victor-hugo Victor Hugo

"Já estava escuro quando Violeta bateu a porta. Mas Tulipa não a impediu de entrar."


LGBT+ Not for children under 13.

#fantasia
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Capítulo Único

Já escureceu faz tempo quando as três batidinhas rápidas e ritmadas ecoam pela porta, mas, ainda assim, não há nem uma pontada de surpresa no olhar de Tulipa quando ela se depara com a garota parada do outro lado... Quer dizer, talvez até tenha uma pontada, sim, mas mais por causa do suor que escorre pela testa dela do que qualquer coisa.

— Você ainda estava treinando? Até essa hora? – é a primeira coisa que Tulipa diz e, ainda que seus olhos não desgrudem um segundo sequer de Violeta, ela se desvencilha de seus braços úmidos e recua para a cama. Mesmo o peso de seu corpo não é o suficiente para fazer com que uma ruga sequer surja no tecido fino e dourado que cobre o móvel. Na verdade, também não é o suficiente para que faça surgir uma ruga sequer no tecido fino e dourado que cobre o seu próprio corpo, aliás.

A outra moça ergue os braços de um jeito que indica que também não gostou muito disso, mas, ei, “fazer o que, não é mesmo?”. Quando Violeta faz isso, o arco de suas sobrancelhas se levanta completamente, Tulipa não consegue evitar perceber.

— Eu ia adorar poder passar mais tempo com você, você sabe bem disso...

Um sorrisinho escapa pelos lábios cor-de-rosa de Tulipa quando ela ouve essas palavras.

— Comigo, é? – há algo em seu tom que soa provocativo e condescendente, ela sabe, mas não tenta evitar.

— Bem... – Violeta meio que dá de ombros, ainda que a faísca de divertimento também esteja presente em seus olhos da mesma cor do céu lá fora – Com Sua Alteza, se preferir assim, ainda que possa ser difícil imaginar como alguém tão linda quanto ela...

Tulipa ainda está sorrindo.

— Linda, é?

— Não tem como negar, não é? Quer dizer, o que eu posso fazer? Eu sei que Sua Alteza é que é uma graça de pessoa, enquanto eu, bem, eu sou só a guarda suada e baixinha da relação.

— Ah, pobrezinha! – Tulipa sabe que, quando fala assim, sua voz fica igualzinha a da sua mãe, quando ela prestando suas condolências a nobres a beira da falência ou a camponeses que tiveram uma colheita ruim – Não basta apenas ser uma guarda suada, também tem que ser baixinha? Não sei se poderia suportar isso...

— É horrível, você nem faz ideia!

— Talvez eu possa te emprestar um dos meus sapatos algum dia... Você ainda conseguiria lutar com eles? Porque eu sei que você pode nos defender de dragões gigantescos e alados, ah, sim, mas conseguiria fazer isso sem quebrar um salto vindo direto de... Hum... De onde é que eles vêm, mesmo?

— De qual você está falando? Daqueles que o Arquiduque deu no último inverno? Verde e cheio de florzinhas?

— Ah, Violeta! – Tulipa faz uma careta e, dessa vez, ela parece mais sincera que teatral – Nem me lembre deles! Como é que ele achou que eu ia gostar deles? Quer dizer, como ele achou que alguém, em todo o mundo, iria gostar deles?

— Tenho certeza que muitos matariam por um par daqueles.

— Então eu alegrarei o dia daquele que encontrá-los no lixo.

As sobrancelhas de Violeta se levantam ainda mais.

— Espera aí! Você não está falando sério, está?

— Violeta! – Tulipa protesta – Mas é claro que não! Por que eu faria uma coisa dessas? Eles devem estar com uma das meninas da cozinha agora...

— Uma das meninas da cozinha, é? – Violeta volta a provocar – Então eu nem saí ainda e você já está pensando em me trocar? Pela Tulipa, não é? Porque, olha, ela é mesmo uma gra...

— Violeta! Para com isso!

Violeta faz uma expressão de quem está ofendida, mas não é como se fosse de verdade. Ah, sim, Tulipa acredita que esse é mais um pretexto para que Violeta possa se jogar na sua cama e segurar a sua mão sem que ela possa reclamar do que qualquer outra coisa.

— Você promete que não vai me trocar, não é?

Agora, Tulipa demora a responder. Afinal, agora, a voz de Violeta não tem mais aquele mesmo tom de brincadeira e zombaria que estava presente até uns segundos atrás, muito pelo contrário... Ah, não, tem algo mais profundo que isso ali.

— Você só vai ficar algumas semanas fora, Violeta.

— Eu sei, mas...

— Não é como se você estivesse fugindo de perto de mim, é?

A tentativa de aliviar o clima parece não dar certo, porque a expressão de Violeta não se suaviza.

— Eu sei, mas... Quer dizer, você é uma princesa. Tenho certeza que muitas pessoas iam preferir que você ficasse com, sei lá, alguma outra pessoa de família importante... Quer dizer, teve aquele príncipe que veio te visitar uma vez, não é? E até aquela baronesa que vive mandando...

Tulipa suspira alto para interromper Violeta.

— Não seja dramática! Vocês só estão indo enfrentar um kraken, não é como se você fosse morrer lá! Quer dizer, você já enfrentou coisas piores antes, não é? Quer dizer, você teve que pedir a minha mão para os meus pais! Consegue imaginar algo pior que isso?

Uma pontada de sorriso surge no rosto de Violeta, mas ela o repreende.

— Mas é tão perto da fronteira e tão longe daqui...

Tulipa deixa que o corpo termine de cair ao lado de Violeta. Seus cabelos se entrelaçam quando ela faz isso, mas não é como se isso incomodasse qualquer uma das duas.

— E você acha mesmo que eu ia deixar isso separar a gente?

— Eu não estou dizendo que...

— Depois de todos os planos que eu já fiz? Quer dizer, eu até já estou pensando no meu vestido de casamento! E no seu também, sabia? Você acha que eu ia jogar todo o tempo que eu gastei com isso fora?

Dessa vez, é Violeta quem hesita por um tempo antes de voltar a falar.

— Você está pensando mesmo num vestido de casamento? Para mim?

— Bem... Talvez você se oponha um pouco no princípio...

— Tulipa! Isso é loucura! Olha só para mim, eu não uso vestidos!

— Ah, mas você não está pensando em se casar de armadura, não é?

— Para falar a verdade...

— Por que você faria uma coisa dessas?

— Ei! Ela é...

— Está vendo? Eu ainda preciso te convencer disso! Olha só se eu tenho tempo para gastar flertando de volta com pretendentes idiotas!

— Mas você nunca vai me convencer disso!

— Bem... Então acho que eu nunca vou ter tempo para mais ninguém, não é mesmo? Acho até que eu vou ter que passar todo o tempo possível com você, mesmo quando você estiver treinando lá embaixo...

— Você suportaria um tormento desses?

— Uma princesa tem que fazer os seus sacrifícios por um bem maior, não tem?

Nesse momento, Violeta realmente chega a sorrir. O sorriso dela é um daqueles que parece digno da mais encantadora das sereias e, como uma pirata, Tulipa não consegue evitar ser fisgada por ele. Torna-se simplesmente impossível desviar o olhar, torna-se impossível se afastar. Ah, sim. Quando Violeta está perto, parece impossível pensar em qualquer outra coisa que não seja ela. Que as duas, juntas. E também tudo aquilo de sapatos, arquiduques, dragões alados, krakens, sacrifícios de princesa e treinos de guarda.

Para falar a verdade, tudo isso consegue soar até bastante atraente para Tulipa.

É por isso que, quando ela volta a si, não se surpreende em estar sorrindo também.

Também não se surpreende quando Violeta a puxa para mais perto de si e as duas continuam ali, abraçadas uma a outra e muito, muito, muito próximas, sentindo o calor uma do corpo da outra, o perfume, o tecido das roupas, até mesmo o suor. Mas há algo nisso que é simplesmente... Tulipa não consegue pensar em coisa melhor.

Na verdade, Tulipa só consegue pensar em Violeta.

Mas, ei, talvez essa seja a coisa mais perfeita que ela tenha em mente, afinal de contas.

March 3, 2018, 11:37 p.m. 0 Report Embed Follow story
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The End

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