia #pobreza #tragédia #romance
Short tale
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Início, meio e fim

09 de Agosto.

Nós nascemos e crescemos em um lugar esquecido por Deus no interior árido deste país. Uma cidade de três mil habitantes onde não havia água encanada ou saneamento básico. Enquanto todos moravam muito próximos uns dos outros, amontoados ao redor da Praça da Igreja, nós morávamos à meia hora de distância a pé da cidade, em uma casa de taipa às margens da estrada de chão batido.

Havia um poço artesiano nos fundos da nossa propriedade estéril. Viajantes em carroças batiam à nossa porta com frequência, implorando por um copo de água. Mas muitas vezes o poço estava seco, e tínhamos muito pouco ou quase nada para oferecer. Já perdi a conta de quantos burros de carga foram enterrados naquele quintal, os ossos visíveis sob a pele ferida, denunciando a fome e a miséria.

Nossa mãe era uma beata, nosso pai um alcoólatra. Nós não víamos muito nosso pai, porque ele trabalhava fora. Saía de casa ao meio dia e só retornava tarde da noite, quando eu e Francisco já estávamos na cama, fingindo que dormíamos. Ele chegava batendo todas as portas e derrubando panelas, depois levava minha mãe para o quarto. Nós ouvíamos o choro fraco dela e a cabeceira da cama batendo contra a parede, até que finalmente tudo se aquietava.

Nossa mãe sempre usava vestidos escuros, longos e de manga comprida, mesmo quando o calor era intenso demais para suportar. Nós não sabíamos que todo aquele excesso de tecido servia para ocultar os hematomas. Ela tinha os olhos fundos e nunca sorria. Vivia com um rosário enrolado nas mãos e perambulava pela casa rezando intermináveis Aves-Marias, em uma espécie de luto. Eu, que à época era uma criança e possuía a inocência de uma, achava aquilo normal e cotidiano. Mas agora, quando paro para pensar, chego à conclusão de que Francisco, mesmo sendo mais novo, já entendia o que realmente se passava.

Minha memória mais intensa de meu pai é de seu hálito de álcool, sempre presente quando passava por nós. Certo dia, quando eu tinha treze anos e Francisco dez, ele saiu para trabalhar e nunca mais retornou. Naquela noite, pelos buracos causados pelas traças na cortina da sala, vimos os faróis de uma viatura que se aproximava de nossa casa, e recebemos a notícia de que ele havia morrido afogado no próprio vômito na calçada de um bar. Na autópsia, descobriram que ele tinha cirrose crônica e hepatite. Eu nem sabia o que eram aquelas doenças, mas passei a ter medo delas.

Foi o fim daquele casamento arranjado, e, de certa forma, da minha inocência. No velório, entreouvindo os cochichos das pessoas, eu finalmente entendi quem meu pai realmente era. Eu percebi que ele era o motivo de minha mãe estar sempre triste e nunca sorrir, e uma centelha de esperança se acendeu em meu peito, pois, sem ele por perto, talvez ela se alegrasse. Minha esperança não durou muito tempo, porém. Ele podia ser um bêbado, mas colocava comida em nossa casa, e os dias que se seguiram foram dias de fome. Sentados à mesa vazia, nossos rostos iluminados apenas pelo brilho de uma vela, sentíamos o estômago roncar, mas não havia nada além de farinha.

Nossa mãe apenas rezava, nos fazendo repetir ladainhas inteiras. Ela tinha fé que Deus proveria, mas ele nunca proveu. Eu deixei de frequentar a escola, me perguntando que tipo de deus era aquele que deixava seus devotos passarem fome. Comecei a trabalhar como entregador para o dono da mercearia da cidade – que só me meu o emprego por piedade. Francisco ainda era muito novo para trabalhar, e continuou estudando. Ele era muito franzino para qualquer tipo de trabalho, de qualquer forma. Nós saíamos de casa logo cedo, eu o levava até a escola na garupa da bicicleta que o dono da mercearia havia me emprestado, e depois ia trabalhar. Recebia o pagamento em moedas todos os dias, e as gastava ali mesmo, comprando comida para a janta.

Com o passar dos anos, nossa mãe se tornou cada vez mais reclusa, a ponto de não sair mais de casa – nem para ir à Igreja. Passamos a chegar em casa apenas para encontrá-la sentada à mesa da cozinha, conversando com alguém que não existia. Ela nos dizia, com o rosto molhado de lágrimas, que estava recebendo a visita do Arcanjo Gabriel, e ele lhe contava histórias do Paraíso. Perceber que nossa mãe estava ficando louca me fazia chorar até dormir todas as noites, mas no dia seguinte eu sempre me levantava e ia trabalhar como se nada estivesse acontecendo. Eu era apenas um menino, forçado a virar um homem da noite para o dia, e precisava sustentar aquela família despedaçada.

Com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, acho que deixei de prestar atenção ao que se passava com meu pequeno e querido irmão mais novo. Francisco foi expulso da escola após enfiar a ponta de um compasso na cabeça de um colega de classe. Meu irmão jurava, de pés juntos, que o garoto havia passado a manhã inteira zombando dele, mas o garoto, a professora e todas as outras crianças da sala negaram que isso tivesse acontecido. Eu deveria ter percebido que havia algo de errado, como nuvens de chuva formando-se em sua cabeça. Mas não percebi. E eu, que já tinha sido promovido à repositor de estoque da mercearia, implorei ao meu chefe, e ele – mais uma vez por piedade -, deu um trabalho também a meu irmão, que se tornou o novo entregador. Mas Francisco era faltoso e sumia com muita mercadoria – principalmente cigarros. A reposição do prejuízo era descontada do meu pagamento.

Nem um ano depois disso, chegamos em casa após árduo dia de trabalho e encontramos nossa mãe caída no chão do quarto, com uma cartela vazia de comprimidos ao seu lado. Francisco, em estado de choque, ficou parado na soleira sem conseguir se mover, como se estivesse preso em areia movediça até o pescoço. Eu corri e a acomodei em meus braços, mas era tarde demais. A última coisa que ela disse foi que estava indo para o Paraíso com o Arcanjo Gabriel. Foi a única vez em toda a minha vida que a vi sorrir. E, se antes eu me incomodava com Deus por causa de seu descaso, agora eu o odiava por ter levado também minha pobre mãe.

De repente, éramos apenas eu e meu irmão. Ele era tudo o que eu tinha na vida, e era minha obrigação cuidar dele. Mas, depois daquele dia, Francisco não foi mais trabalhar. Aos quinze anos, ele passava o dia bebendo e fumando. Eu, com dezoito recém-completados, disse que não lhe daria mais dinheiro para estas coisas, e ele não pensou duas vezes antes de começar a realizar pequenos furtos para manter o vício. Às vezes, ele nem voltava para casa à noite, e eu tinha que sair à sua procura pelas ruas daquela pequena cidade empoeirada. Eu o arrastava pelos ombros por toda a estradinha e o colocava na cama.

Ele ficou cada vez mais agressivo, tendo se envolvido em diversas brigas. Como era menor de idade e não podia ser preso, Francisco era levado ao reformatório com frequência. Depois de alguns meses, era liberado. Cometia os mesmos delitos mais uma vez e retornava ao reformatório. Eu gostaria de ter agido diferente, de ter feito algo para tirar meu irmão deste ciclo de destruição, mas, na época, eu era um ignorante. Sem educação e sem conhecimento. A situação perdurou até que ele fizesse dezoito anos. Com esta idade, ele finalmente pôde comprar uma arma. E ele matou o dono da mercearia a sangue frio, por um maço de cigarros.

Desde a morte de meu pai, eu tinha sido forte. Tinha lutado para permanecer de pé em meio à tormenta. Mas quando Francisco foi preso por homicídio e levado a uma penitenciária a duzentos quilômetros de distância, eu me senti como se estivesse no fundo do oceano, com uma âncora enroscada em meus pés calejados. Eu sabia nadar, mas simplesmente não conseguia me mover. Não podendo mais ficar ali, eu me mudei de cidade, esperando com isso mudar de vida. Trabalhava durante toda a semana, e, aos domingos, ia visitar Francisco. Me partia o coração toda vez, porque ele era tratado como um cachorro sarnento. Como um lixo. Ninguém sabia pelo que ele havia passado até chegar ali. E Francisco reagia. Brigava até com as paredes se não gostasse da cor delas. Eu já não o reconhecia mais quando ele, um garoto de apenas dezenove anos, foi levado para a solitária, por ser considerado um detento agressivo e perigoso.

Eu já havia perdido meu pai, minha mãe, e agora, não podia mais ver meu irmão. Depois de tantas batalhas, havia perdido a guerra. Foi demais para aguentar. Meus joelhos, fraquejados após tanto tempo, finalmente cederam, e eu caí. Tentei fazer as pazes com Deus, porque me disseram que ele salvaria a mim e a meu irmão. Mas não consegui. Depois, tentei beber. Tentei injetar. Tentei me apaixonar. E, no final, nada funcionou. Solitário, sem uma notícia sequer de meu irmão, nada aliviava o peso que eu sentia em minhas costas – o peso do mundo inteiro -, e eu afundava cada vez mais.

Quando comecei a beber e usar drogas, descobri uma válvula de escape. Por algumas horas, eu não era mais eu, e as coisas eram mais fáceis – embora a ressaca não valesse a pena. Precisei encarar a face da morte para perceber que precisava de ajuda. Foi só depois de quase morrer de overdose que percebi que não queria ter o mesmo destino de meu pai. Eu me recusava a me tornar semelhante a ele. Voluntariamente, me internei em uma clínica de reabilitação.

E hoje, finalmente, estou saindo. Posso dizer, com certo orgulho, que estou limpo. E estou pronto para reencontrar Francisco, depois de quatro anos de separação.


11 de Agosto.

Hoje, peguei a estrada e fui à penitenciária. Sem um centavo no bolso, contei com a caridade de alguns viajantes que me deram carona. Enquanto fazia meu cadastro de visitante, a única coisa em minha mente era a esperança de que Francisco não estivesse mais na solitária. De fato, ele não estava – mas também não estava em lugar algum. De acordo com os registros, no quarto mês de isolamento, ele começou a alucinar. Gritava e chorava, dizendo que havia sido baleado. Os agentes entraram para conferir, e Francisco, em agonia, lhes mostrava o ferimento no peito, desesperado por ajuda porque estava perdendo muito sangue. Mas não havia nada. Chamaram um médico, e meu pequeno irmão foi diagnosticado com esquizofrenia. A mesma doença que acometeu nossa mãe anos atrás, quando ainda éramos meninos.

A única informação que tenho agora é que Francisco foi transferido para um hospital psiquiátrico a outros trezentos quilômetros daqui. Novamente, preciso contar com a sorte e a bondade dos viajantes na estrada para chegar até onde devo estar. Me pergunto se Francisco ainda se lembra de mim. Ele deve estar furioso porque eu o abandonei. Não se preocupe, irmão, estou indo te buscar, e vou compensar o tempo perdido.


13 de Agosto.

Finalmente, cheguei ao hospital psiquiátrico. Parece um bom lugar. É um casarão antigo em uma propriedade enorme, com um pomar nos fundos. Diferente de nossa cidade natal, aqui, a chuva é regular e o verde prospera, e fiquei feliz de imaginar Francisco vivendo em um lugar como este. Eu quase podia vê-lo sentado em um banco sob uma das árvores, com os raios de sol banhando o rosto e a brisa bagunçando o cabelo. Conforme eu me aproximava do portão de entrada, meu coração palpitava cada vez mais rápido, e eu pensava no que diria a ele quando o visse. Diria: “Irmão, viajei a noite toda até aqui só para dizer que te amo, e preciso do seu perdão”.

Quando disse que estou procurando por Francisco, a recepcionista me olhou de uma forma estranha. Com dó. Ela saiu da sala e retornou com uma enfermeira, que me conduziu pelos corredores do hospital. Perguntei onde está meu irmão, e a enfermeira fez mil rodeios, me falando do estado avançado da doença dele. Mas não me falou onde ele estava.

E eu já não tenho mais a inocência que tinha quando criança.

- Ele está morto, não está? – perguntei, sentindo o peso destas palavras me tirar o fôlego.

Nunca saberei se Francisco me perdoaria ou não, porque ela confirmou: Sim, meu irmão está morto. Cometeu suicídio. Se enforcou há duas semanas. Duas semanas. Se eu tivesse saído da reabilitação duas semanas antes, poderia ter chego a tempo de salvar meu irmão. Duas semanas que separam a vida da morte. E, se eu não tivesse caído no vício, poderia tê-lo encontrado muito antes disso.

A enfermeira me mostrou o quarto onde Francisco dormia. Parecia um quarto qualquer de hospital. Nós sempre fomos pobres e não temos muitos pertences, isso eu entendo. Mas ver aquele quarto, sem nenhum traço de personalidade, doeu. Doeu porque vi que, aqui, Francisco era apenas mais um qualquer. Não era aquele garotinho franzino que eu conhecia tão bem. Era apenas mais um paciente, sem passado e sem futuro.

Debaixo do braço, a enfermeira carregava um velho caderno de folhas amassadas. Ela me entregou, dizendo que era o diário de Francisco. É o único pertence dele que restou – as roupas e os sapatos já foram doadas a outros pacientes. Depois disso, ela me conduziu até o refeitório e me deu um prato de comida, mas eu não sentia – e ainda não sinto - fome. Me sinto anestesiado e alheio ao mundo. Vendo que não tenho para onde ir, ela disse ainda que posso ficar aqui durante alguns dias, trabalhando em troca de hospedagem e comida.


15 de Agosto.

Bem nos fundos da propriedade do hospital, depois do pomar, há um pequeno cemitério onde são enterrados os pacientes que não possuem família. Francisco está aqui. Não há uma lápide com palavras bonitas gravadas, nem flores ou velas. Apenas uma cruz de madeira com seu nome, fincada na terra remexida. Estou sentado aqui, de frente para esta cruz, há dois dias, lendo o diário de Francisco. Ele estudou por um pouco mais de tempo que eu, e sabia ler e escrever bem. Mas eu nunca fui muito inteligente, e levo tempo para conseguir decifrar cada uma das dolorosas frases neste caderno. Ele costumava ver e sentir coisas que não existiam, e, em alguns breves momentos de lucidez, se desesperava. Pedia, com sua caligrafia torta, por ajuda – mas eu não sei se ele foi realmente ouvido como precisava.

Talvez por isso, por ter dificuldade em ler, eu goste mais quando viro uma página e vejo que, ao invés de frases, há um desenho. Mas todos os desenhos me transmitem, igualmente, a sensação de dor, sofrimento e desesperança. Eu percebo que nunca conheci Francisco de verdade. Sempre achei que estava cuidando dele, mas isso nunca aconteceu. Nunca fui o irmão que ele precisava que eu fosse. E a culpa de tudo o que aconteceu a ele é toda minha.

Quando chego ao final do caderno e viro a última página, há uma mensagem de despedida: “Antônio, eu sei que você tentou. E saiba que eu te perdoo”.

Infelizmente, Francisco, de nada me vale o seu perdão se eu mesmo não consigo me perdoar.

March 12, 2018, 2:34 a.m. 0 Report Embed Follow story
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The End

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